Pequenas Mentiras

Um socialista selvagem

A inserção do índio Baiá na política traz rotulações e seus desdobramentos.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Um socialista selvagem

A explosão levou-o a ver o mundo rodopiar e seu corpo ser arremessado a alguns metros de distância. Levantou-se, chacoalhou a cabeça e examinou-se. Tudo estava em ordem. O terno, porém, um pouco manchado pela lama de algumas poças d água no quintal.
Foi até a área de serviço. Na parede divisória da cozinha um rombo retangular, do tamanho do forno. Baiá achava inacreditável como os brancos conseguiam construir coisas tão perigosas, como esse forno micro-onda. Uma verdadeira bomba. Começou a rir. Esses brancos são malucos. Olhou para o rombo na parede. Olhou para o ponto onde fora arremessado. Olhou para o terno. Aquelas marcas de sujeira não eram nada perto do que poderia ter-lhe acontecido. Meneou a cabeça. Que estrago!
Quando Danilo chegou da prefeitura Baiá grelhava o pacu no fogão que, por sorte, assim como a geladeira, sobrevivera ao desastre. Prateleiras caídas. Pratos e vidros quebrados piso a fora. Ao entrar na cozinha, os olhos de Danilo estatelaram-se congelados no buraco da parede. Gaguejou:
− Quiquiqui aconteceu?
Baiá tirou a frigideira do forno e colocou-a sobre a pia. Olhou para Danilo e disse, sorrindo:
− Baiá queria fazer mixira, mas branco não vende peixe-boi.
Danilo puxou uma cadeira, caída no piso, arrumou-a junto à mesa e sentou-se, desanimado e respirando fundo:
− Baiá, o que aconteceu aqui? Como essa parede ganhou esse rombo?
− Jotabê montou forno perigoso. Cozinha rápido, mas explode.
− Forno, mas que forno, Baiá. Forno não explode assim – olhou para o fundo da cozinha e viu no piso um pedaço da caixa – Ah, claro. Um micro-onda. Mas, cacete, esse micro-onda nem era meu? Era presente para uma amiga – olhou desconsolado para o nada e perguntou – O que você colocou dentro, Baiá?
− A tigela igual essa aqui com o peixe. E tempero de Danilo.
− Putz! Você colocou uma forma de alumínio?
− É. Igual essa aqui. Essa grande. Não cabia. Pus peixe na outra. Tempero de Danilo.
Danilo pousou os olhos sobre o que antes fora alguns frascos com temperos os mais diversos que utilizava em sua culinária. Levando em conta que teria que chamar o pedreiro para reformar a cozinha e a área de serviço, comprar objetos e acessórios para substituir os danificados, o custo não seria pequeno. Perdido por perdido, truco. Ainda bem que Baiá não se machucou. Resolveu brincar:
− Sabe Baiá, não ligo para o que aconteceu. O rombo na parede? A gente chama o pedreiro. Depois chama o pintor e tudo fica lindo de novo. E quem vai pagar tudo isso é você.
Baiá interrompeu o corte que fazia no peixe e virou-se para Danilo:
− Tudo pra branco tem que pagar.
− Dinheiro, Baiá, dinheiro é que move este mundo – olhou para Baiá, levantou-se da cadeira e foi em sua direção. Parou, olhou para a gravata, passou levemente os dedos e disse:
− Que maravilha, Baiá! Adoro gravata borboleta. É linda.
Baiá sorriu. Ia dizer qualquer coisa, mas antes que abrisse a boca, Danilo afastou-se, deu-lhe um tapa carinhoso no ombro e disse, animado:
– E vamos trabalhar que tem muita sujeira pra limpar nessa cozinha – foi à área de serviço. Voltou com vassoura, pá e lixeira. Primeiro, selecionou todos os fragmentos grandes e levou-os para o quintal, junto com alguns entulhos. Depois, voltou, recolheu todos os escombros menores, incluindo minúsculos pedaços metálicos do que antes fora um forno de micro-onda. Enquanto varria a cozinha, puxou conversa com Baiá, que terminava de preparar o pacu grelhado:
− Sabia que estão te chamando de Socialista Selvagem?
− Selvagem Baiá sabe o que é. Selvagem é igual índio, para homem branco. Civilizado, só ele – riu – Mas Baiá não sabe o que é socialista.
− Caramba! Você já pegou nosso jeito de ser, hein, Baiá? – riu, parou de varrer, pegou a pá e recolheu o lixo – Mas, te explico o que é socialista. É simples. É quando você não tem mais proprietário, sabe, o dono das coisas? Tudo é de todo mundo.
− Igual na aldeia – disse Baiá, entusiasmado – então está certo, Baiá é mesmo um Socialista Selvagem. Baiá vive numa aldeia socialista e é índio, selvagem, né?
