Pequenas Mentiras

Construindo um político

Ao decidir ser político, o índio Baiá se lança no desafio de construir um discurso que represente suas causas. E espera, para isso, ajuda do homem branco.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Construindo um político

Ao ouvir o pedido de Baiá para que Jotabê o ensinasse a ser político, Avati levou um susto. Como Baiá, um índio que mal conhece os brancos, pode querer ser político? Será que ele ainda está bêbado? Tinham chegado há poucas semanas num mundo estranho e com uma missão específica, falar com o chefe dos brancos para impedir o desmatamento da floresta, agora resolve ser político? E no que isso contribuirá para que ambos cumpram sua missão? Mas Avati manteve-se quieto. Limitou-se a observar o comportamento do amigo que ouvia atento a fala animada de Jotabê:
− Baiá, meu amigo, você não sabe como fico feliz em ouvir isso. Claro que serei seu professor. Já tinha falado para o Danilo de seu potencial. Você será um grande político – e encaminhou-se em direção a Baiá – venha, deixa te dar um abraço.
Danilo, não menos surpreso que Avati, esboçou um sorriso cínico, mexeu a cabeça de um lado para o outro e percebeu que Baiá, não acostumado a esse tipo de afeto, tentava desvencilhar-se do abraço de Jotabê. Resolveu intervir:
− Gente... Vamos, vamos. Tem muito chão até o topo da montanha. E temos ainda que preparar o almoço. Peixe no cardápio, feito por Baiá, nada mais justo, ele que pescou. Eu me encarrego do arroz e das verduras.
− Só o peixe já está de bom tamanho, Danilo – disse, rindo, Jotabê.
Baiá sorriu aliviado ao ver-se livre do abraço de Jotabê. Colocou os peixes numa bacia e saiu, acompanhando os três que o esperavam no quintal. Assim que se aproximou, Jotabê colocou o braço sobre seus ombros e começou a falar, enquanto andavam:
− A primeira coisa que você tem que fazer é freqüentar as reuniões do meu partido, Baiá. Não tem erro. Com seu discurso fervoroso e revolucionário, logo, logo, você será vereador, defensor das causas indígenas.
− Jotabê, as coisas não são simples assim. Ele mal sabe o que é política! – questionou Danilo.
− Mas vai saber. Ensinarei tudo que sei. Tenho muita experiência na área e serei um excelente assessor, você verá.
− Acho que você abusará é da inocência dele, isso sim.
− Que é isso, Danilo? Em pouco tempo ele saberá tudo a respeito de política.
Avati, atento à conversa, interveio:
− Se Baiá for político vai parar o desmatamento?
− Claro que vai – respondeu Jotabê de imediato.
− Jotabê, não seja descarado. Você sabe que não é assim – comentou Danilo indignado e, dirigindo-se a Avati continuou – o mundo político é estranho. Cheio de sutilezas, alianças, uma sacanagem. Para vocês conseguirem alguma coisa tem que fazer pressão, Avati. Unir as tribos indígenas e pressionar o poder político, alertar a sociedade, levar o povo a apoiá-los. E isso não é nada fácil.
− Pressão, o que é pressão? – perguntou Avati, franzindo os olhos.
Antes que Danilo respondesse Jotabê tomou a palavra e falou com convicção:
− É por isso que Baiá precisa tornar-se político, Danilo. Para facilitar a pressão sobre as autoridades.
Baiá parou, afastou os braços de Jotabê de seus ombros, ergueu os ombros, sorriu e falou:
− É isso! Baiá vira político e Avati ajuda a juntar as tribos.
− Você viu, Danilo? – disse Jotabê - este é político de verdade. Nasceu estratégico – e deu um tapa carinhoso nas costas de Baiá.
Avati, um pouco à frente dos três, balançou a cabeça e continuou a caminhar. Lembrou-se de Baiá na aldeia, contando e cantando histórias, das pescarias e caçadas juntos. E o jeito sempre calado. Mas que vivia divertindo as pessoas. Desde que saíram da aldeia só falou o essencial. Cantar?! Cantou uma vez, aquela noite na cadeia dos brancos. E agora isso! Quer virar político? Dá até a impressão de que ele quer ser branco. E branco orgulhoso. Perdido em seus pensamentos, Avati surpreendeu-se ao notar que Danilo estava ao seu lado:
− Mim assustei – e deu um sorrisinho.
Danilo desculpou-se e, meio sem graça, disse:
− Não é mim é eu assustei.
Avati, acanhado – Avati fala mal. Precisa aprender.
− Posso te dar uma mão em algumas coisas. Te ajudar, sabe?
Avati deu um enorme sorriso e agradeceu, pois um de seus desejos era aprender a falar bem o português. Caminharam até o início da trilha que os conduziriam ao pico da montanha e esperaram. Enquanto Baiá deliciava-se com as lições de Jotabê, ele, Avati, prestava a maior atenção em Danilo que lhe explicava o uso adequado da forma oblíqua do pronome pessoal da primeira pessoa.
Baiá e Avati, os primeiros a chegar ao topo, olharam deslumbrados a paisagem plana e esverdeada que se estendia por quilômetros, só interrompida pelo desenho arquitetônico da cidade assemelhado a uma borboleta. Danilo, que chegou em seguida, olhou para o céu e viu um avião, apontou-o com o indicador e exclamou:
− Simorgh! – fez uma pausa – Parece um Simorgh.
Jotabê, que estava logo atrás de Danilo, franziu a testa, afastou um pouco a cabeça e perguntou, respirando com dificuldade:
− Simór... O quê? Que é isso?
