Pequenas Mentiras

Apagando a história

A inserção do índio Baiá, na política, traz popularidade – que não parava de crescer – e inimizade com os políticos. Leia os novos desdobramentos da história do índio que se lançou na política para tentar evitar o desmatamento da floresta.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Apagando a história

Por essa Danilo não esperava. Desceu com o rabo entre as pernas, colocou a banqueta no lugar e titubeou:
− Pepepensei ter visto uma barata. Mas não era nada não – desejou boa tarde à faxineira e saiu apressado.
Só faltava essa. Ser pego em flagrante! Seria demitido, processado e preso. E quem acreditaria nele? Gravar conversas em surdina para escrever histórias?! Lorotas. Ninguém, em sã consciência, levaria a sério um negócio desses. E é bom desligar logo o computador da secretária. O pessoal logo estará de volta do almoço.
Duas e meia da tarde e a maioria das lideranças políticas estava reunida, à espera do prefeito. Em sua sala, Danilo ligou o computador e conectou-o ao da secretária. Poderia acompanhar na tela as conversas, ações e reações dos participantes, os candidatos a prefeito e seus assessores. Avesso às tecnologias – em sua casa só admitia, além da TV, o telefone fixo. Celular, redes sociais, internet, nem pensar – preferia isolar-se em seu escritório, com lápis, papel e borracha, até morrer. Não precisava mais nada. Todavia, não podia deixar de agradecer a um de seus ex-alunos, Joãozinho, metido a hacker, ter feito aquela traquitana. Um dia levou-o até a prefeitura. Na semana seguinte, comprados os equipamentos e acessórios necessários, Joãozinho voltou e montou o sistema de gravação. E explicou: por causa da distância, o computador da secretária captava as imagens das câmeras e o computador dele, em sua sala, as roubava sem que ela sequer soubesse que tivessem sido gravadas e, muito menos, que estavam em seu computador.
O prefeito demoraria ainda uns quinze minutos para chegar, como ele e os presentes na sala de reunião ficaram sabendo. Danilo aproveitou para sair e comprar uma garrafa de água. Dirigiu-se ao bar, localizado aos fundos da prefeitura. Na rua placas impediam o trânsito e alguns policiais controlavam a passagem de pedestres. Na entrada, os políticos eram revistados e seus dispositivos eletrônicos, celulares, notebooks, smartphones ou o que fosse, eram deixados com os seguranças.
Pouco antes das três horas, Adolfo Guimarães entrou na sala, acompanhado de Genésio e sentou-se na extremidade da mesa. Pediu desculpas e explicou o motivo da reunião:
− Todos sabem por que estão aqui. Não preciso me alongar sobre isso. E o nosso problema é um só. Nosso público nos abandona. Na pesquisa, estamos feito rocha caindo no abismo, cada vez mais fundo. E o culpado é esse índio. Agora, com essas imagens divulgadas ontem, vocês viram, certamente, a coisa piora. Os Direitos Humanos, as minorias, essa gente cairá de pau em cima de mim. Mas sobrará pra vocês também. O índio está destruindo a crença em nossas instituições. A continuar assim, as eleições serão colocadas em risco. Precisamos fazer alguma coisa. Concordam? Mas antes, se me permitem, gostaria de perguntar ao ilustre colega, Teobaldo Cordeiro, que tenho, com orgulho, como meu principal oponente, como seu partido pode estar apoiando uma figura dessas. Uma figura cuja voz solapa a fé nas instituições democráticas desse país. Esse índio é um verdadeiro Socialista Selvagem – diminuiu um pouco a voz - Ouvi essa expressão outro dia e acho que está certa. Ele é um Socialista Selvagem.
Teobaldo esperou paciente. Serviu-se de um copo d água e respondeu:
− Excelência, é preciso esclarecer algumas coisas. De fato, apoiamos esse índio, mas por puro engano. Ele nos foi trazido por um companheiro e apresentado como um político em potencial. Mas esse índio é um verdadeiro anarquista e está prejudicando a gente. Estamos até pensando em expulsar o responsável por esse terrível equívoco. De modo, Excelência, que estamos falando a mesma língua.
Lá do fundo da sala, sentado numa poltrona distante da mesa de reuniões, Aluízio Costa, um baiano de seus sessenta anos, levantou a mão e falou em voz alta:
− Estamos fazendo tempestade em copo d água. A coisa é mais simples do que parece. Querem eliminar o índio? Fácil. Não deixe que ele vire notícia. Se a mídia ignorá-lo, aos poucos será esquecido e estaremos todos salvos. A merda é que a campanha contra a corrupção continua. Essa sim, tinha que parar.
Criou-se um burburinho. Cochichavam suas posições, uns a favor, outros contra. O prefeito pediu silêncio.
− Bem, a pauta de nosso encontro é o índio, não a corrupção. Então, por favor, concentremo-nos nele. Aliás, acho interessante o quê o senhor Aluízio falou... Essa estratégia, de anular a existência dele na mídia. Mas como fazer isso?
Teobaldo imediatamente tomou a palavra:
− Nada mais simples. Vossa Excelência pede para que não mais publiquem notícias sobre o índio.
− Ora, senhor Teobaldo, não posso fazer isso como prefeito.
− Por que não? Use sua autoridade. É Vossa Excelência que autoriza as verbas vultosas de propaganda que as emissoras recebem dos cofres públicos. Atenderão seu pedido. Garanto.
Danilo estranhou a rapidez com a qual decidiram anular a influência de Baiá sobre os eleitores. Não houve discordância, brigas ideológicas, nem picuinhas, tão comuns entre eles. Concordaram que Adolfo Guimarães pressionaria a mídia e, em pouco tempo, o problema se solucionaria. O índio desapareceria e o povão voltaria a dar créditos a eles, políticos. Começaram a levantar-se, despedir-se e sair. Danilo fechou os programas e desligou o computador. Queria acompanhar de perto os comentários do pessoal à saída.
Refez o caminho até o bar e diminuiu o passo no corredor. Estava curioso em ouvir os comentários. Ao contrário de outras reuniões e encontros onde os inimigos políticos se digladiavam, nesta, saíram sorridentes, conversando uns com os outros e falando do perigo representado pelo Socialista Selvagem.
No bar, Danilo pediu sanduíche de queijo branco no pão integral. Bebeu uma xícara de café enquanto esperava. Estava sério. Pensativo. Realmente, para os políticos, Baiá representava um puta perigo. Desde que apareceu na TV ganhou duas coisas: a popularidade, que não parava de crescer, e a inimizade com os políticos. Um problema. E, pior, Baiá e Avati estavam hospedados em sua casa. Tudo bem, Avati estava fora havia algum tempo, fazendo contato com as tribos indígenas, mas Baiá continuava lá. Quando descobrirem onde mora, Danilo não terá mais sossego. Precisava urgente falar com Jotabê. Afinal, foi Jotabê quem os levou. Ficariam só uma noite. Conversa fiada. Apesar de conhecê-lo há tantos anos, Danilo vivia atendendo seus pedidos, mesmo contra a vontade. Depois se arrependia.

