Pequenas Mentiras

Entre a cruz e a espada

O índio Baiá é desafiado a realinhar sua busca contra o desmatamento, unindo-se ao jogo de poder ou negando-o. Em paralelo, pessoas próximas são pressionadas a tomar atitudes contra o índio.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Entre a cruz e a espada

Baiá bebeu água e voltou a encher o copo sob a torneira do filtro. Saiu da cozinha e subiu as escadas. Jotabê e Danilo se entreolharam. Danilo falou em voz baixa:
− Acho que ele e o Avati brigaram. Pelo menos estavam discutindo lá fora, quando fui chamar para o café. Desde então, Baiá ficou cabisbaixo. Não sei se você notou.
No quarto, depois de colocar o copo d’água sobre um criado mudo, ao lado da cama de solteiro, deitou-se e cruzou as mãos na nuca olhando em direção à porta do quarto. Logo em seguida entrou Avati que acabara de sair do banho. Baiá sentou-se na cama e disse:
− Você precisa me ajudar a mudar essa situação, Avati. Preciso do apoio das tribos para me tornar político. Jotabê explicou que com apoio fica mais fácil conseguir salvar a tribo, não só a nossa, mas todas as tribos.
Avati, parado em frente à rede, chacoalhou a cabeça para tirar o excesso de água, esfregou a toalha nos cabelos, parou e voltou-se para Baiá:
− Muito difícil. Todos os chefes, eu disse todos, se opõem a ter um representante político de origem desconhecida. Além disso, foram muito enganados. Estão com certo cansaço, sabe?
− Eu? Desconhecido? Como eles podem dizer isso? Sou o índio mais visto. Os brancos me adoram. E olha – abriu a gaveta do criado mudo, pegou um maço de notas e apontou-o para Avati – eles pagam a cada entrevista. E sabe por quê? Porque sou mais conhecido que o deus deles. O que esses chefes estão pensando?
Avati, que tinha acabado de se enxugar, meneava a cabeça desaprovando cada palavra de Baiá, vestiu um calção e apagou a luz do quarto. Na penumbra, Baiá abriu a gaveta, colocou o dinheiro e deitou-se. Avati, então, falou:
− Você está parecendo homem branco. Ganhar dinheiro. Fazer sucesso. E a missão de acabar com o desmatamento, onde está? Você esqueceu? Ou quer ficar igual ao homem branco? – e concluiu em tom irônico – Ser político famoso.
Baiá levantou-se abruptamente, sentou-se na beirada da cama e falou alto, irritado:
− Avati está com inveja. Sucesso de Baiá produz inveja e Avati não quer que Baiá seja político porque sabe que Baiá terá sucesso também na missão. Se eu for político todo mundo ganha.
− Deixe de ser idiota, Baiá! – falou ainda mais irritado – Você não percebe? Estamos sendo enganados desde o começo. É melhor voltar para a tribo e impedir o desmatamento de outra maneira. Com nossas próprias forças.
− Arco, flecha e tacape contra armas que cospem fogo?!
− Melhor do que ser iludido pelo homem branco.
Baiá levantou-se da cama e começou a andar pelo quarto enquanto falava:
− Sistema do homem branco é diferente. Para nossa tribo conseguir as coisas tem que participar do Centro do Poder. Senão nada dá certo. É o que o Jotabê ensinou e ele está certo. Danilo também explicou como funciona o sistema do homem branco. E não adianta lutar contra. Até nossa tribo que viveu isolada até hoje está nesse sistema. Território de índio diminuiu e é parte do território deles. E você e os chefes têm que entender isso e me apoiar.
− Sem chance, Baiá. Nem eu nem os chefes o apoiaremos. Os chefes porque desconfiam de você, para eles um índio desconhecido e que, misteriosamente, fez sucesso entre os brancos. E eu, Baiá, não acredito mais em você. Não é mais aquele Baiá que tinha uma missão e acreditava nela. Você está falando como homem branco e até se vestindo como um. Olha só para isso, esse paletó e essa gravata horrível que parece uma borboleta. Não, Baiá, você não é mais o mesmo. Caiu na rede de Ceci.
  − Então Ceci é generosa e os deuses favoráveis. Até agora tudo está dando certo. Baiá não precisou fazer praticamente nada para tudo dar certo. Jotabê me disse que virei ídolo e tenho a voz influente.
− Jotabê é um mentiroso - falou Avati e acomodou-se na rede, procurando posição para dormir. Baiá ficou profundamente irritado ao ouvir tal acusação. Tudo que aprendera na vida civilizada, inclusive os mecanismos de poder que o fascinaram, devia-o a Jotabê. Não iria permitir uma afronta dessas. Caminhou com passos duros até a rede, chacoalhou-a e, se antes sua voz estava elevada, agora ele quase gritava:
− O que você disse? Jotabê é mentiroso? Vamos repita – e voltou a chacoalhar a rede. Avati, meio assustado com a reação do amigo, acomodou-se na rede, tentando não cair e ia falar qualquer coisa quando a porta se abriu. Era Danilo que, mesmo sem entender uma única palavra da língua nativa, logo percebeu que a situação poderia se complicar devido ao volume das vozes, cada vez mais alto que ele ouvia desde lá de baixo. Assim, meio sem jeito, olhou para os dois e disse:
− Tá tudo bem?
Baiá largou a rede, voltou-se para Danilo e dirigiu-se à sua cama. Avati tranquilizou-o, falando em português:
− Tá. Coisa de índio que pega igarapé errado.
Danilo ergueu os ombros e fez uma cara de não ter entendido nada, mas, pelo menos, parecia que pegar o igarapé errado não era assim tão sério quanto suas vozes elevadas e alguns gritos davam a entender.