− Simorgh. Pássaro da sabedoria – fez uma pausa - na mitologia muçulmana. No mundo real é isso – e apontou para o céu – uma máquina de matar.
− Mas esse é um avião de passageiros, Danilo. Tá indo direto para o aeroporto!
– Esse – disse Danilo apontando para o avião – é de passageiro, mas a mesma tecnologia criou o Simorgh, que é uma classe de avião não tripulado, capaz de carregar e detonar explosivos. Nem precisa mais de kamikaze, – deu uma risadinha cínica – pelo menos isso.
Jotabê não lhe deu atenção e caminhou até Baiá, que estava ao lado de Avati, colocou seu braço sobre os ombros dos dois, olhou para Baiá e disse:
− Bonito, não? Tá vendo lá na frente, a cidade – apontou com a cabeça – Lá, bem no centro, feito estrela colorida, você brilhará.
Baiá delicadamente tirou a mão de Jotabê de seu ombro, olhou para a linha do horizonte, estufou o peito e disse:
− Baiá feliz. Baiá encontrou professor.
Algumas horas depois estavam de volta, cada um com uma tarefa, distribuída por Danilo: ele se encarregaria de cozinhar o arroz e preparar a salada, ajudado por Jotabê, enquanto Baiá cozinharia um dos peixes e Avati prepararia a conserva dos demais. Querendo ajudar, entregou um pacote de sal para Avati que o pegou, examinou detidamente, olhou para Danilo, olhou para Baiá. Danilo esclareceu:
− O sal para fazer a conserva do peixe!
− Conserva? O que é conserva? – perguntou Avati.
− Para o peixe não estragar!
Baiá adiantou-se, explicando:
− Jeito índio é diferente.
Jotabê, que acabara de entrar na cozinha, ficou curioso:
− Que jeito é?
− Moquém.
− Moquém?! – exclamaram ao mesmo tempo Jotabê e Danilo, que completou – Como faz?
− É difícil Baiá explicar. Melhor fazer – e saiu, voltando em seguida com alguns gravetos e pedaços de troncos de madeira. Com estes ergueu duas colunas entre o depósito de madeira do fogão de lenha, cada uma com uns quarenta centímetros de altura, e sobre elas montou, com os gravetos, uma grelha. Chamou Jotabê e Danilo, apontou para a grelha e disse:
− Moquém.
− Agora entendi – disse Jotabê – vocês defumam a carne, não é isso?
Sem entender muito bem o sentido de defumar, Baiá deu um sorrisinho, chamou Avati para ajudá-lo a limpar os peixes e saiu com um balde para buscar água. Avati pegou a bacia de peixes e levou-a para fora, colocando-a na mesa próximo da porta de entrada da cozinha. Enquanto cortava os peixes Baiá chegou com a água e começou a limpá-los. Avati aproveitou-se do fato de estarem sozinhos e perguntou em sua língua nativa:
− Baiá tem certeza do que vai fazer?
− Claro, Avati. Já vi as mulheres na aldeia fazerem isso muitas vezes. Não tem segredo, você sabe.
− Não estou falando de peixe, Baiá. Estou falando de sua decisão em ser político. É uma coisa perigosa. Você viu o que Danilo disse, é gente perigosa. Faz as coisas sem consultar a aldeia.
− Mas posso consultar a aldeia. Jotabê me ensinou. Eu serei representante do nosso povo.
− Você já está falando como homem branco, Baiá. Não vejo isso com bons olhos. Só vejo perigo.
Baiá riu da preocupação do amigo. E disse, para tranqüilizá-lo:
− Não precisa ter medo, Avati. Muitas vezes não é o veneno que mata, é o medo que a gente tem dele.
− Veneno mata de qualquer jeito, com medo ou sem medo.
− Nem sempre. Você já ouviu a história da surucucu e do sapo?
− Não estou com muita paciência para suas histórias.
− Mas essa é boa – disse, rindo, Baiá – e te conto. A surucucu chamou o sapo e falou pra ele que estava indignada. E qual o motivo de sua indignação, senhora Surucucu? É simples, explicou a cobra, pico uma pessoa e ela fica com medo, aí morre. Quer fazer um teste? Eu picarei uma pessoa e me esconderei, aí você aparece. Vamos ver no que dá. Esperaram perto da oca até alguém sair. Quando o homem saiu para mijar, a surucucu picou ele. Ele ficou apavorado, gritando, vou morrer, vou morrer, fui picado por uma surucucu. Matem ela. Matem ela. A mulher, os filhos e tios foram atrás, mas só encontraram um sapo. O homem não morreu. No dia seguinte fizeram o contrário. O sapo picou uma mulher que viu a cobra, não o sapo, e saiu correndo e gritando, fui picada por uma surucucu, vou morrer, vou morrer. O marido, os filhos, os tios saíram atrás da cobra, que conseguiu escapar. A mulher morreu no dia seguinte. Aí a cobra disse para o sapo, tá vendo, dito e feito, ela morreu de medo e foi picada por você, um sapo! E assim é, Avati. Se a gente tiver medo, não vai pra frente. Ser político parece ser perigoso porque a gente tem medo dele.
Avati estava prestes a comentar quando ouviu o grito de Jotabê, todo animado saindo da casa com o celular na mão, chamando Danilo que chegava carregando um balde d água:
− Você não acredita!
− Putz, você conseguiu sinal de celular neste fim de mundo, Jotabê? – surpreendeu-se Danilo.
− Consegui. Olha só o que descobri. A entrevista de Baiá viralizou! – ergueu os braços e pulou repetidas vezes gritando – Uau! Viva! Maravilhoso! Mas, merda, não tem luz nessa porra de lugar e a bateria está acabando.
Avati e Baiá se entreolharam. O que ele estaria dizendo?

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