Pequenas Mentiras

Os dilemas do delegado

Dois índios presos e suas repercussões. César Carvalho continua com a saga dos índios Baiá e Avati, e suas tentativas de evitar e denunciar o desmatamento.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Os dilemas do delegado

O dia não fora nada fácil para Mário Sérgio. Pressionado por seus aliados políticos, acabou aceitando a sugestão de reprimir as manifestações, a maioria pacífica, que proliferavam no período eleitoral. Para ele, delegado, seria simples, bastava expedir a ordem e pronto, mas, por outro lado, isso o colocou numa situação delicada com o prefeito, seu superior e candidato à reeleição, que poderia demiti-lo se percebesse a manobra de seus oponentes.
O objetivo foi atingido. As imagens, gravadas pelas emissoras de TV mostrando o espancamento e a prisão de manifestantes, ganharam ampla divulgação prejudicando a imagem política do prefeito, a quem foi atribuída a responsabilidade pela violência policial. A vida de Mário Sérgio tornou-se um inferno naquele dia. Seu telefone não parava de tocar. Alguns aliados ligaram, parabenizando-o pelo resultado, afinal, a imagem do prefeito estava irremediavelmente prejudicada e só tinham a comemorar.  Mário, falando baixinho para evitar bisbilhotices, agradecia as felicitações, mas, na verdade estava era preocupado com as consequências. Se descoberta a tramóia, ele perderia o cargo e colocaria em risco a candidatura de seus aliados políticos. A maioria dos telefonemas era de assessores diretos do prefeito preocupados com a repercussão no noticiário. Uns o acusavam de permitir violência excessiva, outros o recriminavam pelo simples fato de cumprir o seu papel, manter a ordem pública. Outros, ainda, o criticavam por permitir que as ações policiais fossem filmadas, como se isso fosse possível, imagine! Com essa mania de todo mundo ter um celular e filmar tudo, fotografar tudo, como evitar?!
E para deixá-lo ainda mais irritado, o prefeito telefonou ameaçando demiti-lo. Sua situação não podia ser mais delicada. Como amainar a repercussão negativa na imprensa, pedida pelo prefeito? As emissoras de TV, com os índices de audiência aumentando em plena campanha eleitoral, usavam e abusavam das imagens.
Ao chegar em casa estava tão abatido e cansado que não deu a menor atenção às tentativas sedutoras da mulher. Tomou banho, jantou e foi assistir TV. Percebendo-lhe o nervosismo, sua esposa tentou ajudar, e nada, ele não queria conversa. Ligou a TV, mas não conseguiu se concentrar em nenhum programa. Depois de zapear os mais diferentes canais, desistiu. Deixou a mulher na sala e foi para o quarto. Deitou-se. Mexia-se de um lado para o outro. Apesar do cansaço, não conseguia fechar os olhos. Sentia-se num verdadeiro beco sem saída. Época eleitoral, as manifestações multiplicavam-se e, com elas, as brigas entre os adversários. Apesar da proibição, no embate os policiais cometeram muitos, mas muitos atos desnecessários de violência. As redes sociais poluíram-se dessas imagens e seus aliados políticos pulavam de alegria diante do resultado negativo para seu principal concorrente, o prefeito. Por que caíra nessa bobagem, envolver-se com a vida política? E justo com os políticos de oposição? Agora precisava encontrar uma saída para, pelo menos, garantir seu emprego.
Sem pregar os olhos, consultou o relógio – estava deitado havia três horas - levantou-se e foi até a varanda do quarto que dava para os fundos de um parque. Acendeu um cigarro e sentou-se na poltrona. No céu, a lua nova e a ausência de nuvens transmitiam uma serenidade que contrastava com a turbulência de sua mente. Tragava o cigarro com avidez, sem perceber-lhe o paladar e só apagou-o quando a brasa começou a queimar o filtro. Sua mulher entrou no quarto e surpreendeu-se ao vê-lo acordado. Saiu e logo depois voltou com um copo cheio de uísque. Antes de pegar o copo, deu um sorriso sem graça e disse à mulher:
− Bebendo tudo isso eu sei que ficarei bêbado; agora, dormir que é bom... Sei não – pegou o copo, agradeceu à mulher e deu um primeiro gole. Acendeu outro cigarro e ficou alternando goles da bebida com as tragadas. Meia hora depois sua mulher levou-o, cambaleando e sonolento, para a cama.

