Pequenas Mentiras

Conversas ébrias

Novas revelações públicas impulsionam a ascensão política do índio Baiá.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Conversas ébrias

Passada a surpresa, Danilo ficou intrigado. Será que aquelas imagens são as mesmas que Jotabê gravou? Lembrava-se perfeitamente do dia em que ele aparecera em sua casa, pedindo para guardar a fita e falou de seus planos de usá-la para fins políticos. Lembrava-se de tê-lo desaconselhado, mas Jotabê era capaz de tudo...  Mas vender para a TV?! Bem, Jotabê não é exatamente alguém em quem se possa confiar. Na dúvida, e para evitar julgamentos falsos, melhor perguntar.
− Jotabê, essas imagens...
Fingindo não ouvir e fazendo cara não muito convincente de surpresa, Jotabê virou-se para Baiá:
– Você viu isso?
Baiá franziu a testa.
Jotabê insistiu:
− Você não viu a TV? É você nela. Sendo preso junto com o Avati.
Baiá voltou a franzir a testa. Do que estaria falando? Visto o quê? Estava sentado meio de lado sem prestar qualquer atenção à TV. Jotabê lhe explicou que ele e Avati haviam sido filmados quando foram presos, e as imagens estavam na TV. Ele ajeitou a cadeira, interessadíssimo e feliz, apareceria na TV. Jotabê explicou:
− Daqui a pouco mostra de novo. Com mais detalhes. – deu-lhe um tapa carinhoso e disse efusivo – Baiá agora é notícia.
Danilo, sem tirar os olhos da TV, falou sarcástico e baixinho:
– O prefeito sifu – começou a rir e cobriu a boca com a mão.
Alguns clientes aproximaram-se. Dois deles conversavam sobre o fenômeno do momento, o índio midiático:
– Agora essa? Foi preso!
– É isso que dá falar a verdade.
– Com Cristo foi a mesma coisa.
O intervalo comercial terminou, e a notícia da prisão dos índios foi dada em primeira mão, em caráter de urgência e certa dramaticidade. A âncora do jornal, morena de cabelos longos e lisos, simpática e bonita como costumam serem as âncoras das TVs, noticiou em tom dramático a prisão dos dois índios gravada por um anônimo. Criou certo suspense sobre o fato de terem sido confundidos com mendigos e adquiriu um tom objetivo, quase impessoal, ao falar das conseqüências políticas daquele ato ilegal cometido pela polícia. Crime grave, previsto pela Constituição, que proíbe qualquer agressão aos índios. Explorou o lado misterioso de Baiá, um índio que apareceu do nada e virou um sucesso com suas entrevistas e declarações à TV. No final da matéria, a jornalista deixou explícito o que estava sendo dito o tempo todo: houve um crime e o responsável era o prefeito.
Dois dos clientes, que tinham se adiantado para ver e ouvir melhor a notícia, voltaram para seus lugares. Um comentou:
− Esse índio é fantástico. Imagine! Falar o que ele fala. É fantástico!
− Concordo – parou de andar, olhou para a mesa ao fundo da sala, onde estava Baiá, apontou o dedo e falou alto – Olha! É ele! – e puxou o amigo pelo braço na direção de Baiá.
Quando chegaram próximos à mesa, o mais animado e bonachão colocou a mão sobre o ombro de Baiá e perguntou:
− Você é o Baiá, não é?
Baiá, que se afastou um pouco, meio estranhado, fez sim com a cabeça e deu um sorriso sem graça.
− Cara! Você é o máximo. Vem cá me dê um abraço – e puxou Baiá, levantando-o da cadeira.
O outro, mais sisudo, falou para Baiá, enquanto este era abraçado pelo amigo:
− Você é um verdadeiro mestre. Obrigado. Posso também lhe dar um abraço?
Baiá mal se viu livre dos braços de um e foi envolvido pelos do outro. Danilo, vendo aproximar-se da mesa mais um cliente, saiu à francesa para o banheiro. Jotabê estava embevecido com o sucesso de Baiá confirmado, primeiro, pelos autógrafos, agora recebendo aqueles abraços fraternos. E isso sem contar o sucesso no mundo digital.
Quando voltou do banheiro, o garçom colocava cerveja nos copos de Jotabê e Baiá. Danilo aproveitou, pediu um café e sentou-se. Baiá pegou o copo e deu um gole. Olhou para Danilo, depois para Jotabê, percorreu o salão do bar sem fixar seus olhos em nada. Bebeu mais um gole e sorriu. O garçom voltou com o café. Danilo pegou a xícara, sentiu o aroma penetrar em suas narinas e deu um sorriso irônico:
− Se antes estava preocupado, depois dessa terá um ataque cardíaco.
− De quem você está falando, Danilo?
− Do prefeito, Jotabê. Ele vai tremer na base. Se com as entrevistas do Baiá ele já se sentiu atacado, imagine agora, com essas imagens. Acaba com o sonho de reeleição.
