Pequenas Mentiras

Artimanhas amigáveis

Muito se esconde nos bastidores, um ambiente onde todos jogam e os interesses se revelam.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Artimanhas amigáveis

− Que é isso? Passou algum espírito? Tá tremendo.
Jotabê parou e voltou-se para Danilo, ressabiado:
− Sua voz me assustou. Você quer falar comigo?
− Vamos lá pra cozinha pegar um café. Aí conversamos.
Na cozinha, Danilo pegou uma caneca, pôs café, acendeu o fogo e manteve-o
baixo:
− Toma só uma xícara? Posso colocar mais.
Jotabê recusou e sentou-se na cadeira próxima à entrada do corredor. Danilo acompanhava com os olhos o café na caneca sem falar palavra. Jotabê rememorou seus passos desde o momento em que ouviu ruídos na escada, quando o arquivo estava sendo enviado, até entrar no banheiro sem fazer barulho. Só não lembrava se tinha olhado para o corredor. Tinha certeza de ter ouvido as vozes de Baiá e Avati. Mas e Danilo? Subiu antes ou depois? 
Danilo apagou o fogo, colocou o café em duas xícaras. Jotabê, esmagado pelo silêncio, esperava que o amigo falasse qualquer coisa e dissipasse sua dúvida. E, esperançoso, acompanhava cada um de seus movimentos. Danilo pegou as xícaras, dirigiu-se a Jotabê, colocou uma sobre a mesa. Jotabê não resistiu:
− O quê afinal você quer conversar comigo?
− Apressadinho, hein? Toma o café primeiro – caminhou até a cadeira, no lado oposto, em frente a Jotabê e acomodou-se. Olhou para Jotabê, deu um sorriso, pegou a xícara de café e sorveu um gole:
− Hummm – estalou a língua – sabe, café requentado é melhor que em garrafa térmica. Na garrafa térmica cozinha. Fica horrível. Requentado não. Dá uma esquentadinha e pronto, delícia das delícias – sorveu mais um gole.
Jotabê, que dera conta da bebida em poucos segundos, começou a mexer a perna direita e a tamborilar a mesa. O olhar ansioso sobre Danilo, impassível, implorava que este iniciasse logo a conversa. Danilo colocou a xícara na mesa, passou a língua entre os lábios e, com os olhos fechados, respirou fundo. Jotabê acompanhava cada gesto. Cada movimento. Mas nada de Danilo abrir a boca. Pelo contrário, continuou silencioso e com seus gestos ritualísticos bebendo o café. Ao terminar, colocou a xícara sobre a mesa e disse:
− Quer conversar aqui ou prefere ir pra sala?
− Pode ser aqui mesmo – respondeu mais do que depressa – estou curioso.
− É sobre o Baiá...
Jotabê ergueu-se num repente, ajeitou-se na cadeira e, sem conseguir esconder seu alívio, colocou os braços na mesa aprumando o corpo:
− Baiá está indo de vento em popa. A cada dia aumentam os pedidos de entrevistas. Aí entra uma graninha boa – esfregou o polegar e o indicador.
− E quanto o Baiá leva nisso?
− Cinquenta por cento, por quê?
− Cinquenta por cento?!
− É. Cinquenta por cento.
− Você disse que entra uma graninha boa, mas o que vi no bolso de Baiá é uma merreca.
− Esperaí, Danilo. O que você está querendo dizer com isso? Que eu tô tirando dinheiro do Baiá? Não vem não, Danilo. Sou muito honesto. Não sou de enganar ninguém.
− Então explique. Por que Baiá está com tão pouco dinheiro, se as entrevistas – imitou Jotabê, esfregando o polegar e o indicador, contraiu o rosto, e falou irônico: – dão uma graninha? E com essa graninha ele não paga nem dois meses de aluguel numa pensão mequetrefe.
− Danilo, pense bem. O dinheiro que ele recebeu é de uma entrevista. Então não é pouco não.
− É. Você tem razão. Umas duas ou três notas de cem, algumas de cinquenta, um monte de notas pequenas, de dois e cinco réis. Essa merreca representa cinquenta por cento do que a emissora pagou?! Jotabê, pelo amor de Deus...
− Ah, mas é claro. Estava esquecendo. Oitenta por cento do que ele ganha é doado para o partido. Por isso o valor que ele recebe é menor. E você sabe. O partido precisa... Pra se manter e bancar os custos da campanha. Em época de eleição qualquer graninha é valiosa.
− Mas, Baiá nem é do partido!
− Por enquanto. Estou cuidando de sua filiação. E tudo o que ele está aprendendo é responsabilidade nossa, do partido, então quando ele doa está apenas retribuindo o que aprendeu com a gente. É dando que se recebe, né não?!

