Pequenas Mentiras

Perigo à vista

O que foi ao ar e o que está por vir: desempenho do “índio político” na imprensa ganha força, repercute e provoca reações.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Perigo à vista

− Não vou fazer o quê, mulher?!
− Essa arma! O quê você vai fazer com ela?
− Que arma? – perguntou Mário Sérgio – Estou procurando meu celular!
− Seu celular está no quarto, em cima do criado mudo.
Mário Sérgio saiu da sala de jantar. A mulher, mais aliviada, acompanhou-o com o olhar e, para garantir que o marido não faria qualquer besteira, trancou a gaveta com as armas e guardou a chave.
Sentado na beira da cama, Mário Sérgio reclinou seu corpo, apoiou a cabeça com as mãos e ficou alguns segundos quieto. Levantou a cabeça, esfregou o rosto, chacoalhou a cabeça, pegou o telefone e discou.
Jandir estava na mesa de um bar, bebendo. Com ar abatido, cansado, conversava com os amigos, seus companheiros da polícia sobre as dificuldades que encontravam para matar e prender alguns bandidos. Seu telefone tocou. Identificou a chamada: Mário Sérgio. O que ele poderia querer a esta hora? Atendeu ao telefone, pediu licença aos amigos e foi para um lugar mais silencioso:
− Diga, Mário, o quê te aflige?
− O quê me aflige? Você não viu o noticiário da TV?... Aquelas imagens da prisão dos índios foram ao ar!
− Passaram na TV?!
− Sim, na TV. Como isso aconteceu?
− Como posso saber, Mário?
− Esse assunto já deveria estar resolvido. Primeiro. Você disse que dava pra confiar no cara. Que ele não passaria nenhuma cópia pra frente. Aí te arrumei o dinheiro. Agora, nem dinheiro, nem o filho da mãe. E você prometeu que o pegaria.
− Se a fita foi parar na TV, dá para saber quem levou. Passou em qual canal?
− TV Central.
−  Ótimo. Irei lá. Eles dirão quem levou a fita. Fique tranquilo, Mário, resolverei isso o mais rápido possível.
− Acho bom. Mesmo porque agora terei que aguentar a bronca do prefeito – começou a falar mais tranquilo e fez uma pausa – Aliás, Jandir, até hoje não entendi como você só pegou a fita e não prendeu o fulano.
Jandir emudeceu. Como explicar que foram ludibriados pelo cinegrafista da forma mais infantil possível? Haviam combinado tudo direitinho. Jandir deixaria o dinheiro numa lixeira em frente à escola, no centro da cidade. O dinheiro seria deixado pelo cinegrafista depois que ele pegasse a fita. Nada poderia dar errado. Prenderia o desgraçado e ficaria com o dinheiro. Mas a má fortuna o aguardava. Na hora da troca, com todos os policiais em tocaia, alunos, professores e pais chegaram. Pararam em frente ao portão da escola que seria aberto em poucos minutos. Jandir esperou a calçada esvaziar-se. Na lixeira encontrou um envelope plástico. Pegou-o e olhou em volta. Com certeza o filho da puta misturou-se ao pessoal e fugiu com o dinheiro. Não contaria isso a Mário Sérgio nem que o Juca tossisse e, muito menos, que tinha ficado com parte do dinheiro.
− Tenho me dedicado a esse trabalho com afinco, Mário – falou com a voz titubeante – Mas está difícil. O cara parece um fantasma, ninguém sabe quem é. Nem meus melhores informantes conseguiram qualquer informação. Agora, com a TV, a gente identifica e pega o cara, fique tranquilo.
Jandir desligou o telefone e voltou para a mesa. Tomou o último copo de cerveja, pagou e despediu-se dos amigos que foram surpreendidos com sua saída rápida e pouco comum. Costumava ficar até altas horas bebendo e falando de suas bravatas de investigador e justiceiro. Por sorte não precisaria nem pegar o carro para ir até a TV, bastava atravessar a rua e andar cem metros. Olhou o relógio. O avançado da hora poderia dificultar sua busca, mas tentou. Em vão. Foi obrigado a voltar no dia seguinte para saber que a única pessoa que tinha a informação desejada, o remetente da fita, era o produtor Bonifácio, que só voltaria depois de alguns dias, cerca de uma semana, um pouco mais. Jandir diante da recusa do funcionário da TV em fornecer o celular de Bonifácio, ameaçou:
− Sabe com quem está falando? Sou investigador e posso acusá-los de obstrução à justiça.
O funcionário riu.
− Não, senhor investigador, não sabia com quem estava falando, mas agora que eu sei peço, por favor, siga a lei e traga uma ordem do juiz, aí a gente dá o telefone. Sabe, – carregou a voz de ironia – senhor investigador, a TV tem suas normas e regras, igualzinho à polícia.
Jandir saiu pisando duro. Estava mais uma vez amarrado. Teria que esperar cinco, dez dias até a volta do produtor. E se ele recusar? E se alegar essa porra de sigilo da fonte? Jandir não tolerava esse tipo de limitação. Precisava fazer alguma coisa. Claro. Investigar a vida desse tal de Bonifácio. Vai que ele tem algum rabo preso.
Não foi difícil encontrar os antecedentes criminais do produtor de TV. Pouco antes de completar dezoito anos foi preso em flagrante por roubo de carro. O processo não prosseguiu porque o pai de Bonifácio era figura influente à época e abafou o caso. O segundo registro era bem melhor e poderia atender aos interesses de Jandir: existia um processo em aberto contra o produtor acusado de tráfico de drogas. Como no primeiro caso, foi parado por influência do pai. Mas, e isso é um soco no estômago do bandido, Jandir tinha duas vantagens: primeira, o pai estava morto e, portanto, segunda vantagem, ele poderia reabrir o processo, não o de roubo de carros, já prescrito, mas o de tráfico. Se o bandidinho der uma de durão, Jandir tinha ali uma ameaça poderosa: reabrir o processo e ainda ironizá-lo, dizendo que dessa vez não teria a proteção de papai. E daria mil risadas. Mas, teria que ter paciência e esperar o retorno do produtor.