Jotabê não se conteve ao ouvir as palavras do amigo. Apertou o ombro de Baiá, deu um amplo sorriso e falou:
− Sabia que ia dar certo.
− Sabia o quê, Jotabê? – perguntou Danilo, curioso.
Jotabê ficou meio sem jeito. Olhou sem graça para o amigo e falou pouco convencido:
− Que o Baiá ia ajudar nossa campanha.
− Deixe-me entender – disse Danilo intrigado – Você se apropriou da imagem do Baiá – fez uma pausa, colocou a mão no queixo, semicerrou os olhos e disse – Espere um pouco. Essas imagens estão naquela fita que você deixou em casa, não?
Jotabê, pego de calças curtas e sem chances de alegar não ter ouvido, acabou concordando, sem graça. Danilo continuou falando:
− Porra, Jotabê, falei para você não fazer isso. Está usando as mesmas armas do inimigo!
− Ora, Danilo, deixe de ser moralista – retrucou Jotabê – em política isso é lícito. Depois, um crime desses não pode passar em branco.
− E como essas imagens chegaram à TV?
− Bem – fez uma pausa, hesitou, gaguejou – eu, eu dei um jeito.
− Vendeu as imagens para o Bonifácio, o produtor?
− É. Mais ou menos isso. A TV do Bonifácio está empenhada na campanha contra o prefeito. Eles só não podem ser muito descarados porque, você sabe, jornalismo tem que ser objetivo, não pode tomar partido.
Danilo olhou firme para Jotabê e falou irônico:
– Não, Jotabê, não vai me dizer que você fez isso?
Jotabê ficou sem graça. Danilo riu. Bebeu um gole do café, olhou para Baiá e disse:
− Esse cara é maluco. É capaz de tudo – meneou a cabeça em desaprovação. Olhou para Jotabê, pegou a xícara e bebeu o restante do café.
Jotabê, que havia se desviado do olhar de Danilo, aproveitou o silêncio, bateu no ombro de Baiá, serviu mais cerveja, levantou o copo e disse:
− Um brinde a Baiá, o destruidor de prefeitos.
Baiá levantou-se da cadeira com um enorme sorriso de satisfação, pegou o copo e brindou, com a voz embargada pelo álcool:
− Viva! Baiá agora segue o fluxo das águas. Nada vai parar Baiá.
Bebeu de um só golpe a cerveja, sentou-se e, virando-se para Jotabê, perguntou baixinho:
− Quando Baiá for político vai poder usar roupa bonita com aquele pano pendurado no pescoço?
− Esse pano chama-se gravata Baiá – respondeu-lhe Jotabê – e você usará sim esses ternos lindos que os políticos usam. Você será um grande político.
− Muita gente vai ficar com inveja de Baiá e Baiá terá que fazer como Yorixiriamori, virar passarinho.
Danilo, sempre muito interessado em histórias, pediu a Baiá que contasse a de Yorixiriamori, no que foi prontamente atendido:
− Yorixiriamori era um guerreiro muito forte e bonito. E as mulheres se apaixonavam pelo seu canto e só queriam saber dele. Recusavam as brincadeiras de outros índios. Os homens, com muita inveja, tentaram matá-lo, aí Yorixiriamori se transformou em pássaro e fugiu. Baiá, vestido de homem branco com gravata, vai dar inveja a muita gente e terá que virar passarinho.
   Danilo e Jotabê riram. Baiá, despreocupado, pegou a garrafa de cerveja para servir-se, mas estava vazia. Jotabê propôs que tomassem mais uma e fossem embora. Baiá adorou a ideia, bebeu avidamente a cerveja quando esta foi servida, pagaram a conta e saíram.
A madrugada chegava perto de seu fim. As ruas vazias. O vento frio, apesar do outono, característico do planalto, acariciava os corpos desagasalhados dos três amigos. Assim que chegou à calçada, apoiando-se ora em Danilo, ora em Jotabê, Baiá parou, olhou à sua direita e teve a sensação de que a rua se perdia na linha do horizonte. Voltou o rosto para a esquerda e teve a mesma sensação de a rua se perder no infinito. Baiá fechou os olhos, sentiu-se atordoado e cambaleou. Jotabê, que estava mais próximo, segurou-o. Baiá resmungou:
− Aqui é o centro do mundo.
Jotabê não entendeu e comentou com Danilo:
– Olha o que a gente está perdendo – apontou para o céu – hoje é noite de super lua, e a gente não terá o privilégio de vê-la com esse céu nublado. Nem super lua, nem estrelas – alguns raios distantes anunciavam tempestade – só chuva.
Danilo riu e comentou:
Você está enganado, Jotabê. Super lua só o mês que vem.
Durante todo o trajeto até a casa de Danilo, Baiá, completamente bêbado, cantarolou com a língua enrolada:

Yorixiriamori
fugir da inveja vou
no canto do pássaro,
passarinho sou.

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