Pequenas Mentiras

Cartas à mesa

O índio Baiá, que se desponta na política, se depara com as articulações pelo poder, onde “é necessário” mentir e se camuflar como camaleão.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Cartas à mesa

Jotabê mudou a marcha do carro, o câmbio enroscou. Contraiu o rosto e deu um tapa no volante. Pisou na embreagem, engatou novamente, acelerou. Estava irritado. Desde que deixara Danilo na prefeitura, no começo da tarde, tinha procurado Baiá e Avati sem sucesso. Que falta de responsabilidade! Os dois tinham reunião marcada com os membros do partido, mas sumiram. Durante a reunião, só ouviu críticas e reclamações. O que o índio disse contraria nosso programa. Esse índio vai acabar sendo uma roubada. Coisas desse tipo, como se fosse responsável pelo que o índio falasse ou deixasse de falar. O importante é que estava fazendo sucesso. Colocá-lo nos trilhos era uma questão de treino, educação. O pessoal teria que ter paciência.
O semáforo fechou. O carro à frente parou. Jotabê deu uma brecada seca, evitando o choque. Socou o volante:
− Porra! Só faltava bater – olhou o relógio do painel – Caramba! Estou atrasado – resmungou em voz alta. O carro à frente começou a distanciar-se, Jotabê acelerou. Tinha menos de dez minutos para devolver o carro do amigo precisado por causa da mãe doente.  Como se viraria depois sem carro seria outra história. A casa de Danilo ficava no caminho. Faria uma última tentativa para encontrar Baiá. Precisavam conversar. Colocar as coisas nos eixos.
Estacionou o carro. Olhou para o céu em parte coberto por nuvens chuvosas. Putz! Chuva sem carro é foda! Bem, mas com a grana recebida pela venda das imagens de Baiá, daria para comprar um. Deu uma risadinha e caminhou até a casa de Danilo. Nem chegou a entrar. Baiá estava sentado na soleira da porta.
− Olá, Baiá. Vamos tomar uma cervejinha?
Baiá deu um sorriso. Levantou-se. Iria chamar Avati. Jotabê impediu:
− Não, Baiá. Só você. Estou sem tempo – apontou o dedo para o relógio de pulso – tenho que devolver o carro. Vamos! Preciso falar com você. Só com você.
Durante o trajeto, Jotabê tentou conversar. Em vão. Baiá, assustado com o jeito nervoso do motorista, que desenhava ziguezagues em alta velocidade pelas ruas e avenidas, não lhe prestava a menor atenção. Devolvido o carro, Jotabê e Baiá caminharam em passos lentos em direção ao bar.
− Baiá – disse Jotabê, meio tímido – não me leve a mal. Mas a gente precisa ter uma conversa séria – esperou, mas não houve reação alguma, então continuou – Sabe aquela reunião que a gente ia ter hoje?
Baiá meneou a cabeça.
− Reunião com o partido, Baiá. Pra gente avaliar seu programa na TV. Ah! Deixe para lá. O problema Baiá é que o pessoal tá puto da vida com você! E sobrou para mim. A gente tem que corrigir isso, senão não dá certo. Tem que fazer o que te ensinamos.
− Baiá falou tudo. Jornalista é que não deixou. Pergunta de jornalista levou Baiá para igarapé. Eu voltava pro rio. Mulher vinha com nova pergunta e Baiá voltava para o igarapé. Não consegui falar do desmatamento.
− Baiá, tudo tem sua hora e vez. Agora, nessa campanha, a gente tem outras prioridades, entende?
− Desmatamento não é importante?!
− Não, Baiá, não é que não seja importante. É que... – fez uma pausa, olhou à frente e apontou para o outro lado da calçada, mudando de assunto – Lembra daquele bar? O Marrocos.
Baiá parou de andar, olhou ao redor e fixou os olhos na entrada. Viu o luminoso e reconheceu o bar onde tomara seu primeiro porre na vida e deu um sorriso. Retomaram a caminhada. Segundos depois, Baiá virou-se para Jotabê:
− Baiá não pode mais ser político? Jotabê desistiu de ser professor?