O telefone tocava insistente na sala. No andar superior, em seu quarto, Danilo dormia a sono solto. Sequer se mexia. Depois que saíram do bar, quase duas horas da manhã, Jotabê foi embora e deixou Baiá, completamente bêbado, sob sua responsabilidade. Arrastou-o quase metade do caminho, pois Baiá mal conseguia manter-se em pé e era pesado. Apesar da hora avançada, depois de colocar Baiá no sofá da sala, trabalhou até as cinco. O telefone voltou a tocar. Baiá entrou no quarto e cutucou Danilo:
− O telefone está tocando – sussurrou.
Danilo abriu os olhos com dificuldade, olhou para o relógio sobre o criado-mudo:
− Deixe tocar. É muito cedo – ajeitou-se na cama e pediu a Baiá – Feche a porta, por favor.
Meia hora depois a campainha soou estridente. Baiá atendeu a porta. Era o motorista da prefeitura que viera buscar Danilo por exigência do prefeito. Baiá teria que acordá-lo.
Na prefeitura, Danilo chegou mal-humorado e com sono. A secretária do prefeito ironizou:
− Mais um de cara amarrada? É hoje! Pode ir direto para o gabinete que o prefeito está te esperando.
A porta do gabinete se abriu e dela saiu Mário Sérgio num andar apressado, rosto contraído e a pele avermelhada. Ofegava. Passou por Danilo e pela secretária sem falar palavra.
− A coisa está feia – olhou para Danilo, apontou o gabinete e falou carinhosa – Vai. Vai. Ele tá esperando. Boa sorte!
Adolfo estava em pé, na frente da janela olhando o horizonte. Danilo entrou e cumprimentou-o. Ele voltou-se:
−Ah, é você? Senta. Senta – dirigiu-se à  escrivaninha, sentou-se e perguntou – Aquele levantamento que te pedi, está pronto? Qual foi o resultado?
− Excelência, consultei todos os partidos, sem exceção. E todos concordam, não posso mentir, o sucesso do índio é um problema.
− É uma tragédia, não um problema. Você viu o noticiário ontem? Querem acabar comigo. Mostraram os dois sendo presos. Agora a opinião pública inteira vai se voltar em defesa desse índio. É capaz de a gente cair ainda mais nas pesquisas. Sem contar a pressão dos Direitos Humanos.
− E o quê posso fazer, Excelência?
− Falei com o Genésio. A gente vai reunir todos os líderes, de todos os partidos, para tratar do assunto. Você organiza isso.
− Eu?! Mas, Excelência, não tenho tanto contato com os políticos. Eles nem me conhecem direito.
− Deixe de bobagens, Danilo. Você falará em meu nome. E dirá a eles que é uma reunião meio sigilosa, que é bom nem comentar para não sair na mídia. Entendeu? E tem que ser feita hoje, sem falta.
− Bem, como diz o pessoal de cinema, produtor não pergunta, produtor produz – falou Danilo, rindo.
Despediu-se do prefeito e saiu.
Em sua sala, telefonou para o escritório de todos os partidos políticos. Com alguns conseguiu confirmar o encontro com o prefeito, na parte da tarde, com outros teve que falar pessoalmente. Pouco antes do almoço, voltou à prefeitura e avisou o prefeito que a reunião estava confirmada. Seria na parte da tarde, na sala de reuniões da Prefeitura, e todos entrariam pelos fundos do prédio, evitando a imprensa.
Hora do almoço e o movimento nas dependências da prefeitura diminuiu bastante. Danilo esfregou as mãos. Tivera sorte. Poderia aproveitar esse espaço de tempo até o início da reunião para armar seu sistema de gravação. Imagine todos aqueles políticos reunidos discutindo a ameaça vinda da floresta, o Socialista Selvagem, como alguns o estavam chamando. Dessa reunião, Danilo tinha certeza, colheria pérolas do linguajar político que aproveitaria em suas histórias.
Esperou a secretária sair e entrou no gabinete. Checou as câmeras de vídeo, voltou para o computador da secretária e checou as imagens. Uma delas, justo a que flagrava o lugar do prefeito e seus assessores, estava fora de foco. Voltou para o gabinete, subiu numa banqueta e mal terminou de ajustar a câmera, ouviu a porta abrir e entrar uma pessoa. Não teve tempo de descer da banqueta, virou-se e ouviu:
− O quê o senhor está fazendo aí?

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