Pequenas Mentiras

Inimigo invisível

As novas relações vividas pelo índio Baiá trazem amigos e inimigos, visíveis e invisíveis, alimentados por um amplo jogo de interesses.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Inimigo invisível

Baiá colocou a xícara de chá sobre a mesa, olhou para Danilo, cujo rosto contraía-se levemente, e perguntou com sua voz grave e calma:
− Danilo está triste?
Danilo franziu os olhos, deu um sorrisinho:
− Não, não. Só um pouco contrariado. Só isso.
− Con... tra... riado?!
− É. Gosto muito de você, do Avati. São ótimas companhias e tudo. Não gostaria de estar tendo essa conversa, mas fazer o quê? Porra. Desde que vocês estão aqui nunca tivemos problema, nenhum problema, nenhum probleminha sequer – fez uma pausa, olhou para o buraco na parede e continuou – É. Tirando esse buraquinho aí – apontou para o vão na parede da cozinha e riu.
Baiá riu junto. Logo as risadas mesclaram-se numa dupla e dúbia gargalhada que durou uma infinidade de segundos. Quando se acalmaram, Danilo retomou a conversa:
− Bem, Baiá, voltando ao assunto chato, não queria pedir isso para vocês. São caras legais, adoro os dois. Divirto-me. Mas, que chatice! Vocês me atrapalham. Tem também essa outra questão, né Baiá? Você agora é um cara famoso. Quando descobrirem que você mora aqui, to frito. Acaba meu sossego. Forever.
− Forévir?!
− É. Forever – pronunciou lentamente, corrigindo a pronúncia de Baiá – Para sempre, sabe. Eternamente. Sem fim. Não posso deixar que isso aconteça. Preciso de sossego, Baiá!
− Danilo vai ter sossego foréver – disse Baiá colocando a xícara sobre a mesa querendo dizer ao amigo que havia entendido plenamente o sentido da palavra inglesa, mas Danilo, ao que lhe pareceu, não prestou a menor atenção, perdido e angustiado com a possibilidade de perder o sossego. Depois de décadas morando sozinho essa ideia o aterrorizava. Afinal, como qualquer ermitão, adquiriu os vícios inerentes: objetos, discos e livros nunca saíam do lugar, a cozinha mantinha-se impecavelmente limpa e a cama sempre bem arrumada. Claro, mudanças havia quando a faxineira, quinzenalmente, exercia sua função e mudava algumas coisas de lugar, mas isto não o incomodava. Aprendera a viver sua solidão de tal maneira que chegou a escrever uma crônica, publicada num dos jornais da cidade, falando das vantagens do morar sozinho contra-argumentando com Antônio Maria, cronista e compositor carioca, que dizia: a única vantagem de se viver sozinho é que se pode deixar a porta do banheiro aberta.
Baiá aguardou em silêncio alguns segundos, depois repetiu num tom de voz mais alto:
– Danilo pode ficar trankilo. Vai ter sossego foréver. Baiá não tem com que se preocupar. Com dinheiro que ganha de Jotabê paga oca. Danilo preocupado. Precisa aprender a viver igual passarinho.
Danilo apoiou as duas mãos na mesa de jantar, ajeitou o corpo, rindo, disse:
− Passarinho? E como é que o passarinho vive, Baiá?
− Passarinho não fica preocupado se vai ter comida. Prefere cantar e alegrar a mata. Na hora que tiver fome, come. Na aldeia Baiá cantava para alegrar todo mundo. Baiá sabia que tinha comida quando tivesse fome. Aqui, mundo branco, Baiá não canta muito não. Vida de branco muito corrida. Atrapalha. Também não tem comida para comer na hora da fome. Tem que comprar. Ter dinheiro. Sem dinheiro fica com fome. Mas Baiá tem dinheiro. Então tem comida.
− E o que o Jotabê está te pagando? As entrevistas que você dá?
− É. Jotabê bom agente. Termina a entrevista ele dá o dinheiro. Muito dinheiro.
− Sério? Quanto?
− Bastante. Só vi monte de dinheiro assim no banco.
Danilo deu uma risadinha irônica:
− Nossa, Jotabê anda generoso – falou num tom irônico, apoiando as costas no espaldar da cadeira – e quanto é esse montão de dinheiro?
− Muito – respondeu Baiá que enfiou a mão no bolso, tirou um maço de notas variadas e apontou-o na direção de Danilo – Dificil Baiá contar tudo. Conta você.
Danilo pegou o maço. Virou-o de um lado para o outro, calculando mentalmente quanto poderia ter naquele maço. Começou a contar. Fechou o maço e devolveu-o a Baiá, meneando a cabeça em sinal negativo:
− Baiá, com esse dinheiro você não vive dois meses nessa cidade. Nem em muquifo, cara! Aí quero ver você vivendo igual passarinho.
