Pequenas Mentiras

A fama bate à porta

Depois de entrevista à imprensa, índio Baiá ganha visibilidade. Suas causas ambientais entram em cena para a grande massa e outros interesses passam a habitar seu entorno.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
A fama bate à porta

Baiá e Avati ficaram olhando para Jotabê que não escondia seu contentamento e gritava:
− Você ficou famoso, Baiá. A entrevista viralizou, sabe o que é isso?
− Claro que não sabe, Jotabê – disse Danilo rindo – pra eles tudo isso é novidade. Só agora estão conhecendo a civilização.
Contente com a alegria do amigo, Baiá, todavia, não lhe deu atenção, pegou a bacia com os peixes limpos e entrou na cozinha seguido por Jotabê. Enquanto colocava os peixes na grelha sobre o fogão de lenha, ajudado por Avati, Jotabê falava:
− A sua entrevista foi vista por milhares de pessoas, Baiá. Isso significa que você agora é conhecido. Tá vendo este celular aqui, ó – levantou o aparelho apontando-o para Baiá – milhões de pessoas usam e recebem informações. Quando uma informação é vista por muita gente significa que ela se espalhou pelo mundo, viralizou. Igual vírus que se propaga. Agora, sendo conhecido, fica mais fácil você conseguir que parem o desmatamento.
Danilo, que entrara na cozinha pouco antes, não acreditou no que ouvia e contra-argumentou:
− Não é bem assim, Baiá. Jotabê está exagerando.
− Baiá não consegue parar desmatamento? – perguntou Baiá.
− Claro que vai, Baiá – disse Jotabê, incentivando-o – a gente aproveita essa fama que você tem agora e usa para fins políticos, para pressionar o governo. Com apoio popular você consegue – voltando-se para Danilo – a gente podia antecipar nossa volta, não Danilo? Ficar aqui até amanhã, sem luz e sem carregar a bateria do celular será terrível. Podemos ir hoje...
− Nem pensar – interrompeu Danilo. Se você quiser, pode ir e levar os dois. Volto só amanhã.
Jotabê, que já havia pedido para Danilo hospedar os dois em sua casa, ficou preocupado e receoso do amigo voltar atrás, resignou-se:
− Tá. A gente vai amanhã. Porra! Diz uma coisa, por que você comprou esse sítio aqui, no meio do nada, sem luz, sem água, sem nada? E também não fez nada, só construiu essa casinha rústica.
Danilo riu:
− A ideia é essa. Não fazer nada e não deixar ninguém fazer nada para garantir a integridade da mata. Tem um monte de gente que fez isso por aqui.
Avati, que ajustava a madeira para controlar o fogo enquanto Baiá terminava de colocar os peixes na grelha, virou-se para o amigo e disse em sua língua nativa:
− Branco é esquisito mesmo. Falam de coisas estranhas. Parece coisa de outro mundo. Você os entende?
Baiá limitou-se a sorrir.
Ansioso, Jotabê olhava para o relógio com freqüência mas, nem por isso deixou de  aproveitar a estadia para responder às perguntas de Baiá, cada vez mais interessado em sua carreira de político, e elaborar estratégias. Para ele era impensável perder a chance de explorar o sucesso da entrevista de Baiá e, ao mesmo tempo, incorporá-lo às fileiras de seu partido. Avati, por outro lado, aproveitou para aprimorar seus conhecimentos da língua portuguesa tendo Danilo como mestre.
Quando retornaram à cidade, no começo da noite de domingo, Jotabê estava ansioso. Entrou na casa de Danilo, colocou seu celular para carregar e pediu o computador emprestado. Danilo deu um sorriso sarcástico e respondeu:
− Esqueceu? Computador só uso no trabalho. Aqui escrevo com lápis e borracha.
− É verdade, tinha esquecido. Posso ligar a TV?
