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Por uma educação que nos ajude a pensar e não que nos ensine a obedecer

A educação deixou de “ser qualidade” no mundo dos dados estéticos, para ser “quantidade”

Por: Isabel Gonçalves
Por uma educação que nos ajude a pensar e não que nos ensine a obedecer

Vivemos em uma sociedade perfeitamente ajustada a um sistema mórbido que mais nos tira do que dá. Uma sociedade que (com)vive em paz com a corrupção; com o mercantilismo da saúde,  que prioriza o tratamento de doenças em detrimento da prevenção ou até mesmo a cura; que (com)vive em paz com a violência cotidiana das ruas e com a intolerância de uma sociedade retrógrada, intolerante, conservadora e preconceituosa; uma sociedade que aceita passivamente a imensa desigualdade social e educacional de nosso país; que (com)vive em paz e sem entender as consequência da extração e destruição, sem parcimônia, de bens naturais comuns a todos nós, que são nossas riquezas naturais e nosso patrimônio cultural.

Enfim, uma sociedade perfeitamente ajustada a este sistema mórbido de exploração socioambiental, sociocultural e socioeconômico, baseado na valoração do ser humano pelo que ele consome e pode exibir. Exaltamos como “progresso e avanço” a nossa atual capacidade de consumo, subvertemos a lógica, nos dias de hoje, “qualidade de vida é igual capacidade de consumo”. No entanto, não “percebemos”, isto é, não conseguimos dar significado a nossas profundas deficiências no campo do transporte público, segurança pública, saúde, saneamento básico e educação básica, entre tantas mazelas em que nossa sociedade está imersa. Bradamos que nunca vivemos tão bem, sem nos darmos conta de que nossa qualidade de vida há muito nos abandonou. Não conseguimos entender que nossa vida para o consumismo e, consequente bem estar material, é inversamente proporcional ao nosso bem estar social.

Mas como compreender o contexto de tudo que nos envolve se nossa educação está a cada dia que passa mais redutora e não convida a reflexão?

As universidades deram as costas para o ensino de base e para o país. Em um país onde uma pequena minoria dos universitários são “educados” e bancados por investimentos maciços, para pensar em sua profissão e como se encaixar no mercado de trabalho, o centro do “conhecimento” dá as costas para o ensino de base. A universidade se satisfez com as cotas, que são as pontes, mas deixa de lutar pela qualidade do ensino que formará cidadãos capazes de problematizar um país, ou os futuros candidatos à academia, ou seja, a Academia se satisfaz com o “paliativo”, mas não se engaja e luta para a solução efetiva do problema.

Afinal no que se transformaram as universidades desse nosso país? Qual a função cidadão destes centros do “saber” em um país onde grande parte das cidades sequer tem saneamento básico?

Um professor universitário está preocupado com sua pontuação no Lattes, nos artigos que vai publicar e no seu reconhecimento pela comunidade cientifica, o tal reconhecimento dos seus pares. Precisamos com urgência urgentíssima nas universidades de orientadores, PHDs na sua essência da palavra, professores que sejam respeitados por sua forma de pensar, orientar e inspirar. Professores que sejam capazes de pensar, não apenas no seu próximo artigo cientifico, na sua próxima consultoria ou no seu partido político (infelizmente nossa universidade está se transformando em braços de partidos políticos - educam-se militantes, não pensadores), mas precisamos, também e principalmente, de professores que pensem e estimulem seus alunos a entender que fazem parte e têm responsabilidades para com uma nação, que estimulem seus alunos a entender que o conhecimento adquirido na universidade é um bem comum não propriedade "privada".


Não vivemos na Inglaterra moderna onde muitos fizeram seu doutorado, mas no Brasil. Em nosso país, por mais que não gostem, ainda é função sim dos PHDeuses meter a mão na “merda”, pois aqui ainda se vive em muitos pontos da Inglaterra Vitoriana, sem saneamento, onde se morria de cólera.

É função cidadão das universidades problematizar a base social de nosso país, o centro do “conhecimento” não pode jamais se satisfazer com múltiplas bolsas de iniciação científica, mestrado, doutorado, ciências sem fronteiras e concursos públicos, pois o Brasil é muito maior que 2% da sociedade! 