Aquela teria sido a chance de Mário Sérgio acordar no dia seguinte completamente descansado não fosse o telefone tocar às três horas da manhã. Mário acordou assustado, acendeu o abajur no criado mudo e atendeu. Do outro lado da linha, Jandir, amigo desde a infância e aliado político, lhe adverte do perigo iminente: um cinegrafista gravou a prisão de dois índios e ameaçava entregar as imagens para a Comissão dos Direitos Humanos. Mário deu um sobressalto e sentou-se na cama: 
− Você tem certeza, Jandir? São mesmo índios?! Devem ter feito alguma coisa. Não foram presos só porque são índios!
− Eu vi as imagens, Mário. Eles não fizeram nada. E o áudio também compromete. Dá pra ouvir nitidamente o preconceito do policial algemando os caras.
− Ai, meu Deus! O que a gente vai fazer?
− O cara quer grana. Se pagarmos ele entrega a fita e fica de boca calada.
− Faz o seguinte, Jandir, pega a fita, paga e − falando com ênfase − apaga o cara – esperou a concordância do amigo e desligou o telefone.
Nada poderia ser pior! A Comissão dos Direitos Humanos estava grudada feita carrapato em todos os órgãos do governo que tivessem qualquer relação com princípios humanitários. E, claro, a polícia era a mais visada. Qualquer deslize dos policiais no trato com as pessoas virava matéria de jornal. Um saco! Ainda mais agora em época eleitoral.
Não dormiu o resto da noite. Perto das seis horas da manhã, ouviu o som de pássaros no bosque. Consultou o relógio e levantou-se com cuidado para não acordar a mulher. Tomou banho, colocou o terno cinza decorado com o brasão da polícia, símbolo de sua autoridade, e saiu em silêncio.
Na delegacia, passou pelos corredores sem cumprimentar ninguém. Antes de entrar em sua sala pediu a um dos investigadores a ordem de prisão e o boletim de ocorrência envolvendo os dois índios. Aguardou sentado em sua escrivaninha, folheou um ou outro processo e alternou o tamborilar a mesa com o olhar ansioso para a porta, esperando-a abrir-se e o investigador entrar com os papéis pedidos.
Com os papéis em mãos, identificou o responsável pela ordem de prisão. Pegou o telefone e digitou o número do celular de Jorge, o sub-delegado que gostava de gravata borboleta e assinara a ordem de prisão. Na tela do celular, a mensagem: aparelho desligado. Voltou aos papéis, olhou o nome de quem fez o boletim de ocorrência, Maria Clara, pegou o telefone e digitou o número. Aparelho desligado! Sete horas da manhã! Jorge e Maria Clara só chegariam às oito. Saco! Teria que esperar.
Faltavam poucos minutos para as oito horas quando Mário Sérgio resolveu sair de sua sala e tomar um café. Passou pela recepção e avisou o policial que estaria na área externa fumando um cigarro e que Jorge e Maria Clara deveriam encontrá-lo, assim que chegassem. Na área externa, na verdade parte do estacionamento da delegacia, Mário encostou-se a uma parede, acendeu um cigarro e voltou a telefonar para os números já registrados em seu celular. Continuavam desligados. Acendeu um segundo cigarro e ia novamente tentar as ligações quando vislumbrou Jorge e Maria Clara saírem do carro e, de mãos dadas, cabelos molhados e dando risadas, dirigirem-se à entrada do prédio. Antes de entrarem, Mário os chamou. Os dois se entreolharam espantados, caramba, teriam sido descobertos? A essa altura, pouco importava. O chefe os tinha visto.
Mário acompanhou o andar dos dois em sua direção. Andar agora bem diferente, um longe do outro e o sorriso amarelo de quem foi pego em flagrante. Mas Mário estava pouco se importando com o relacionamento amoroso dos dois. Estava preocupado em resolver o problema da prisão dos índios e dar-lhes um belo esporro, os responsáveis por tudo.
Jorge, diante da irritação do chefe, saiu na defensiva:
− A prisão tinha que acontecer. Eles estavam mendigando!
− Como mendigando?! Tinham acabado de descer do caminhão! (...) E isso está no boletim de ocorrência feito pela senhora, dona Maria Clara – e apontou-lhe o dedo indicador – Vocês não podiam fazer isso de jeito nenhum. Já imaginaram se o pessoal dos Direitos Humanos fica sabendo? A gente se ferra seus estúpidos. Idiotas.

Maria Clara ouviu sem dizer nada. Apenas olhava tímida e protetora para Jorge, ainda que sua vontade fosse dizer que tinha lhe advertido da besteira que iam fazer prendendo os índios. Mas que adiantou? Ele mandou prendê-los e ela cumpriu sua obrigação, registrou o boletim de ocorrência. Agora isso, levar uma bronca do chefe enquanto o namorado continuava em sua atitude defensiva: 
− Mas eles pareciam mendigos! Como os policiais iam saber?!
− Pareciam?! Jorge, você está me gozando?! – disse com ironia e aproximou seu rosto ao de Jorge e continuou  – E mesmo que estivessem mendigando, a gente não pode prender... São índios. E você sabe como esse pessoal dos Direitos Humanos protege essa gente. Índio. Bicha. Puta. Essa porra de minoria. E eles ficam em cima da gente. Ainda mais agora, época de eleição.
Maria Clara, quebrando seu silêncio, ergueu e gesticulou a mão em direção a Mário e, chamando-lhe a atenção, disse tímida:
− Tenho uma sugestão – Mário e Jorge olharam para ela, curiosos. Ela continuou – a gente solta eles e destrói os documentos. Simples assim.
Mário suspirou de alívio. Destruindo as provas da prisão, ela deixaria de existir. E o vídeo gravado? Desmentir imagem é complicado. Mas se pode interpretá-la. Pronto, taí, os policiais não prenderam os índios, apenas prestaram-lhes assistência. É isso. E Mário imediatamente deu a ordem:
− Maria Clara, você fica encarregada de destruir esses papéis. E você, Jorge, solta os dois, mas antes passe numa loja e compre roupa nova para eles. Dê-lhes um banho de loja para que deixem de parecerem mendigos.
Baiá e Avati saíram da prisão trajando calças jeans e camisetas brancas novinhas, novinhas. Nos pés, sandálias de borracha que Avati tirou poucos minutos depois de andarem a esmo pelas ruas. Apertava-lhe os pés, dizia para Baiá. Este, por sua vez, caminhava alegre e, ao contrário do que se acostumara Avati, bastante falante chamava a atenção do amigo para o fato de, agora, vestidos como estavam, as pessoas não lhes prestavam atenção. Avati concordou em parte. Os brancos podiam não estar prestando atenção em suas roupas, mas muitos observavam os cabelos, compridos e desgrenhados. Baiá riu:
− Tem branco com cabelo mais comprido que o da gente.
Avati riu. Num gesto súbito, colocou a mão sobre a cabeça, curvou o corpo e gemeu, enquanto alguém gritava:
– Pecador tem que ir pro inferno!

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