Pequenas Mentiras

De ameaças e traições

Um ambiente de ameaças e traições, no jogo do poder. E vale tudo para salvar a própria pele.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
De ameaças e traições

Bonifácio começou a suar frio. Como ele poderia saber de algo que havia acontecido há tantos anos? Faltavam poucos dias para completar dezoito anos quando, junto com os amigos, por brincadeira, resolveram roubar um carro. Uma experiência diferente. Daquelas que a adrenalina sobe. Perigo. Aventura. Só não contavam serem pegos pela polícia. Todos fugiram, Bonifácio não tinha como, morava no local. Conseguiu livrar-se graças à influência do pai que, àquela altura, havia galgado na carreira profissional e tornara-se importante figura do mundo das comunicações. E esse tal de Jandir deve ser mesmo policial. Como saberia disso? As coisas foram ocultadas. Nada saiu na imprensa. Segundo processo? Meu Deus! Como ele poderia saber? O suor aumentou em seu rosto e Bonifácio interrompeu Jandir:
− Está bem. A gente pode se encontrar...
− Passo aí daqui a pouco – disse Jandir, animado. Desligou o telefone. Levantou-se, vestiu o paletó, pegou a chave do carro na gaveta e saiu. Olhou para o relógio. Em meia hora estaria no escritório de Bonifácio e, finalmente, teria o nome do cinegrafista. Com isso acalmaria Mário Sérgio e, ele próprio teria sossego, não seria mais pressionado. Jandir estava cansado. Afinal, tudo seria diferente, não fosse aquele índio ter aparecido. E esse maldito cinegrafista teve que filmar justo a prisão deles? Mas agora estava prestes a resolver o problema. Bonifácio não teria outra maneira senão entregar o cinegrafista. Depois, era com Mário Sérgio. Afinal, ele que era o delegado. Então, ele que decidisse. Apagaria o cinegrafista e o índio, ou só o cinegrafista? Resgatar o dinheiro seria mais difícil, ainda que possível de se conseguir com uma boa dose de pancadas. Seria só pegar o desgraçado.