Era final de tarde quando Baiá e Jotabê chegaram à casa de Danilo. Baiá estava sorridente. Vestia um terno cinza, camisa social branca e uma gravata borboleta no colarinho. Abriu o portão e antes que Jotabê entrasse, viu um pacote próximo à porta, atrás da coluna, certamente colocado ali para não ser percebido pelos passantes.
Enquanto Baiá abria a porta, Jotabê pegou o volume, que não lhe pareceu muito pesado, e colocou-o na sala, sobre o sofá:
− Que será que é? Vamos abrir?
Baiá levantou os ombros, indiferente. Curioso, Jotabê não se conteve e rasgou a embalagem de papel Kraft:
− Ora, ora, ora. Danilo está se modernizando. É um forno de micro-onda. Sabe usar um desses, Baiá?...  Claro que não. Bem, vamos levar pra cozinha. Monto e te ensino.
Em pouco tempo o forno estava instalado. Jotabê explicou como operá-lo. Eufórico, Baiá repetia as palavras instrutivas do professor e se entusiasmava com a possibilidade de assar uma carne em tão pouco tempo. Terminada a instalação, Jotabê despediu-se, prometendo voltar mais tarde, e batendo os dedos indicador e anular no ombro de Baiá, ironizou:
− Em casa a gente costuma tirar o paletó.
Início de noite. Baiá alisou a barriga. Estava com fome. Olhou a geladeira. Algumas folhas de verduras, uma garrafa d água. Nada mais. Sabia que nas proximidades havia um mercado. Colocou o paletó que havia tirado sob a orientação de Jotabê e foi comprar carne. Voltou com dois pacus, tamanho médio. Na cozinha, enquanto cantarolava suas canções nativas, lavou, limpou e temperou os dois peixes com sal, limão, vinagre, orégano e algumas alcaparras, ingredientes que conhecera na casa de Danilo e adorara, especialmente as alcaparras. Encontrou no armário uma forma de alumínio. Colocou os peixes e abriu a tampa do forno. Não cabia. Encontrou uma, também de alumínio, mas que assaria apenas um peixe. Olhou para os dois peixes. Pensou bem, dois é muito. Danilo come pouco e Avati, este sim um verdadeiro comilão, viajava. Embalou um dos peixes num plástico e guardou-o na geladeira. Pegou o outro, ajeitou-o na forma de alumínio, colocou no forno e ligou o aparelho.
Saiu pela porta da cozinha, cantarolando e dançando, e foi para a área de serviço, de onde poderia apreciar as poucas estrelas no céu carregado.
Baiá acocorou-se no piso do quintal. Olhou para o chão. Puxou um dos lados do paletó. Por pouco não manchou o terno novo na água empoçada. De cócoras, arrastou os pés até distanciar-se da poça d água e voltou a olhar para o céu.
Pouco depois se ouviu uma explosão. O corpo de Baiá rodopiou.

 

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