Pequenas Mentiras

A namorada de Baiá

A história do índio Baiá ganha novos contornos, novos personagens e novos interesses.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
A namorada de Baiá

Depois que Jotabê foi embora, Danilo cumpriu seu ritual noturno. Subiu até sua biblioteca, despiu-se e, de pé, em frente ao balcão, munido de lápis e borracha, transcreveu as falas que lhe interessavam das imagens gravadas na reunião dos políticos, na Prefeitura. A ele pouco interessava quem ou o que falava, procurava apenas os contrastes que, editados, ganhavam uma ironia cáustica, surreal. Transcrever as falas em fichas, cataloga-las, ordená-las e reordená-las era o trabalho cotidiano que desenvolvia há anos, buscando o que ele chamava “a medula óssea da narrativa”.
Às três horas da manhã o gongo soou três lentas vezes. Danilo interrompeu seu trabalho. Desligou o computador, guardou as fichas organizadas em séries, vestiu-se e foi para o Marrocos, seu bar preferido. Lá, talvez, encontrasse Baiá e aproveitaria a oportunidade para lhe informar as novidades. Novidades não muito boas para o índio, mas que já eram por ele esperadas. Daria, claro, alguns dias para que ele arrumasse outra moradia.  Não havia motivo para pressa, ainda mais agora que o prefeito sabia que ele abrigava seu pior inimigo, o Socialista Selvagem.
No bar, logo ao entrar, Danilo foi convidado a sentar-se com uma jovem e seu namorado na mesa em frente ao balcão. Recusou o convite educadamente, foi até o balcão e pediu um café para o balconista, um senhor de seus setenta anos que atendeu, alegre, o pedido de Danilo.
̶  Tá alegre hoje, hein, seu Zé?!
̶  I num é prá tá, minino?! – falou enquanto colocava café na xícara tomando o cuidado para não deixar o bule respingar – Meu fio mais véio telefonou hoje dizeno que vem no fim de semana aqui prá casa. Vai ficar cinco dias e vai trazê meu netinho. Num é prá tá alegre, seu Danilo?
Ele concordou, sorrindo. O jovem namorado aproximou-se do balcão para fazer um pedido, mas, antes que o conseguisse, Danilo, que não parara de sorrir, lhe disse – tem gente que se alegra com pouca coisa – olhou para o velho que mergulhava o bule em banho maria e concluiu – né, seu Zé?!
O rapaz sorriu sem entender bem o que estava acontecendo, fez seu pedido e voltou a sentar-se. Seu Zé anotou o pedido e, antes de se afastar, olhou para Danilo e disse: – É com chavinha pequena que a gente abre o baú do tesouro, seu Danilo – e foi até a geladeira buscar o presunto para preparar o sanduíche pedido pelo jovem.
Danilo tomou o café. Enfiou a mão no bolso e, enquanto separava as notas para pagar a conta, perguntou:
̶  Por acaso o Baiá apareceu por aqui, seu Zé?
̶  Ué, cê num viu ele não?! Tá ali no fundo, atrás da coluna. Junto com uma gatona. Acho que tá meio bêbado, sabe?
̶  O Baía?!
̶  Ele mesmo. O índio, seu amigo.
Danilo conferiu o troco, enfiou o dinheiro no bolso, agradeceu o velho e foi apressado até o fundo do salão. Antes mesmo de cruzar o portal, uma enorme coluna que dividia a entrada em duas e ostentava um relógio redondo, tão branco quanto a parede que o sustentava, dando a impressão de seus ponteiros circularem no vazio, Danilo deparou-se com uma cena que ele jamais poderia imaginar: Baiá acarinhando os cabelos castanhos e longos de uma jovem que o olhava com ternura.
Esbarrando, propositalmente, aqui e ali nas cadeiras e mesas do salão vazio, Danilo foi notado pelo casal, que interrompeu os gestos carinhosos. Baiá apontou-lhe o indicador, olhou para a mulher e disse, rindo – É ele, o Danilo! – levantou-se e abraçou-o carinhosamente. Depois, apontando para a moça, disse: – É a Fernanda.
Danilo apresentou-se à moça, que permaneceu sentada, depois puxou uma cadeira e sentou-se:
– Estava mesmo precisando falar com você, Baiá. E o Avati, por onde anda?
– O Avati? Não sei não. Parece que foi pro norte.
– Ele volta?
– Voltar volta, mas não mora mais comigo. Fala que fiquei feiqui. Índio feiqui. Não sei o que é isso, nem ele me explicou! O que é feiqui? Índio feiqui.
Danilo riu. Fernanda ofereceu-lhe cerveja. Danilo, ainda rindo, recusou o convite e respondeu a Baiá:
– Não sei se tem alguma língua indígena que tenha essa palavra, com esse som, Baiá. Acho que não – riu, fez uma pausa e continuou – Desculpe. É que não aguento a ironia. Feiqui, como você falou, vem da língua inglesa. E acho que a pronúncia é essa mesmo, feiqui, sei lá!
Baiá bebeu um gole de cerveja, colocou o copo sobre a mesa e, sem disfarçar, enquanto alisava as pernas de Fernanda, que respondia contraindo os músculos, prendendo-lhe a mão, insistiu com Danilo:
–  Mas o que é feiqui?
Danilo respondeu de pronto:
– Feiqui é falso.
