Pequenas Mentiras

Vendendo um índio

A divulgação de uma entrevista com o índio Baiá, pela TV envolve interesses e dinheiro. Sem saber, o índio vira moeda de troca.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Vendendo um índio

Era pouco mais de oito horas da manhã. Jotabê olhou para o relógio do painel do carro. Putz! Estava atrasado. Acelerou. Antes da entrevista precisava reunir Baiá com o partido. Definir a agenda. Orientar o índio para que ele não fuja do roteiro. Se tudo desse certo, seu candidato poderia até ganhar as eleições e vencer o prefeito, poucos pontos à frente na preferência dos eleitores. A simpatia de Baiá e seu jeito simples de falar poderiam conquistar mais gente. A casa de Danilo, um sobrado localizado numa rua pouco movimentada, estava próxima. Estacionou a poucos metros. Em passos acelerados, subiu os poucos degraus do hall de entrada e encontrou a porta aberta. Olhou. Danilo estava ao telefone. Pediu licença e entrou. Danilo interrompeu a conversa e passou o telefone para Jotabê:
− Toma. É para você.
− Da Central? – Danilo mexeu a cabeça para os lados. Jotabê colocou o fone no ouvido − Alô... Sim. Sou eu... Posso ver sim. Mas tem um custo... Já negociei com outra emissora, mas... Se pagarem melhor, tudo bem... Façamos o seguinte: vou pensar. Se a concorrente pagar menos, a entrevista é sua.
Danilo, que havia saído da sala, voltou com duas xícaras de café. Deu uma para Jotabê:
− É requentado, mas depois faço outro − e sentou-se no sofá. Jotabê desligou o telefone e bebeu um gole. Fez careta, mas não falou nada.
− Jotabê – disse Danilo – uma coisa não entendi e queria que me explicasse – levou a xícara à boca, deu um gole e continuou − essa entrevista já não foi vendida pro fulano da TV Central?
Jotabê desviou o olhar de Danilo, sentado bem à sua frente, olhou para a xícara, bebeu outro gole e disse:
− Seu café está uma delícia. Falta só um pouquinho de açúcar – deu uma risadinha sem graça.
− Foi vendida ou não, Jotabê? – interrogou Danilo com voz forte e grave.
− Bem... Não foi exatamente vendida. Estamos em negociação.
Danilo, dando uma risada sarcástica, colocou a xícara sobre a mesinha entre eles, recostou-se no sofá, diminuiu o riso:
− Jotabê – fez uma pausa. Parou de rir – não tomo sorvete pela testa. Ontem, aqui nesta sala, neste mesmo telefone, você vendeu Baiá para o produtor da Central. Agora, passa ele pra trás e vende para outro? Cara! Que é isso?
− Você entendeu errado. Nada foi fechado. Mesmo porque precisava de autorização da diretoria. Sabe? Aquele tipo de gente que não gosta de ver dinheiro voando? Ele não vai conseguir.
O som do telefone interrompeu a conversa. Danilo pediu que Jotabê, sentado ao lado do aparelho, o atendesse e continuou tomando café.
− Sou eu mesmo... Vocês precisam me fazer uma proposta... Tem dois interessados, você que sabe. Faça a proposta que estudo, mas tem que ser logo. São quase nove horas, espero até dez e meia, certo? Você tem meu celular? Tem?! Tudo bem, então me ligue. Tchau.
Danilo colocou a xícara de café sobre a mesinha e perguntou a Jotabê, que tinha acabado de desligar o telefone:
− Outra emissora?
− Não estou entendendo – moveu a cabeça para os lados e contraiu o rosto – como conseguiram o número do telefone? E porque não ligaram no celular? – enfiou a mão no bolso, tirou o telefone, apertou a tecla – Caramba! Está desligado – ligou o aparelho e colocou-o sobre a mesa, junto com a xícara de café.
Recostado no sofá, com as pernas esticadas, Danilo falou num tom sério, a voz grave:
− Você está leiloando Baiá. Leva quem pagar mais. E Baiá, como fica nisso?
− Baiá leva a parte dele.
− Que é?
− Ora, o líquido... Tirando a minha comissão, as despesas de administração e a parte do partido – fez uma pausa e concluiu – doação de membro.
− Mas ele nem é do partido!
− Mas será daqui a pouco. E por falar nele, onde está? Dormindo?
Danilo riu:
− E índio dorme até tarde? Acordou super cedo, ele e o amigo, antes de o sol nascer, e saíram. Acho que nem tomaram café.