Pois enquanto as universidades vivem encasteladas em seus muros e feudos, este mórbido e desigual sistema de prioridades impede que nossas crianças tenham a capacidade de desenvolver todo seu potencial cognitivo, que desenvolva e amplie suas habilidades e competências. Por mais que se abram atalhos entre estes dois mundos, sem que seja feito um trabalho efetivo para destruir a desigualdade educacional, mórbida na essência - que é a forma como esta criança é criada, o ambiente onde ela cresce e a escola onde foi educada - eles serão meramente um paliativo, estamos enxugando gelo.

É impossível dissociar, para quem quer promover uma revolução educacional e cultural, saneamento básico, qualidade da educação básica, carinho e atenção dos pais, pois fazem toda diferença no desenvolvimento cognitivo da criança e estão diretamente relacionados.

E o que está sendo feito efetivamente nestas três frentes? Pouco, muito pouco.

As escolas de base vivem na época do cuspe e giz. Mas não vivemos mais na época do cuspe e giz onde o professor por 30 anos repete a mesma aula, quer dizer, vivemos esta realidade sim, em muitas salas de aulas com goteiras no telhado, salas super lotadas, cadeiras quebradas e direção, professores e alunos desmotivados.

As escolas da base estão sucateadas e desestruturadas, as aulas são dadas por professores mal formados, mal pagos e desmotivados. Pergunto, existe vontade política para ampliar o conceito de educação nas escolas indo além do “conteudismo”? Há espaços para formação de educadores que sejam facilitadores da inteligência coletiva, que consigam, mais do que tudo, mediar todas as formas de construção do conhecimento?

Existe um trabalho sério e efetivo que busque uma revolução na educação em médio e longo prazo que possibilite nas escolas uma forma de educar que estimule a criatividade, transgressão, compartilhamento de ideias, menos competitividade e mais associatividade, que contemple a musica, arte, literatura, viagem, construção coletiva do conhecimento....?

É necessária uma profunda mudança no currículo com intensa participação dos professores e que este seja abordado de uma forma local. É fundamental uma reformulação na forma de pensar a gestão das escolas e, também, mudança na concepção dos prédios escolares e do material didático, com salas equipadas com equipamentos modernos. É imprescindível investimentos efetivos na formação continuada desse professor, além de um significativo aumento de seu salário e diminuição de sua carga horária, para que este possa enfim ter tempo de ser ator ativo na  “construção” e facilitação do conhecimento coletivo.

É imprescindível uma reformulação conceitual e estrutural na forma de se conceber a educação, qualquer ação solitária é como tapar uma goteira em um telhado cheio delas, é necessário trocar todo o telhado! De outra forma, por mais que se invista, é jogar dinheiro pelo ralo, e não mudar absolutamente nada.

Bem, a educação vem sendo sucateada há décadas, começou com o regime militar, baseado no treinamento e adestramento de nossos jovens, mas ganhou força com a progressão continuada, onde em sala de aula o professor é um mero espectador. A educação deixou de “ser qualidade” no mundo dos dados estéticos, para ser “quantidade”. Importante é mostrar que hoje há menor evasão escolar e mais jovem nas escolas, mesmo que para este fim, sejam formados analfabetos funcionais.

Que futuro há em um país como o Brasil quando nós não conseguimos ligar os pontos e entender que todo o "lixo" está sendo varrido para debaixo do tapete? Mas que este lixo (educação, saúde, segurança, transporte, saneamento básico) mesmo debaixo do tapete continua lá, contaminando, adoentando, matando, segregando.

Infelizmente, longe dos olhos, longe do coração!Por fora, bela viola, por dentro pão bolorento. Quem dera que toda a “sujeira e lixo acumulados” por gestores incompetentes pudesse "agredir" nossa sociedade de forma tão impactante que os fizesse compreender que estamos vivendo uma ficção de bem viver, que muito precisa ser feito, mas para isso precisamos conseguir enxergar e dar contexto aos problemas que afligem a nossa sociedade.


(*) Isabel Cristina Gonçalves é Adamantinense, Oceanógrafa, Mestre em Educação e Doutora em Educação Ambiental. Atualmente trabalha como pesquisadora, Pós-Doutoranda, pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no projeto: "Mudanças climáticas globais e impactos na zona costeira: modelos, indicadores, obras civis e fatores de mitigação/adaptação - REDELITORAL NORTE SP".

 

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