Danilo, que voltara a varrer o resto da cozinha, parou, apoiou o braço sobre a vassoura, olhou para Baiá e disse, rindo:
− Bem, as coisas não são tão simples assim.
− Ué?! Danilo falou que era simples. Agora não é mais?
− Bem, é e não é. Existe toda uma discussão a respeito. Putz. É difícil explicar, mas vamos lá. Tem gente que acredita que o socialismo é só uma etapa de transição para o comunismo, sabe? E que nessa transição precisa de um estado forte, uma ditadura.
Baiá sorriu ao ouvir a palavra estado e interrompeu Danilo:
− Então precisa de político?
− É. Às vezes os militares entram nessa.
− Então Baiá vai ajudar a fazer esse estado forte. Essa ditadura. Baiá vai ser político.
Danilo começou a rir e voltou a varrer a cozinha:
− Acho melhor você pedir ao seu professor explicar o que é ditadura, Baiá. Fala com o Jotabê.
Sem dar atenção às reclamações de Baiá, que queria ouvi-lo, Danilo levou a lixeira para a área de serviço. Gostava de conversar, mas estava com pouca paciência para explicar coisas tão complexas quanto as doutrinas políticas. Imagine. Acostumado a viver cada minuto, um índio não deve ter tempo de lucubrar não. Se ele pensa muito, pode ser atacado por um inimigo, ou animal. Significa que deixou de prestar atenção no que estava à sua volta. É gente que tem uma cultura concreta. Pau, pau. Pedra, pedra. Não é o caso do Baiá. Imagine um índio da tribo dos Pirahã, que não sabem contar. Se tiver dois, é muito. Três é muito. Qualquer quantidade acima de um, é muito. Como uma cabeça dessas conseguiria entender um mundo como o nosso, dito civilizado? Imagine explicar para um cara desses uma doutrina política?
Ao voltar da área de serviço, Danilo pediu a Baiá que o esperasse tomar banho para depois comerem o peixe. Aproveitaria para terem uma conversa séria. Baiá concordou em esperar, mas não manifestou qualquer curiosidade sobre qual seria o tema da conversa. Apenas limitou-se a dizer:
− Peixe esfria.
Ao voltar do banho, Danilo esquentou o arroz guardado na geladeira. Serviu-se de arroz e peixe. Ofereceu o arroz a Baiá, que recusou.  Antes de começar a mastigar, disse:
− Olha, vamos deixar aquela conversa para depois, tudo bem?
Baiá ergueu os ombros. Para ele tudo bem. Na verdade tinha até esquecido que Danilo falara em ter uma conversa. Apesar de ter assimilado boa parte do que pudera viver na cidade, Baiá ainda não se acostumara à mania dos brancos em, para tudo, terem uma conversa que nunca se realiza na hora, sempre marcada para o futuro. Coisa de branco que Baiá precisaria aprender e, assim, aprimorar-se na jornada do ser político.
Terminado o jantar, Danilo, que só abrira a boca uma única vez, para elogiar o sabor delicioso do peixe feito por Baiá, preparou um chá. Serviu-o e sentou-se. Tomou um gole, olhou para Baiá, sentado à sua frente, e disse:
− Se quiser, põe açúcar – estendeu o açucareiro – pode ficar mais gostoso – deu mais um gole no chá e continuou – a gente podia conversar agora, né?! Tudo bem?
Diante da indiferença de Baiá, Danilo bebeu mais um gole, colocou a xícara sobre a mesa e, meio sem jeito, começou a falar:
− Devia ter falado com o Jotabê antes, mas não deu. Sabe, Baiá, é um assunto delicado. Fico até meio sem jeito, mas preciso falar. Isto é pedir. Não me leve a mal. É que agora você é famoso, chama a atenção. Por enquanto, ao que parece, ninguém sabe que você mora aqui. Ainda bem. Mas logo, logo ficarão sabendo. Viu o que aconteceu no bar outro dia? Só não encheu de muita gente porque o bar estava quase vazio. Senão você não ia conseguir nem tomar cerveja naquela noite. Vai se acostumando. Primeiro chega um e outro que fala pro outro e vão chegando até a rua aqui em frente ficar congestionada de gente. Gente querendo ver Baiá, o Socialista Selvagem. E eu, como é que fico? Não tolero esse monte de gente. Atrapalha-me. Quero sossego e sua fama está botando ele em risco. Ele pode acabar. Vai ser um inferno. Então, Baiá, preciso que você mude daqui. Vá embora.
− Palavras de Danilo deixaram Baiá meio tonto. Danilo quer que Baiá e Avati vão embora?
− Sim... É.
− Sem lugar para morar?
− Bem. Logo vocês arrumam um. O Jotabê ajuda – resmungou baixinho – assim espero.

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