Em sua casa, Jotabê viu e reviu as imagens que roubara do arquivo de Danilo. De um lado elas eram valiosas. Mostravam o prefeito e os candidatos eleitorais armando estratégias contra Baiá. Naquele atual momento, eram uma verdadeira bomba. Políticos tramando contra o mais novo ídolo das multidões, Baiá. E, claro, essa indignação acabaria por aumentar as campanhas de oposição. Bonifácio, produtor de uma das maiores emissoras de comunicação, não hesitaria em pagar, e pagar bem, por aquelas imagens, ainda mais agora que sua emissora resolvera tornar-se opositora do atual prefeito.
Mas, apesar de valiosas, aquelas imagens traziam preocupações e dificuldades. Como convencer Teobaldo, o presidente do partido, de que Baiá poderia ser útil depois daquela ameaça, feita pelo próprio Teobaldo na frente do prefeito e de um monte de políticos? Ser expulso do partido é o mesmo que matar a galinha dos ovos de ouro. Como continuar vendendo as entrevistas de Baiá sem estar filiado? E, pior, ter sido expulso! No frigir dos ovos, melhor mesmo era garantir o que se tem à mão e vender as imagens para Bonifácio. Se fosse expulso, tudo bem, pelo menos o dinheiro estaria garantido. E venderia bem, disso tinha certeza.
No dia seguinte, nem bem terminou de tomar o café da manhã, ligou para vários de seus contatos nas emissoras de comunicação. Queria saber quanto pagariam por imagens daquele tipo. Conseguida a informação desejada, ligou para Bonifácio:
− Que tal se você fosse dono exclusivo das imagens do prefeito confabulando com os candidatos? E contra Baiá, o ídolo do momento?
− Não posso falar muito, Jotabê, daqui a pouquinho entro no estúdio, mas me interessa sim. Só uma coisa: vai vender só pra mim? Você já me sacaneou outras vezes.
− Que é isso, irmão? A gente é amigo faz tempo... Essas imagens caem como luva na sua programação. Valem ouro. Te levo agora mesmo aí na emissora. É só deixar o dinheiro separado.
− Não estou na emissora. Tô viajando. Volto daqui a alguns dias. Aí você me liga e a gente acerta.
Se a manhã começou auspiciosa para Jotabê, o mesmo não se podia dizer de Danilo. Chamado às pressas à prefeitura, foi direto ao gabinete a pedido do prefeito que conversava ao telefone:
− Não me interessa Mário. Essa situação toda tem que ser resolvida. Até hoje você não prendeu aquele cinegrafista; as manifestações estão aumentando e você não faz nada para reprimi-las. Pelo contrário, deixa acontecer. E agora, mais essa, estão surgindo ameaças contra a gente. Daqui a pouco começarão a matar políticos. E você não se mexe! – o prefeito percebeu Danilo à porta, esperando, fez sinal para que ele entrasse e apontou o sofá – Não quero saber Mário, o problema é seu. Dê um jeito! – desligou o telefone e dirigiu-se a Danilo – estou rodeado de gente incompetente.  Já tomou café? Tem café ali, é só se servir. Preciso que você me faça um levantamento completo de todas as emissoras de comunicação. Quero nome e telefone dos principais mandachuvas.
