Opinião

Uma viagem

Em Pequenas Mentiras, César Carvalho traz novos desdobramentos da saga envolvendo o índio Baiá. Inocência e ideais conduzem sua busca.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Autor do Grafite: Crânio (SP). Autor do Grafite: Crânio (SP).

Ele olhava cada detalhe da foto e sorria. Os prédios retangulares e cinzas. As vias expressas. O vai e vem nos calçadões. Vendedores ambulantes. Um longo gramado e, ao fundo, um prédio entre duas curvas, uma para cima, outra para baixo. Olhava e sorria. Aquelas mesmas imagens projetaram-se em sua mente durante o ritual que o escolheu como negociador junto ao homem branco. Agora ele sabia, era o enviado dos deuses. A foto no jornal comprovava.
O motorista, intrigado com a alegria visível do carona, tirou a mão do volante, pensativo, roçou a barba e perguntou:
− Como você chama?!... Baiá?! Ah, Baiá... Então, Baiá, explica uma coisa: por que essa cidade lhe deixou tão alegre. Não tira os olhos dessa foto! Vai morar lá?
Baiá contraiu o rosto, olhou para a foto, voltou os olhos para o motorista e disse sério:
− É para onde os deuses me mandaram.
− Os deuses?!
− É. Madeireiros estão roubando nossa floresta. Desmatando tudo.
− Espera um pouco, o que madeireiro tem a ver com os deuses?
− Madeireiro está cortando nossa floresta, diminuindo nossa terra. Os deuses mandaram mensagem para Baiá ir até essa cidade falar com chefe dos homens brancos – fez uma pausa, apontou o indicador para a foto e comentou – aqui, esta cuia virada para cima, outra, para baixo, o que é? Lugar sagrado dos brancos?
O velho motorista sorriu e disse, meio sem graça:
− Sagrado?! – Fez uma pausa e continuou irônico – é. Não são deuses, mas mandam na gente. É o Centro do Poder, onde nossos políticos estão. Ferrando a gente.
− Políticos?!
− Meu jovem, você está fora do mundo? Os políticos, os que ganham as eleições e infernizam nossas vidas. Está vendo essa estrada?! Viu como é mal cuidada, cheia de buracos?! A responsabilidade é desses caras, que vivem aí dentro... − apontou com o dedo indicador − É... Aqui, nesse lugar que você chamou de cuia.
− Homem branco não cuida da estrada?
− Homem branco não cuida, quem cuida são os políticos, Baiá. Caramba, em que escola você estudou?
− Baiá foi à escola de homem branco. Você estudou?
O velho motorista deu um sorriso triste:
− Estudei. E como! Virei até engenheiro, há muito desempregado, claro – gesticulou a cabeça de um lado para o outro, parou de sorrir e ficou sério, olhando a linha de horizonte.
Baiá retomou a palavra:
− Baiá aprendeu a falar, mas não aprendeu nada de político. Ganhou diploma da escola primária. Um pedaço de papel grande. Por isso também os deuses me escolheram, falo sua língua.
− Já entendi. Você foi enviado pelos deuses porque fala nossa língua. E vai fazer exatamente o quê, aí, na cidade?
− Falar com chefe para impedir desmatamento.

O motorista riu malicioso:
− Está no caminho certo. Os políticos ficam todos aí. Duvido que consiga alguma coisa.
Baiá, sem perceber-lhe a ironia, não se conteve, virou-se para Avati no banco traseiro, pegou o jornal, apontou para o Centro do Poder e disse empolgado:
− Está vendo, Avati?! É nesse lugar que a gente tem que ir. É lá que mora o chefe dos brancos.
Avati, com a cabeça caída para frente, não ouviu o amigo e continuou cochilando. Baiá estava prestes a chamá-lo quando o motorista deu uma freada brusca, logo depois de uma curva.  Alguns metros à frente, cruzando a estrada, dois boiadeiros conduziam um pequeno rebanho. Avati bateu a cabeça no banco da frente e acordou assustado:
− Que aconteceu? Chegamos?!
− Não. Paramos por causa dos bois, estão impedindo a passagem.
O motorista, reclamando da falta de cuidado dos boiadeiros, mas ao mesmo tempo curioso com a conversa entre os dois índios, perguntou:
− O que seu amigo está falando?
Baiá lhe explicou. Ele ficou ainda mais curioso:
− Por que ele não fala português?
− Só eu aprendi a língua dos brancos.
− Só você?!
− Sim. Ninguém falava português. Depois que madeireiro matou e expulsou a gente, tribo precisava ter alguém para falar com homem branco. Funcionário do Serviço de Proteção mentia muito. Falava uma coisa para a gente e outra para os brancos. Aí chefe me escolheu.
Segurando o volante, atento à velocidade do caminhão carregado na descida da serra, o motorista balançou a cabeça de um lado para o outro, e disse meio desconsolado:
− Vocês são teimosos. O governo cansou de oferecer educação aos índios e muitos recusaram.
− Educação de branco enfraquece índio.
− Como enfraquece Baiá?! Qualquer sociedade civilizada depende da educação. É só ver os índices nos jornais – fez uma pausa, olhou para Baiá, contraiu os olhos – ah, deixa pra lá, você é índio e não lê jornal. Aliás, ninguém lê.
− Índio quando volta, volta fraco. Não sabe mais caçar veado, nem andar na selva. Às vezes deixa de ser guerreiro. Fica perdido.
O motorista contraiu os olhos, afastou um pouco a cabeça e olhou para Baiá sem desviar sua atenção da estrada:
− Ué! Você acabou de dizer que estudou na escola dos brancos! – fez uma pausa, e com a voz hesitante continuou – perdido porque estudou na escola dos brancos?! – deu uma risadinha.
Baiá limitou-se a voltar os olhos para a linha do horizonte. O motorista reconheceu ter tocado em algo delicado, mas, fazer o quê? Sozinho, sem ter com quem pronunciar palavra, a companhia daqueles dois tinha vindo bem a calhar. E cometer impropriedades era, de certo modo, inevitável. Ainda mais com desconhecidos.

