Pequenas Mentiras

O poder da mídia

Um novo desdobramento sobre a saga do índio Baiá. Agora, os reflexos, no Poder, decorrentes da divulgação de um vídeo que até então, pelos interesses, não poderia ser divulgado.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
O poder da mídia

Final de tarde. Mário Sérgio encerrou seu expediente. Dispensou o convite para beber com os amigos, pegou sua maleta e saiu. No estacionamento olhou para o carro. Estava cansado. Talvez fosse melhor deixá-lo estacionado na delegacia e chamar um taxi. Pegou o celular. Hesitou. Quer saber de uma coisa? Amanhã seus compromissos só começariam depois do almoço, poderia, portanto, dormir até tarde. Desligou o celular, pegou a chave e entrou no carro.
Sentou-se ao volante, colocou a chave no contato, mas não deu a partida. Reclinou-se na poltrona, fechou os olhos e respirou fundo. Sentia os músculos contraídos relaxarem. Que dia exaustivo! Depois de meses de trabalho, conseguiu prender um bando responsável pela maior parte dos roubos a bancos na cidade. Com a gangue presa, o prefeito não o incomodaria por causa da pressão dos banqueiros. Menos mal. Deu a partida e saiu em alta velocidade. É melhor chegar logo, já que em casa poderia relaxar na banheira de hidromassagem, jantar e dormir.
Algumas quadras depois foi parado por um policial. Mário Sérgio deu uma freada brusca. Abaixou a janela do carro. O policial se aproximou e falou incisivo:
− O senhor estava acima da velocidade. Por favor, desligue o carro. Seus documentos.
Mário Sérgio sorriu irônico, desligou o carro, tirou os documentos do bolso interno do paletó, tirou a carta de motorista e entregou-a ao policial junto com o distintivo de delegado.
O policial enrubescido devolveu os documentos pedindo mil desculpas. Mário sorriu, ligou o carro e, antes de pisar no acelerador, disse:
− Parabéns! É um bom policial – e saiu em alta velocidade.
No horizonte, os raios cortavam as nuvens escuras. Mário Sérgio olhou para o céu e meneou a cabeça. Sua época de tempestade havia passado. Vivia agora mais ou menos tranquilo. No trabalho, a pressão do prefeito havia diminuído. Seus amigos políticos, todos inimigos do prefeito, concordaram em lhe dar um tempo, evitar qualquer contato até que a eventual desconfiança de Genésio sobre ele se esclarecesse. Mário Sérgio ficara intrigado quando Genésio perguntou-lhe sobre o bar frequentado pela oposição. Por mais que refletisse, não chegara a nenhuma conclusão do porquê daquela pergunta. A não ser que desconfiassem de alguma coisa. E por que desconfiariam? As reuniões que tinha eram super secretas. Feitas em surdina mesmo. Adolfo Guimarães, o prefeito, em hipótese alguma poderia saber que seu delegado era forte aliado de seus inimigos. Aliança perigosa, mas com vantagens. Derrotado o prefeito, seus aliados tinham condições de alçá-lo a cargos mais importantes. Mordomias. Mordomias e mais mordomias. Viagens ao exterior. Jóias para a mulher e para a amante... Por outro lado, se o prefeito fosse reeleito, ele poderia manter-se delegado, desde que sua aliança fosse mantida em sigilo. Situação confortável para ele, que manteria seu emprego, e continuaria sendo aliado dos inimigos do prefeito. Afinal, como delegado, poderia contribuir para solapar a base política de Adolfo com uma simples ordem mal interpretada. Mas, Mário Sérgio estava convicto de que eles ganhariam as eleições. Adolfo perdeu muitos votos por causa da repressão violenta às manifestações e, depois do aparecimento do índio, perdeu mais ainda. Dificilmente terá chances de se reeleger.
E por falar nesse índio, Jandir até hoje não trouxe notícia desse safado desse cinegrafista. Por que Jandir estaria falhando? Coisa rara num homem como ele. Super eficiente. Mais ainda quando a ação envolve violência. E o danado é bom. Metade da gangue não precisou nem ser presa, ele matou. É o principal investigador da delegacia. Mas agora parecia demonstrar certa incompetência. Além de não prender o cinegrafista, deixou que ele levasse o dinheiro. Quanta grana! Mas a coisa toda não é pelo dinheiro não. É pelo prazer de pegar esse filho da puta e torturá-lo. Fazê-lo sofrer até o último suspiro. Bem, uma coisa Mário Sérgio tinha que concordar. Aqueles dois índios que ele liberou da prisão e se livrou de uma encrenca ganharam fama e estão criando problemas para o prefeito. Imagine. Esse tal de Baiá, o mais carrancudinho dos dois, agora é ídolo do povão que o chama de Socialista Selvagem. No lugar de soltar estes índios, deveria ter mandado matá-los, isso sim. Gente de esquerda. Comunista. Só falta comerem criancinhas.