Jotabê deu um sorriso, colocou a mão sobre os ombros de Baiá:
− Que é isso?! Jamais deixaria de ser seu professor. É uma honra. E você será um bom político, te garanto? Quer ver? – tirou a mão do ombro de Baiá, pegou o celular do bolso, conectou-o à internet e mostrou-lhe algumas telas – Está vendo? Você é um dos caras mais falados, curtidos e comentado nas redes sociais, jornais, TVs, rádios. Você é um sucesso, Baiá. Mas tem que aprender a falar a nossa língua. Seguir a cartilha. Mentir até, se for preciso. Os fins justificam os meios, sabe?
A poucos metros da entrada, ouviram um grito. Era Danilo pedindo que o esperassem.
No bar, logo na entrada, à esquerda, numa mesa encostada à parede branca de azulejo envelhecido, dois casais conversavam e bebiam cerveja. Na mesa à frente, um senhor lia um jornal e tomava uma caipirinha. Sentados no balcão, dois homens conversavam. O mais velho virou-se para o trio que entrava, fixou os olhos em Baiá, interrompeu a conversa e levantou-se com o dedo apontado, falando em voz alta:
− É o índio da TV. É o Baiá! Quero um autógrafo – voltou até o balcão, pegou um guardanapo e deu para Baiá.
Baiá, atônito, pegou o guardanapo e olhou para o homem. Olhou para o guardanapo. Que ele estaria querendo? Pensou, e olhou para Jotabê que entendeu o recado e ajudou-o, falando em voz baixa:
− É só escrever seu nome.
Enquanto Baiá procurava um local para apoiar o guardanapo e autografar, os demais clientes que acompanhavam o diálogo levantaram-se e foram abraçá-lo e pedir-lhe autógrafos. Jotabê esperou a última assinatura e puxou Baiá pelo braço, despediu-se educadamente dos demais, pediu desculpas e, acompanhado por Danilo, foi para o fundo do bar, vazio naquele momento.
Jotabê chamou o garçom, depois, falou, rindo, e olhando para Baiá:
− Vamos tomar uma cervejinha?
Baiá riu e completou:
− Geladinha... Com cachaça.
− E eu vou é no meu cafezinho – disse Danilo.
O garçom, depois de anotar o pedido dos três, ligou o aparelho de TV num volume bastante baixo e acendeu algumas luzes do salão, até então semi-iluminado. Danilo apontou para a TV e disse, olhando para Baiá, num jeito meio irônico, mas simpático:
− Seu sucesso está tirando o sono de muita gente! – e riu.
Jotabê se arrumou na cadeira, colocou os braços sobre a mesa, avançou o corpo em direção a Danilo e perguntou:
− Tem novidade? Sabe de alguma coisa?
− Só de ouvir falar – se esquiva Danilo - fofocas que correm pelos corredores do Centro. Estão dizendo que o prefeito considera Baiá perigoso porque tem um discurso corrosivo.
Jotabê riu. Bateu no ombro de Baiá e lhe disse:
− Baiá revolucionário. Corroendo as bases do poder – soltou do ombro de Baiá, recostou as costas no espaldar da cadeira e disse, rindo – Esse prefeito é sem noção. Se discurso mudasse alguma coisa, o mundo seria outro – a voz adquiriu um tom grave – Ele está mesmo preocupado, Danilo? Você acha isso possível? – perguntou, tentando obter alguma informação mais concreta sobre seu inimigo político número um.
O garçom chegou com as bebidas. Serviu o café para Danilo e pinga e cerveja para Jotabê e Baiá. Enquanto ouvia Jotabê, Baiá bebeu a cachaça numa só tragada e, em seguida, deu um gole na cerveja, reduzindo-a a quase metade do copo.
− Isso não terá importância se os eleitores não forem afetados. O medo é esse. Parece que Baiá está mudando a opinião de muita gente – comentou Danilo.
Jotabê pegou o copo de cerveja, ergueu-o e propôs um brinde, seguido por Danilo, enquanto Baiá observava-os sorrindo, feliz da vida:
− Ao sucesso e à glória de Baiá – disse Jotabê batendo seu copo na xícara de café de Danilo, e no copo já quase vazio de Baiá e falou solene – que agora dá até autógrafo!