Jotabê consultou o relógio:
− Onde foram? Tenho pouco tempo. Antes da entrevista a gente tem a reunião na sede – consultou novamente o relógio. O celular tocou. Jotabê atendeu:
− Oi, Bonifácio, tudo bem? Cara, tava pensando em você agorinha mesmo... Aprovaram?! Que bom... Só isso? Desculpe Bonifácio, mas é muito pouco. Tenho oferta melhor... Nada disso. Você está muito enganado. Fui procurado... Não tenho ideia como conseguiram meu número... Façamos o seguinte, feito gente grande, sem ressentimentos. Negócio é negócio. Espero a proposta das outras, se a sua for melhor, você leva, certo? (...) Porra, Bonifácio! Sou seu amigo. Há quanto tempo a gente se conhece? Acha que faria essa sacanagem com você?
Danilo ouviu um barulho do lado de fora. Deixou Jotabê ao telefone e saiu para verificar. Olhou pelo corredor e viu, ao fundo, na entrada da área de serviço, Baiá e Avati tentando abrir a porta da cozinha.
− Por que não entraram pela porta da frente? Estava aberta – disse Danilo.
Baiá deu um sorriso acanhado:
− Baiá e Avati perdidos. Não achava casa de Danilo. Mais fácil andar na floresta.
Os três entraram na sala. Jotabê concluiu a conversa telefônica, levantou-se e cumprimentou os dois índios. Danilo convidou-os a tomar um lanche na cozinha. Jotabê consultou o relógio e disse:
− Não sei se dará tempo − virou-se para Baiá – temos uma reunião daqui a pouco, na sede. Depois a entrevista.
− Antes tem o café do Danilo – falou Baiá.
Na cozinha, enquanto Danilo coava o café e arrumava a mesa para o desjejum, Jotabê explicava a Baiá, que não entendia muito bem, o interesse de outras emissoras em entrevistá-lo. E a conversa continuou até Jotabê atender o celular e sair da cozinha. Atordoado com tantas explicações, Baiá comentou com Danilo e Avati, sentados à frente:
− Quando Jotabê fala, Baiá pensa: Baiá igual feijão na feira de branco, vale dinheiro. Três TVs interessadas.
− No nosso mundo é assim. Tudo vale dinheiro. Tudo pode ser trocado.
− Baiá gente, não coisa – interveio Avati.
− Você tem razão, Avati. Baiá é gente. Mas não é ele que está sendo vendido. É a imagem dele – percebendo a incompreensão dos índios, explicou – Tudo que se assiste na TV são imagens. O Baiá vai até o estúdio, grava a entrevista e vem embora. Ao chegar em casa, liga a TV e se vê – os dois riram – O que ele vê é a imagem dele. É essa imagem que custa dinheiro. E se ela faz sucesso, custa mais dinheiro ainda.
Jotabê retornou à cozinha, sentou-se em seu lugar e serviu-se de café. Danilo, observando-lhe o ar de satisfação, perguntou:
− Novidades?
− Notícias excelentes. E quentes. E a gente precisa ir logo, Baiá.
− E quais são essas notícias... Quentes? – perguntou Danilo, com um sorriso sarcástico.
− Fechei com uma emissora.
− A Central? Perguntou Danilo
− Não.
O celular tocou. Jotabê identificou o número:
− Vixi. Gente, dá licença – e saiu pelo corredor em direção à sala – Fala, meu querido.
– Jotabê, seu sacana, por que não vendeu pra mim? A gente já tinha combinado. Vamos negociar.
– Não Bonifácio, não tem como. Sua concorrente pagou mais.
− Você é filho da puta. Não precisava ter sacaneado.
− Não te sacaneei. Não procurei ninguém, só você. Aí me ligaram. Estranhei porque poucas pessoas têm o número do meu celular e o fixo é de um amigo, e só você tinha esse número. Entendeu? Pôrra, Bonifácio as ofertas foram tentadoras. Você sabe, melhor do que ninguém, que concorrência serve pra isso, regular o preço. Mas fui procurado, te juro.
Bonifácio colocou o telefone no gancho. Olhou para a porta. Que merda teria acontecido para os telefones de Jotabê chegarem às emissoras concorrentes? Se o que ele disse for verdade, a informação só poderia ter saído desse escritório. E quando Jotabê ligou no domingo à noite ele, Bonifácio, estava sozinho na sala. Pera aí. Não. Bonifácio não estava sozinho. Fernanda estava presente, ouvindo a conversa e esperando-o. Queria ser âncora do jornal. Claro. Só pode ter sido ela. Querendo subir porque fez sucesso entrevistando o índio?! Vai é cair do cavalo.

Mais colunas