– Falso?! – exclamou Baiá que começou a enrubescer. Tirou a mão das pernas de Fernanda, colocou-a sobre a mesa, afastou o copo de cerveja, curvou-se na direção de Danilo e falou nervoso, frisando as sílabas – Di mintira?! – Seus olhos estatelados congelaram Danilo, que nunca tinha visto o índio enfurecido a tal ponto.
Tomado de surpresa, Danilo respirou fundo, deu uma chacoalhada no corpo e disse em tom brincalhão, na tentativa de minimizar a ira do amigo:
– Calma, Baiá, a coisa não é tão séria assim.
– Avati desonra Baiá chamando Baiá de mentiroso. Ele sabe que Baiá não é mentiroso. Baiá só quer ser político de verdade. Para defender o índio.
– Tô vendo mesmo. Cortou até o cabelo! E a gravata borboleta, cadê? Essa é mais bonita, sabe – falou Danilo, apontando para a gravata, numa tentativa de desviar o assunto. A longa convivência dos dois lhe deu a chance de perceber o quanto o índio se envaidecia quando se o considerava um político de verdade. Quem sabe, talvez Baiá caísse na armadilha e mudasse de assunto.
Baiá ouviu atento os elogios de Danilo, sorriu, olhou para Fernanda e disse, agradecido: – Coisa da Fernanda. Tá ajudando Baiá a se vestir como político de verdade. Olha – deslizou a mão direita sobre o paletó – ela que escolheu. Bonito né?!
Danilo sorriu satisfeito. Sua estratégia de desviar de assunto dera certo. Fez um gesto de concordância com a cabeça e, apontando para Fernanda, disse: – Como vocês se conheceram?
Dessa vez foi Fernanda quem riu. Danilo olhou para Baiá, buscando entender o motivo da risada, mas logo percebeu que o índio estava tão perdido quanto ele. Voltou a olhar para Fernanda, cuja risada agora transformara-se num sorriso delicado, pediu licença e foi buscar um café.
– Ué, será que seu amigo ficou bravo?
– Não. Ele foi só buscar café. Já volta.
Minutos depois Danilo retornou com uma xícara de café nas mãos. Sentou-se;
– Desculpe, mas precisava de um café.
Fernanda, toda dengosa, se dirigiu a Danilo:
– Você não ficou bravo comigo não, né?! Sabe, eu estava rindo porque foi muita coincidência, uma atrás da outra, desde que vi Baiá pela primeira vez.
– E quando foi a primeira vez?
– Quando eu o entrevistei, assim que chegou aqui no Centro.
– Você?! Você é a jornalista que gravou Baiá?!
– Sim, sou eu mesma. E olha que coincidência, por isso eu ri, depois que fui mandada embora, reencontrei Baiá. Agora eu agencio ele e – deu um sorrisinho sacana – a gente brinca um bocado, né, Baiá? – falou enquanto apertava a mão de Baiá estendida sobre a mesa. Depois deu-lhe um beijo no rosto. Baiá, entre acanhado e orgulhoso, sorriu, levantou-se e foi até o balcão pedir mais uma cerveja. Danilo não deixou de notar-lhe o andar enviesado. Comentou com Fernanda:
– Seu namorado parece estar bêbado!
– Mas ele dá conta do recado. Tem uma energiiiia – sorriu, jogou seus longos cabelos para trás e concluiu – Adoro brincar com ele.
Danilo deu um sorriso amarelo. Sentia-se um pouco desconfortável com o erotismo que a fala de Fernanda exalava. Ficou em silêncio. Bebeu o último gole de café. Olhou na direção do balcão e sentiu-se aliviado quando viu Baiá retornando.
Antes de sentar-se, Baiá aproximou-se de Danilo e colocou à sua frente o copo que trouxera junto com a cerveja. Encheu-o e disse, imperativo: – Danilo vai beber hoje. Aí vai entender Baiá.
Danilo curvou-se, agradecendo a gentileza do amigo, pegou o copo, ergueu-o, olhou para Baiá, que nada viu, pois estava de costas, disse: - Um brinde a Baiá e à sua nova vida – e colocou o copo na mesa, sem encostar-lhe os lábios.
Baiá sentou-se, encheu seu copo de cerveja e sorveu-o num único gole.  Limpou os lábios sob o olhar compassivo de Fernanda e falou para Danilo com a voz embaralhada pelo efeito do álcool:
– Danilo não conhece história de Baiá. Baiá, o Escolhido. No dia que Murucuturu apareceu no céu, Baiá nasceu. A mãe, índia. O pai, desconhecido. Baiá não sabe se é branco, se é índio.
– E que importância tem isso, Baiá? Branco ou índio, negro ou amarelo, é tudo gente. Você não concorda, Fernanda?
Fernanda abraçou Baiá, aproximou-se de seu rosto, deu-lhe um beijo e disse, olhando para Danilo:
– Adoro essa interrogação!
Meio sem graça, Danilo esboçou um sorriso e falou, resignado:
– Acho melhor a gente conversar amanhã. Você vai dormir em casa?
Baiá, com a voz pilecada, confirmou:
– Fernanda vai comigo.
– Tá. Tudo bem. Amanhã a gente conversa.
Antes que Danilo pudesse se despedir, Fernanda pediu licença e foi ao banheiro. Um policial passou por eles. Danilo acompanhou-o com os olhos, até que ele entrasse no sanitário masculino. Virou-se para o portal e surpreendeu-se ao ver, alheio ao perigo, a figura de Jotabê caminhando em sua direção.

Mais colunas