Mal terminara de colocar o fone no gancho, Jotabê entrou na sala sem ser anunciado. Bonifácio, ainda suando frio, pegou um lenço de papel e limpou o rosto. Jotabê, gingando, vinha em sua direção e cantarolava:
− Imagine all the people. Liv…
− Não aprendeu a bater, não?
− Desculpe, Bonifácio. Sua secretária não estava. A porta estava meio aberta. Então entrei. Tudo bem?
− Estou muito ocupado. Trouxe as imagens?
− Estão aqui – enfiou a mão no bolso e passou um pen drive para Bonifácio – Pode ver. São sensacionais. Você tem todo mundo no bolso. O prefeito, os políticos. Pode escolher.
− Passa o número da conta. Faço a transferência depois.
Jotabê tirou uma caderneta do bolso da calça. Folheou suas páginas. Ditou um número de conta bancária sem deixar de observar o estranho comportamento de Bonifácio. Nunca transferia o dinheiro sem ver antes as imagens gravadas. Via uma, duas, três vezes. Depois regateava o preço. Era a primeira vez que iniciava a transferência sem checar! Nem sequer verificou se os arquivos abririam!
− Ué?! Não vai ver as imagens?
− Depois eu vejo. Pronto. O dinheiro está na sua conta. Agora, por favor, vá embora.
− Algum problema, Bonifácio?
− Não, não. Só muito trabalho. Ah! Por favor - fez uma pequena pausa – evite vir aqui. Tudo bem? Melhor a gente se falar por telefone – olhou o relógio, preocupado – certo? Tá. Tchau.
− Tudo bem. Porra! Nem parece que somos amigos. Tchau! Espero que aproveite bem. Verá que está pagando pouco – disse Jotabê, saindo da sala meio apressado. De cara fechada entrou no elevador, apertou o andar térreo. O quê poderia ter acontecido para explicar o comportamento tão estranho de Bonifácio?  Tá certo que ele não era nenhuma simpatia, mas também não era tão rude. E o mais estranho: pagou sem ver as imagens!
No térreo, Jotabê foi até o banheiro, o que o impossibilitou de ver Jandir aproximar-se da porta do elevador.
Bonifácio, que estava encolhido em sua cadeira, com o suor escorrendo pelo rosto, aguardava Jandir, que entrou acompanhado pela secretária. Esta ofereceu café, recusado pelos dois, e saiu. Bonifácio levantou-se, cumprimentou-o e sentaram.
− Então, senhor Jandir... Jandir... É Jandir, né? Então, o que o senhor deseja?
Jandir cruzou as pernas, reclinou-se no espaldar da cadeira, deu um sorriso cínico e falou pausadamente, enquanto observava Bonifácio limpar o suor da testa:
− O que já lhe pedi ao telefone: o nome do cinegrafista.
− Sinto muito, essa informação não posso dar. Impossível.
− O senhor não entendeu ainda?
Bonifácio manteve um longo silêncio. Procurou na gaveta da escrivaninha a caixa com lenços de papel, pegou um e passou pela testa, pela face, nariz, boca. Depois, quase gaguejando, falou:
− Entender o quê? Esse tipo de informação é protegido por lei.
− Então, vou repetir: preciso do nome do cinegrafista. Ponto.
Bonifácio, com as mãos trêmulas, pegou o fone e apertou a tecla para chamar a secretária. Olhou para Jandir e disse:
− Pedirei um café. Café e água. Quer? – a secretária atendeu - Traz café e água... Claro, para os dois – e desligou o interfone. Olhou para Jandir que, por sua vez, continuou calado, com o olhar fixo em Bonifácio que suava, sentindo a pressão cair e tentando disfarçar o corpo amolecido. Reagiu. Ajeitou-se na cadeira e respirou fundo. Jandir manteve-se quieto por mais algum tempo. Para Bonifácio a sensação de que o silêncio era ácido só terminou quando Jandir falou:
− Estou esperando. Quero o nome do cinegrafista.
Bonifácio resolveu tomar coragem. Inclinou seu corpo para frente, apoiou os braços na escrivaninha e falou com voz firme, entremeada por algumas pausas espelhadas em seu medo:
− O senhor é insistente. Já lhe falei. Não posso dar essa informação.
Jandir levantou-se, arrumou a gola do paletó velho e desbotado, levantou os ombros e deu uma última ajeitada na roupa. Olhou para Bonifácio, deu um passo à frente, sorriu e disse, adiantando o corpo para frente:
− Você gosta de histórias? Contarei uma. Era uma vez um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones e vivia aprontando. Para ganhar um dinheirinho extra, dava festinhas para os amigos e clientes que compravam seu bagulhinho, cocaína, haxixe, essas coisas. Aí um dia, caiu. Saca? Foi pego.
O rosto de Jandir, bastante próximo de Bonifácio, fez com que este arregalasse os olhos, seu suor aumentasse e as mãos e pernas começassem a tremer. Lembrava-se com clareza daquele dia, seu aniversário, que resolvera dar uma festa de arromba, como dizia seu pai. Era seu aniversário e pedira para um amigo trazer cocaína. Bonifácio nunca soube quem fez a denúncia. O fato é que foi acusado de tráfico, mas o processo, por influência do pai, foi arquivado por falta de provas. Ajeitou-se na cadeira, afastando-se de Jandir, respirou fundo e disse em voz baixa, quase inaudível:
− Não tinha droga. Foi acusação falsa.
Jandir levantou o corpo, ajeitou o paletó e, rindo, disse:
− E o meio quilo de cocaína encontrada na gaveta de seu guarda-roupa era o quê?
Bonifácio desviou o olhar, hesitou, depois, voltou a olhar para Jandir e disse: − Mas não provaram.
Jandir ajeitou novamente o paletó e começou a rir. Abaixou o corpo aproximando-se de Bonifácio à sua frente e disse em tom de ironia:
− Papai não deixou, não é? Mas agora papai não tá mais aqui – e riu – Sabe que posso desarquivar este processo? Todas as provas estão lá. Guardadinhas. É só querer – e voltou a sentar-se na poltrona. Olhou fixo para Bonifácio que continuava quieto, tentando controlar seu visível nervosismo, e concluiu – Vamos. Estou esperando. O nome do cinegrafista. De preferência junto com o endereço.
− Mas não tem como o processo ser reaberto.
− Não tem, é? Sabe aquele fulaninho que morava do lado de sua casa? Aquele que você não convidou? Então. Ele está prontinho para testemunhar contra você.
Uma moça entrou na sala com uma bandeja na mão. Interromperam a conversa e a esperaram sair, depois de servido o café e a água. A mente de Bonifácio fervilhava. Jamais tinha imaginado que o processo pudesse ser reaberto e muito menos que a única pessoa que pudesse incriminá-lo estava disposta a fazê-lo. Balbuciando, dirigiu-se a Jandir:
− E se eu der... Fornecer a informação?
− Tudo fica como está. Nada acontece.
− E como posso ter certeza de que nada acontece?
− Não pode.
Bonifácio mexeu-se na cadeira. Esfregou as mãos. Respirou fundo e pegou a xícara de café à sua frente. Antes de dar o primeiro gole, uma gota de café escorreu da xícara e caiu em sua camisa branca. Jandir observava. Bonifácio não deu atenção ao incidente e bebeu o café. Depois, abriu a gaveta e pegou um lenço de papel, passou-o sobre o líquido e, em voz baixa, disse: – Não tem jeito. Agora, só lavando – jogou o lenço na lixeira, fez uma pausa e continuou com a voz trêmula – E o que acontece a ele?
Jandir deu uma larga risada, ergueu os braços e voltou a rir:
– O que poderia acontecer? Pegar um processo por difamação? Acusar a polícia é coisa séria!
Desde o começo Bonifácio sabia que não teria outra saída senão entregar Jotabê, caso contrário estaria em apuros. Mas, depois daquela reação de Jandir, não havia mais dúvidas. Jotabê estaria encrencado e poderia até mesmo ser morto. Imagine! Aquele policial dizendo que Bonifácio pegaria um processo. Nem aqui nem na China. Matarão Jotabê, isso sim. Não dava para acreditar na palavra de um sujeito como aquele, sentado à sua frente e fazendo ameaças. Mas, fazer o quê? Se não entregasse Jotabê, quem pagaria seria ele. E se essa porra desse detetive estivesse falando sério? Bonifácio não tinha certeza de sair ileso. Primeiro, seria um escândalo público. Ele era diretor e um dos principais acionistas do maior veículo de comunicação do país, com plena consciência da necessidade de ter uma imagem pública, sem máculas, mesmo que a vida privada fosse o oposto. Ser condenado por tráfico então, destruiria sua carreira. Melhor mesmo seria entregar Jotabê. Afinal, já tinha sido sacaneado por ele algumas vezes:
− Não sei o nome dele, só o apelido.
– Endereço? Telefone?
– É. Tem o número do celular aqui.

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