− Mas, Excelência, o Departamento de Comunicações tem todos esses dados. É só pedir para eles.
− Eu sei. Mas é você que fará isso. Por fora, entende. Não quero que saia qualquer boato a respeito desses telefonemas. É um trabalho confidencial.
− Mas, Excelência – fez uma pausa e ajeitou-se na poltrona – não sou capacitado para esse tipo de trabalho.
− Ora, deixe de besteiras, Danilo. É só pedir a relação e pronto. Não tem que protocolar nada.
− Mas sua secretária pode fazer isso.
− Nem pensar. Isso daria um caráter oficial e ela, certinha do jeito que é, seria capaz de mandar um ofício.
Meia hora depois Danilo voltou ao gabinete com a relação nas mãos.
− Funcionário eficiente é outra coisa – disse o prefeito batendo em seus ombros e mandando-o sentar.
– Foi fácil. Eles dão essa lista para qualquer funcionário. É só pedir.
− Não anotaram nem seu nome?
− Porque anotariam?
− Todo cuidado é pouco, Danilo. Agora, quero que você me faça um favor. Ligue para cada uma dessas emissoras e fale com o principal responsável, em meu nome.
− Falar em seu nome?
− É. Falar em meu nome. Mas tem que ser uma conversa confidencial e direta com o responsável.
− Para falar...
− Para negociar. Comprar o silêncio deles sobre Baiá, esse índio maldito.
− Desculpe Excelência, não estou entendendo. Como assim comprar o silêncio?
− Não se faça de bobo, Danilo. Eles têm que parar de publicar matérias e entrevistas com o índio, só isso.
− Mas, Excelência, como falar em seu nome uma coisa dessas? Serei escrachado. Quem vai acreditar? Por que não chama o Genésio para fazer isso? Ele é mais gabaritado. Tem experiência e é conhecido.
− Danilo, essa operação tem que ser feita por gente que não tem nenhuma ligação comigo. Você é o cara.
− Como não, Excelência?! Trabalho aqui no seu gabinete desde o começo do mandato! Todo mundo sabe que eu redijo a maioria dos seus discursos.
− Mas é diferente, Danilo. Você é funcionário de carreira. Não é cargo de confiança. E nisso dei sorte em ter você aqui no gabinete. E você não estará cometendo nenhum crime. E ninguém precisa saber disso, certo?
Danilo sorriu nervoso. Não conseguia acreditar no pedido do prefeito: ajudar a destruir a carreira de Baiá, um amigo que, além de tudo, estava hospedado em sua casa. Vendo a hesitação de Danilo, o prefeito falou alto e claro:
− Se preferir, no lugar de um pedido, dou uma ordem. Você quem sabe.

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