Baiá levantou-se da cadeira meio cambaleante, ergueu seu copo de cerveja e disse orgulhoso, em voz alta:
− Brinde pra Baiá político. Baiá dá autógrafo. Baiá sucesso - e voltou a sentar-se.
Danilo inclinou o corpo na direção de Jotabê e falou em voz baixa:
− Tá na hora de a gente comer alguma coisa – apontou discreto para Baiá – senão desanda – encostou-se em sua cadeira e falou em voz alta, dirigindo-se a Baiá – Vai devagar companheiro. O tombo pode ser grande!
  O garçom se aproximou com uma garrafa de cerveja nas mãos, serviu Baiá e Jotabê e anotou os pedidos. Jotabê esperou o garçom retirar-se e falou, choroso:
− Pô, Danilo, que é isso?  Baiá está indo no caminho certo – colocou a mão no ombro de Baiá, sentado a seu lado, que a tirou – Só precisa de uns ajustes pra virar um político de verdade, né não, Baiá?
Danilo riu:  
− E virar um camaleão.
− Que história é essa? – perguntou Jotabê, intrigado.
– Personalidade mutante – disse Danilo, rindo – igual a um filme que assisti outro dia, sabe? Um circo chega numa cidadezinha polonesa com uma grande atração, o gato que usava óculos e tinha o poder de revelar o que de fato as pessoas eram, colorindo-as. Durante o espetáculo, ele tirava os óculos, e as pessoas se enchiam de cores. Adivinha qual a cor do político? – fez um suspense e continuou – Todas! Quando o gato tirou os óculos, o político sentado na platéia começou a mudar de cor feito camaleão.
Baiá olhava para os dois sem entender o que diziam e quase nunca sabia se o que Danilo falava era a sério ou brincadeira. Resolveu pedir explicações:
− Baiá não entendeu – disse com a língua meio enrolada – Por que político vira camaleão?
− Porque mudam de ideia segundo seus interesses – respondeu Danilo – Te dou um exemplo que o Jotabê pode confirmar – olhou para Jotabê – porque aconteceu com o partido dele.
Interessado, Baiá ajeitou-se na cadeira, pegou o copo e bebeu num trago o restante do copo, esperando a explicação de Danilo, que continuou:
− Na última eleição, Jotabê e seu partido eram aliados, amicíssimos, do prefeito. Tudo o que diziam, até as piores barbaridades, justificava o bom caráter, a honestidade, o amor que ele tinha à população. Aí o prefeito ganhou as eleições e não deu os cargos prometidos na campanha. Virou inimigo. Hoje, o prefeito, que quer a reeleição, é o pior inimigo de Jotabê. Não é verdade, Jotabê, isso que acabei de contar?
− Inimigo é o partido, não eu – defendeu-se Jotabê.
O garçom chegou com os pratos de lanche. Um com carne frita, cortada em pedaços e acebolada; o outro com um sanduíche de queijo branco. Jotabê comentou:
− Danilo e sua comidinha insossa – pegou um palito, espetou um pedaço, olhou para Baiá e disse – sirva-se Baiá, carne fresquinha e dá mais energia do que isso aí ó – apontou para o sanduíche de Danilo, depois olhou para o garçom e pediu – Faz um favor? Aumente um pouco o som da TV.
Baiá, bastante embriagado, pegou um pedaço de carne, mordeu e começou a mastigar, depois disse:
− Comida boa. Comida de Danilo é boa também – fez uma pausa e deu uma risadinha – esta melhor, né?!
Danilo não deu importância, mas Jotabê contorcia-se de tanto rir. O garçom aumentou o volume da TV. As imagens anunciavam as principais notícias do dia, dentre elas, imagens inéditas de Baiá e Avati sendo presos. Pararam de falar e, com exceção de Baiá, voltaram-se atentos para a TV. Danilo comentou surpreso:
− Caramba! A prisão de vocês foi parar na TV!
Jotabê, que havia parado de rir,  olhou para Danilo. Estava curioso: como o amigo reagiria diante daquelas imagens? Danilo concordara em guardar a fita original em sua casa, mas a teria assistido? Jotabê não tinha a menor ideia, apenas uma imensa curiosidade em saber como o amigo reagiria.
Baiá só se deu conta do que estava acontecendo quando viu os dois com os olhos fixos na tela.

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