− Fique à vontade. Enquanto isso vou ver como acomodar estes dois aqui em casa. Mas, já sabe, Jotabê, eles ficam aqui só até amanhã.
Com o controle remoto na mão Jotabê procurou pelos canais onde tivesse programas jornalísticos. Num deles, a TV Central, a que colocara a entrevista de Baiá no ar, anunciou uma matéria especial sobre o índio. Jotabê não se conteve. Foi até o pé da escada e gritou para que os três descessem e assistissem ao programa. Se antes estava ansioso, aquele anúncio o deixou numa excitação que cresceu ao assistir o programa e atingiu o auge quando a emissora anunciou que, devido ao sucesso  – os espectadores não paravam de telefonar e mandar mensagens – o índio  era procurado para que as ideias expostas na entrevista fossem aprofundadas.
Jotabê não pensou duas vezes. Pegou o telefone ao lado da TV, abaixou o volume e ligou para Bonifácio, seu conhecido e produtor da emissora. Do outro lado da linha, Bonifácio atendeu e pediu para aguardar. Jotabê esperou sem deixar de ouvi-lo falando com outra pessoa:
− Não é porque você conseguiu uma matéria de sucesso que isso te garante o lugar de âncora no jornal, Fernanda. Espere um pouco. Deixe-me falar com o Jotabê, depois a gente volta a conversar. Diga Jotabê, o que manda?
− Fiquei sabendo que vocês estão procurando um índio, o Baiá Buriti.
− Você não sabe como! Estou enlouquecendo. Os telespectadores telefonam e mandam mensagens o tempo todo. Você sabe dele? O conhece?
− Não só o conheço como sou seu agente.
− Tá brincando! Tem como a gente fazer uma entrevista com ele, aqui no estúdio?
− Tem sim, mas tem um preço, certo?
− Putz, Jotabê, está falando sério? Tem custo?
− Claro que tem custo, Bonifácio. O que você acha?
− Tá. Mas preciso de autorização da diretoria. Acho que concordarão. Dá para fazer a entrevista amanhã, logo cedo?
− Dá. Assim que tiver resposta da diretoria, me ligue. Anote meu celular, caso não consiga, ligue para o fixo.
Danilo, sentado no sofá ao lado de Baiá e Avati, não se conteve, indignado com o que ouvia de Jotabê:
− Agente? E vai cobrar para que Baiá dê uma entrevista?
− Claro. Baiá não saberia negociar. E eles ganham um monte. Não é justo ficar sem cobrar. Depois Baiá está em alta – riu – é preciso aproveitar. Afinal, dinheiro nunca é demais. E amanhã, − voltando-se para Baiá – antes da entrevista, te apresento para os membros do partido. Precisamos organizar a pauta de sua entrevista. Não se pode deixar isso na mão dos jornalistas que desvirtuam tudo.
− Isso é sacanagem! Baiá não veio aqui para ser porta-voz de seu partido, Jotabê. Ele veio para lutar contra o desmatamento da floresta, ajudar seu povo.
− Mas ele terá maiores chance de vencer com nossa ajuda, Danilo. Você não percebe?
Baiá, completamente convencido por Jotabê e sem entender a posição de Danilo, falou:
− Com Baiá político fica mais fácil. As águas do rio correm mais rápidas sem rochas para atrapalhar. Meu avô tem razão.
− Rio? Rochas? Seu avô tem razão? Não entendi nada, Baiá – questionou Danilo.
Avati, atento a cada palavra, sentiu-se à vontade para esclarecer:
− Histórias do avô. Homem que nem rio, desviar rochas.
− Então, Avati – falou Baiá animado – a gente está no caminho certo. Agora o rio está correndo.
− Bem, não tenho nada com isso – disse Danilo – Farei um café. Querem?
− Não, – respondeu Jotabê - preciso ir embora, devolver o carro. Amanhã – voltando-se para Baiá – passo aqui bem cedinho para te levar à reunião – despediu-se e saiu.

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