Baiá franziu os olhos, levantou um pouco a cabeça e ergueu levemente o tronco. Pegou o maço de dinheiro, colocou-o frente a seus olhos, levantou a cabeça:
− Esse monte de dinheiro é pouco?
Danilo riu, meio sem graça:
− É, Baiá. É pouco. É pouco e é muito. São muitas notas, um monte, mas que valem pouco. Olha só. Dá o maço aqui – estendeu a mão, pegou o maço e começou a separar as notas, uma a uma – Tá vendo aqui? – apontou para as notas agrupadas em ordem crescente: dois, cinco, dez, vinte, cinqüenta e cem – Esse aqui, por exemplo, e que tem mais notas, muitas notas, valem só dois reais. Olha só a que vale mais, a de cem, tem só meia dúzia. É o que menos tem. Então, Baiá, não adianta ter muito papel que não vale nada. Porra. Não posso acreditar que Jotabê esteja aprontando. E justo com você. Quê tipo de negócio ele fez?
Baiá sentia-se meio confuso. Por tudo que Danilo havia falado, dava a entender que Jotabê o estava enganando. Mas como? Um guia enviado pelos deuses? Como um ser desses pode estar enganando o discípulo? Quando tudo parecia estar perdido, quando os deuses pareciam ter-lhe abandonado, apareceu Jotabê dando-lhe um novo sentido à sua vida e à sua missão. Passo a passo o mestre ensinou-lhe o caminho da política. Mostrou-lhe como, tornando-se um político, ele poderia resolver o problema de sua tribo e expulsar os madeireiros perversos. Não. Danilo, certamente, estava enganado. Depois, outra. Os deuses não mandariam Jotabê como seu guia se Baiá não estivesse no caminho certo. E os deuses só ajudam quem está no caminho certo. Claro. Danilo está errado. Jotabê é bom. Serviu-se de uma xícara de chá e, antes de dar o primeiro gole, respondeu a pergunta que lhe fora feita:
− Jotabê falou que ganho comissão.
− E quanto de comissão? Quantos por cento?
− Por cento? Jotabê não falou não. Que é por cento?
− É uma parte do total. Por exemplo, recebi cem e te dou dez. Te dei dez por cento. Entendeu. Quanto por cento você recebe?
Meio sem jeito, Baiá chocalhou os ombros:
− Não sei. Jotabê não falou.
− Você sabe, pelo menos, quanto você recebe em cada entrevista?
− Sei não.
− Deixa estar. Terei uma conversa séria com Jotabê. Aquele cretino. Baiá, ajude a tirar a mesa e a lavar a louça. Depois, quero conversar com você lá no escritório. Mostrar umas coisas meio preocupantes.
− Danilo hoje só preocupação. Precisa sentar na beira do rio. Barulho da água enche a cabeça e cabeça esvazia. Aí preocupação fica no fundo do rio e o rio calmo.
− Talvez você tenha razão, Baiá. Mas são coisas iminentes. E perigosas, sabe.
− Iminente? Danilo preocupado, língua enrolada.
− Nada disso, Baiá – disse rindo, enquanto colocava pratos e xícaras sobre a pia – não é preocupação, é medo mesmo. Estão aprontando para você, Baiá. E é coisa séria.
− Iminente?
− É, Baiá. Prestes a acontecer. Mais dia, menos dia, acontece.
− Acontece o quê – perguntou Baiá aproximando-se da pia, colocando a louça na cuba e abrindo a torneira. Depois, pegou um a um os utensílios, começou a passá-los pela corrente d água, para tirar os resíduos, e depositá-los no secador ao lado da pia. Danilo interrompeu-o:
− Não, não. Eu lavo. Você, enxuga e guarda – ocupou o lugar de Baiá e começou a lavar a louça enquanto explicava-lhe sobre o perigo iminente corrido pelo índio – Estão tramando para te excluir da vida política. Podem acabar com sua raça.
− Baiá não tem medo do inimigo.
− Mas esse é um inimigo diferente. Você não o enfrentará cara a cara. Não saberá nem quem foi. É um inimigo invisível.
− Como ele ataca? Se Baiá souber como ele ataca, Baiá se defende. Baiá sabe criar estratégia, Jotabê ensinou.
− Os ensinamentos de Jotabê não servirão de nada se te apagarem da história, Baiá. Você deixa de existir. Evapora. Não tem registro. Não tem registro.
Baiá, que enxugava um prato, parou e olhou para Danilo com ar assustado:
− Morre assim, do nada. Sem lutar?
− É. Do nada. Lutar contra quem? Você não vê ninguém?
Baiá, que retomara a secagem da louça, meneava a cabeça negativamente:
− Baiá nunca lutou contra inimigo que não vê. Na selva, quando inimigo esconde, deixa sinal. A gente descobre. Vê inimigo. Mundo branco inimigo não aparece. Então como luta?
− Vamos terminar de arrumar esta cozinha e te mostro.

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