Pouco depois, Baiá começou a folhear o jornal. Deteve-se primeiro na notícia que anunciava a vitória do governo em aumentar o nível de vida dos cidadãos. Segundo o jornal, a miséria estava praticamente extinta. Baiá leu atentamente a notícia e pediu esclarecimentos ao motorista: 
− O que é miséria extinta?
O motorista riu:
− Precisa aprender muito, Baiá. Miséria é quando você não tem nem o que comer, sabe?! Tem que morar na rua, pedir esmolas. Foi extinta, acabou?! Foi é aumentada. Não acredite em tudo que lê Baiá.
− Se Baiá não pode acreditar, então para que ler? Palavra perde o valor.
Com um sorriso irônico nos lábios, o motorista ouviu Baiá e explicou:
− Cada um de nós vê as coisas de um jeito, Baiá. Se a gente contar um pro outro o que está vendo agora, vamos falar coisas diferentes.
− Mas verdadeiras! Aconteceu.
− O que a gente lê nos jornais também¬ aconteceu.
− Jornal escreveu: miséria extinta. É verdade, escreveu. Acabou a miséria.
O motorista riu à beça, chegou às gargalhadas, depois, menos eufórico, disse:
− Baiá, você é de uma inocência sem fim. Vai ter muito que aprender meu jovem. Vamos pra primeira aula – dirigiu os olhos irônicos para Baiá e, com a voz mais séria, continuou – o jornalista que escreveu essa matéria é pago pelo anunciante. Tá, já sei sua dificuldade com a língua. Explico. O anunciante é aquele que paga a conta, certo?! – deslizou o polegar sobre os dedos médio e indicador – grana. Entende?! Dinheiro. No caso, quem está pagando a conta é o governo, aí o jornalista escreve sobre coisas que interessam ao governo, entendeu? Por isso você não pode confiar em tudo que lê.
Dessa vez foi Baiá quem riu, ainda que timidamente. Depois, vendo o olhar curioso do motorista, falou:
− Cabeça de homem branco é muito complicada. Lê jornal, mas não pode acreditar no que lê. Carrega um RG para saber quem é. Viver na floresta é mais fácil. É só viver.
Avati, que adormeceu no banco de trás do caminhão, acordou. Olhou para os lados, tentando reconhecer o ambiente, depois se dirigiu a Baiá:
− Estamos chegando?!
− Ainda não. Chegaremos ao final da tarde.
−  Baiá – disse Avati, apontando para a extensa vegetação na beira da estrada – que mato é esse?
Sem saber o que responder, Baiá perguntou ao motorista, que respondeu:
− É soja. Vocês vão cansar de ver isso por aqui. Algodão. Soja. Milho. Gado – o caminhão atingiu o alto da colina e ele vislumbrou as luzes urbanas, apontou o indicador e disse – olha a cidade, em meia hora a gente chega.
Pouco depois o caminhão estacionava numa rua pouco movimentada. Antes de desembarcarem, o motorista advertiu-os:
− Tomem cuidado. Melhor trocar essa roupa. Mendigo aqui vai pra cadeia. A propósito, meu nome é Manuel. Quando forem pra Bahia, me visitem.
Baiá agradeceu a carona, fechou a porta e dirigiu-se à calçada. Depositaram seus alforjes no chão, olharam um para o outro, sem saber que direção tomar. Baiá ouviu passos, virou-se. Dois policiais aproximavam-se. 

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