Em casa, Mário Sérgio mergulhou na banheira de hidromassagem. Relaxou. Uma hora depois, a mulher o acordou, ajudou-o a se enxugar, colocou-lhe o roupão e levou-o para a sala de jantar, servindo-lhe uma dose de uísque como aperitivo. Antes de se sentar, Mário Sérgio ligou a TV, deixando-a em volume baixo.
Ao abrir a tampa da caçarola, Mário deu um enorme sorriso. Aproximou o rosto e inspirou fundo o aroma:
− Meu prato favorito. Coq au vin. Presente dos deuses. Merda! Não devia ter bebido uísque, assim eu poderia encher a cara desse vinho branco e comer esse Coq au vin. Mas, – falou com o semblante preocupado – meu anjo, você fez esse prato com carne de galo, né?!  Porque você sabe, esse prato tem que ser com galo, senão é fake.
A mulher riu e o tranquilizou. Havia conseguido o galo com uma amiga, cujo marido tinha uma fazenda que, aliás, eles precisavam visitar porque ela, a amiga, era mulher do Eduardo Tif, importante vereador e influente nas questões do Centro do Poder. Conveniente manter amizade e boas relações com gente desse tipo, né não? Mário Sérgio desconversou. Tif era o presidente do partido político do prefeito. Seria difícil explicar a seus amigos a amizade com um inimigo daquele porte. Mesmo sendo agente duplo e prejudicando o máximo possível o prefeito, seu papel acabava aí. Não. Melhor manter distância desse tipo de gente.
− Meu anjo – terminando de mastigar a comida – o tempero está uma delícia, mas – hesitou – a carne está um pouco dura!
A mulher mostrou-se contrariada. Não falou nada. Serviu-se de um pedaço, fatiou-o e colocou-o na boca. Deu algumas mastigadas e disse:
− É. Poderia ter ficado mais macia – deu um sorriso contido, ergueu a taça de vinho e brindou.
Mário olhou para a TV e viu a vinheta de abertura do noticiário. Pediu à mulher que aumentasse o som. A mulher obedeceu e perguntou, preocupada:
− Aconteceu alguma coisa para você querer tanto ver o noticiário bem na hora do jantar?
− Não, meu anjo, não aconteceu nada. É que estes dias foram tão corridos que estou desinformado. Nem sei como estão as pesquisas sobre os candidatos! Sabe, do resultado dessa eleição depende o meu, digo o nosso destino. Psiu! Vai começar.
Mastigando com calma e entremeando cada garfada de seu coq au vin com um gole de vinho, Mário Sérgio não tirou os olhos da tela da TV. A âncora anunciou as principais notícias do dia e uma delas era a descoberta de imagens feitas por um cinegrafista amador  revelando a arbitrariedade policial prendendo dois índios, um deles, agora famoso por suas declarações, era Baiá Buriti.
Mário parou de comer.  Seus olhos estatelaram-se. Sem tirá-los da tela, levantou-se e caminhou em direção à TV.
− Nossa! O que foi, homem? Vem sentar e terminar de comer.
Parou em frente à TV. O corpo meio curvo. Estático. Os olhos hipnotizados pela luz eletrônica. Não deu sinais de ter ouvido a mulher chamando. A jornalista terminou de apresentar o resumo das notícias, e seguiu-se o intervalo comercial. Mário Sérgio não se moveu. O noticiário reiniciou. A primeira notícia foi a da gravação, recentemente descoberta, dos índios sendo presos.
À medida que a notícia se desenrolava, o rosto de Mário Sérgio se contraía. Como aquelas imagens foram parar numa emissora de TV? Quem, além de Jandir e Genésio, tivera acesso àquela gravação? O que falaria ao prefeito? Tinha-lhe prometido que aquelas imagens não vazariam. E agora? As palavras do prefeito revivificaram em sua mente: O que me importa, Mário, é que se essa fita cair em mãos erradas minha carreira acaba. Mas a sua acaba antes. Suas mãos começaram a tremer. Os braços começaram a tremer. Suas pernas começaram a tremer. Mário sentiu-se flutuar. Seu corpo bambaleou. Sua mulher segurou-o, evitando a queda e colocou-o sentado na poltrona em frente à TV. Desligou o aparelho. Perguntou-lhe o que estava acontecendo. Por que se abalara tanto com a notícia sobre aqueles índios? Mas não obteve resposta. Seus olhos fixos na TV miravam o nada. A mulher voltou a insistir para que terminasse o jantar. Ele virou-se e pediu uma dose de uísque.
− Tá maluco? Olhe como você está? E ainda quer beber? Nem pensar. O que está acontecendo, posso saber?
− Traga-me uma dose de uísque – falou em tom áspero e incisivo.
A mulher voltou com o copo de bebida. Ele bebeu de um só golpe. Levantou-se e foi até o balcão da sala, próximo ao aparelho de TV. A mulher, curiosa, acompanhou-o. Ele olhou para as gavetas. A mulher contraiu o rosto, preocupada. Naquelas gavetas estavam suas armas. Ele abriu a primeira delas.
A mulher gritou, apavorada:
− Não. Você não vai fazer isso. Pelo amor de Deus!

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