− Jotabê, você não tem jeito. É muito descarado. Melhor tomar outro café. Quer? – levantou-se da cadeira, colocou uma xícara de café na caneca sob fogo baixo e aguardou o momento de apagar o fogo.
Jotabê sentiu-se aliviado. Danilo não o vira saindo do escritório, então não havia o que recear. Quanto à lição de moral, estava acostumado e não se preocupava, pois tinha sempre uma saída plausível às críticas de Danilo. Difícil seria explicar o que estava fazendo em seu espaço sagrado.
Danilo apagou o fogo, colocou o café na xícara e sentou-se. Antes de sorver o primeiro gole, disse a Jotabê:
− Não adianta discutir esses assuntos com você. Só acho que deveria pagar o Baiá de forma mais justa. Mesmo porque ele vai embora desta casa e terá que pagar aluguel, ou então você arruma um lugar para eles ficarem. Aqui, não quero mais. Te pedi desde o primeiro dia. Começou com uma noite que virou duas, depois três, quatro, cinco seis e não terminou até hoje. Mas amanhã acaba. 
− Não faz isso agora, Danilo. Agora não. Dá mais um tempo.
− Mais um tempo? Você não percebeu a encrenca em que está me metendo? Esse índio é ídolo do povão, Jotabê. É famoso. Daqui a pouco descobrem que ele mora aqui e, aí sim, tô fodido. Acaba meu sossego. Aliás, não sei como ainda não descobriram.
− É porque tomo cuidado, Danilo. Não deixo ninguém seguir a gente. Então, não se preocupe.
− Nem pensar. Quero esses dois fora. Amanhã.
− Danilo, pelo amor de Deus...
Danilo começou a rir. Bebeu mais café. Jotabê parou de falar e ficou olhando para. Danilo que ria e falava ao mesmo tempo:
− Quem diria? − bate no peito – “Sou ateu”, mas, na hora do aperto, clama por Deus.
− Não tem nada a ver. É só uma força de expressão. Um vício. E se te parece que imploro, imploro mesmo. Não tenho vergonha de pedir ajuda a quem é amigo de verdade. Amigo tem que ser de coração. E você é um amigo de coração, Danilo. Por isso fico à vontade para te pedir ajuda. Dizem que o não está garantido em cinquenta por cento, mas nesse caso não posso aceitar o seu não. Você precisa me ajudar. Pelo menos até eu resolver um problema.
− Não me venha com lero-lero.
− Você precisa acreditar. Mas, por favor, não conte ao Baiá. O Teobaldo está querendo me afastar...
− Por causa do Baiá?
− É. Estão achando que o índio trabalha contra. Pior é que é verdade. Mas já falei que é questão de tempo. Você está vendo o sucesso dele em todos os lugares. Você mesmo falou, é um ídolo do povão. Agora, até ele aprender a falar a nossa língua demora. E eu preciso convencer o Teobaldo de que vale a pena educar Baiá.
− O dia em que vocês o educarem – carregou na ironia – ele deixará de ser ídolo.
− Você está viajando, Danilo. Ele só precisa aprender a falar em nome do partido e não defender aquelas ideias absurdas, que só servem lá na selva. Aqui não. Somos civilizados.
− Mas o que ele fala é verdadeiro, Jotabê. Por isso o povão acredita. Vocês deram azar. A bitola mental dele é maior que a de vocês. Não vejo como ele tornar-se político com essa cabeça, que aliás é maravilhosa, hein Jotabê? O que ele fala é quase ideário anarquista. Não é à toa que os políticos estão emputecidos. Ninguém acredita mais neles e o índio contribuiu e muito para isso – elevou a voz em tom festivo – Viva a anarquia! – e sorveu prazerosamente o último gole de café.
− Então estamos combinados. Eles ficam mais alguns dias – disse Jotabê.
− Opa, opa, opa! Não tem nada combinado aqui.
− Só mais alguns dias, Danilo. Prometo.
Danilo cantarolou:
− Conheço bem suas promessas/Outras ouvi, iguais a essas/Esse teu jeito de enganar/Conheço bem.
− Tô falando sério, Danilo. Só mais alguns dias.
Danilo roçou a barba, parou, olhou para Jotabê, voltou a roçar a barba. Inclinou o corpo para frente e olhou nos fundos dos olhos de Jotabê e falou:
− Então, vamos fazer um acordo. Mas será o último se você não cumprir. Dou mais alguns dias, mas com duas condições. Primeira, ninguém pode saber que Baiá e Avati moram aqui. Se descobrirem, boto os dois para fora no mesmo dia. Segundo, você aumentará o cachê de Baiá. Se isso não acontecer, te denuncio ao Conselho, aí terá que explicar de onde surgiu esse dinheiro. Quero ver.
− Porra, Danilo. Não estou te reconhecendo.
− É porque você nunca tinha mexido comigo antes.
− Nossa, que bravo – ironizou Jotabê
Danilo não falou nada. Limitou-se a olhar para Jotabê que se acanhou e, depois, sem muita hesitação, retomou a conversa:
− Falando sério. Em poucos dias eu consigo tirar o Baiá e o Avati. Você não precisará expulsar nenhum dos dois.
Assim espero – concluiu Danilo, enquanto observava Baiá entrar pela porta da cozinha.
Jotabê surpreendeu-se com a presença do índio:
− Ué? Você não tinha ido dormir?
− Beber água. Muito calor.
Depois que Baiá chegou ao filtro de barro, Jotabê cochichou para Danilo:
− Ele está esquisito. Será que ouviu nossa conversa?

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