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A Arte de Ignorar

Questionamentos permitem constatar o desconhecimento e a falta de percepção de nossa sociedade.

Por: Isabel Gonçalves ()
A Arte de Ignorar

Com um pouco de sensibilidade e atenção é possível compreender que existe muito mais para fazermos, enquanto consumidores "conscientes", do que apenas consumir "verde" e dar o destino adequado aos nossos resíduos. Por meio de uma pergunta simples, quase simplória, é possível constatar o desconhecimento e a falta de percepção de nossa sociedade, que acredita que um produto oferecido na prateleira do supermercado foi criado através de um passe de mágica. Questione a quem estiver mais próximo sobre a origem dos materiais que consumimos. Não será surpresa se, de forma recorrente, muitos depois de surpreendidos e após uma breve reflexão, respondam que não sabem.

A maioria, certamente, não se dará conta que para a produção de um cigarro, por exemplo, há um longo caminho percorrido - plantação do fumo (usualmente bancada pela empresa que industrializa o produto. É importante também, compreender que o fumo substitui no campo os espaços outrora ocupados por plantação como a de batata e milho, como aconteceu na cidade de em São Lourenço do Sul - RS).

Em São Lourenço do Sul, a colônia pomerana que plantava alimento (milho e batata), passou a plantar fumo e a conviver com; contaminação do solo, água, ar e, claro, do agricultor e seus familiares que utilizam o agrotóxico e manuseiam a folha de fumo no processamento das folhas em galpões - os índices de suicídios de agricultores pomeranos na cidade são altíssimos e estão diretamente ligados a contaminação pelo manuseio de agrotóxicos e ao ambiente contaminado.

Mas um produto não se faz apenas da matéria prima, há também: transporte; industrialização - e toda a "sorte" de impactos socioambientais na transformação desse produto, importante frisar, no caso o cigarro, a imensa quantidade de metais, e outros aditivos indesejados que entram no processo de industrialização, que compõem o produto final (vide figura); mais transporte; exposição nas lojas; compra; deposição final - usualmente no chão ou em lixões a céu aberto. 

Para produzir uma folha de papel, por exemplo, o que é necessário? A provável resposta será: árvore. Sim, precisa-se de árvores, mas as árvores dependem de quê para crescer? Qual é a cadeia de produção do papel que compramos na papelaria?

Infelizmente quase nunca nos perguntamos - o quanto de matéria prima, energia, trabalho humano, fontes de contaminação, quem e o que foi contaminado no processo desde a extração, passando pela produção até a deposição final, quando compramos um bem de consumo.

É estranho que um ser tão curioso como o humano nunca se questione sobre todo o caminho percorrido por um produto que consumimos até chegar a nossas casas. É impressionante a quantidade de pessoas que não saberão responder qual é a matéria-prima de uma garrafinha pet (ver figura abaixo), por exemplo. Pode parecer não ter nenhuma importância não sabermos sobre isso, mas nosso desconhecimento nos transforma em seres passivos e reféns de vontades de governos e grandes corporações, que com o nosso consentimento baseado em nossa ignorância, estão livres para explorar, contaminar e até fazer guerras em prol de seus ganhos bilionários, exagero? Creio que não meus amigos, vejamos...


Por que guerras como a do Iraque em pleno século 21 são declaradas e contam com forte apoio civil do país invasor? Afinal, pela lógica, nenhum pai gostaria de mandar sua filha ou filho para uma guerra, em um país distante, para correr risco de morte, o que faz um governo para iludir um povo e ter aprovação popular? Ele mente e escamotei a verdade, como? Mantendo a população ignorante. E como isso é possível? Simples, uma sociedade sem cultura e educação com contexto e complexidade forma e molda analfabetos funcionais, incapazes de interpretar textos, que dirá sua realidade socioambiental, sociocultural, sociopolítica, socioeconômica e sócia histórica.

A guerra do Iraque, por exemplo.

Uma pesquisa feita, nos Estados Unidos, com alunos do último ano do ensino médio, chegou a uma conclusão estarrecedora, a pergunta: "qual a origem da gasolina"?

A resposta a esta questão foi espantosa e estarrecedora: 65% dos alunos não souberam responder acertadamente a essa questão (ASSISTA VÍDEO), segundo eles, a gasolina tem sua origem no posto de gasolina. Sim senhoras e senhores, para estes adolescentes a gasolina tem sua origem em um posto de gasolina.

Este país promoveu uma guerra recente pelo domínio do petróleo do Iraque. Milhares de iraquianos e norte-americanos morreram para que os estadunidenses tivessem gasolina, para moverem a sua colossal frota de automóveis e manter seus lares aquecidos no inverno.

Fica claro, ao nos depararmos com resposta como estas, que absurdos, como o são as guerras, só são possíveis quando a população não pensa, quando não dispõe de informação, e principalmente, quando não possui habilidades e competências para contextualizar, refletir, problematizar e consequentemente agir.

Por que vocês acham que os noticiários estão cada vez mais velozes, sem que haja tempo para contextualização e reflexão de temas?

Por que mudam de assunto, "linkando" temas sem conexões em instantes, da morte nas ruas a peixe exótico achado no Sri Lanka?

Por que as escolas de ensino fundamental e médio se transformaram em berço de conteúdos estéreis e centros de redução do conhecimento e não de contexto e complexidade?

Por que professores do ensino de base - que deveriam ter formação para agirem como facilitadores da inteligência coletiva - responsáveis pela formação crítica de crianças e adolescentes, são desvalorizados e não há preocupação com sua formação?

Por que as universidades formam analfabetos funcionais que se transformam em medíocre mão de obra técnica para o mercado?

Por que universidades no Brasil não são centros de construção coletiva, da transgressão e da criatividade?

Simples, o que aí está, o 'status quo' não resistiria a uma sociedade reflexiva, problematizadora e ativa. Ele precisa de exércitos formados e treinados para reprodução e manutenção do sistema, jamais mudá-lo.

(*) Isabel Cristina Gonçalves é Adamantinense, Oceanógrafa, Mestre em Educação e Doutora em Educação Ambiental. Atualmente trabalha como pesquisadora, Pós-Doutoranda, pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no projeto: "Mudanças climáticas globais e impactos na zona costeira: modelos, indicadores, obras civis e fatores de mitigação/adaptação - REDELITORAL NORTE SP".

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