Pequenas Mentiras

Ameaças

A relação de poder revela inimigos e um submundo dos interesses.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Ameaças

Danilo olhou impávido para o prefeito, depois se voltou para Genésio, mais surpreso do que ele próprio. Seus lábios esboçaram um leve sorriso. Voltou a olhar para o prefeito e falou sem alterar a voz:
− Excelência, poderia explicar-me o porquê dessa pergunta?
Genésio sem tirar os olhos dos dois, riscou um fósforo e acendeu o cachimbo. O prefeito respirou fundo e remexeu-se na cadeira giratória. Fez-se silêncio. Danilo continuava impávido, esperando a reação do prefeito.
− Ora, Danilo, não se faça de tonto. Trabalha aqui, pra mim, e abriga meu maior inimigo?! Quê você está pensando?
− Que uma coisa não tem nada a ver com outra, Excelência – respondeu Danilo, recostando-se na poltrona e cruzando as pernas.
Genésio viu a expressão de Adolfo transfigurar-se. Viu também o momento em que, com a respiração curta e o rosto avermelhado, perderia o controle e, antes que acontecesse, tirou o cachimbo da boca, esticou as costas e, com a mão direita sinalizou. Adolfo entendeu o gesto conciliatório. Controlou a voz:
− Você é topetudo, hein?! E traidor!
Genésio voltou a recostar-se dirigindo o olhar para Danilo que, ao ouvir a acusação,  limitou-se a sorrir e a alisar os cabelos. Depois, ajeitou-se na poltrona:
− E quem eu estaria traindo, Excelência?
− Ora... Está querendo me fazer de bobo? É óbvio que você está me traindo. Óbvio ululante. E a gente não enxerga o óbvio porque está na ponta do nariz, como dizia aquele escritor – estalou os dedos procurando ajuda de Genésio, que se manteve calado, e continuou – como chama mesmo aquele escritor?
− Nelson Rodrigues – Danilo respondeu de pronto, fez uma pausa e continuou sua fala mansa, com leve tom de ironia e um sorriso constante – Se não correspondi às suas expectativas, realmente o traí. Mas aí a culpa é de Vossa Excelência. Até porque sou funcionário da instituição, não seu e, pelo que me consta, nunca traí os regulamentos e normas internas.
− Mas eu sou seu chefe. Você me deve obediência...
− Para prestar serviços ligados à administração pública, não à Vossa Excelência.
Adolfo respirou fundo, balançou a cabeça e falou, olhando para Genésio:
− Ele está querendo me tirar do sério.
− Mas ele tem razão, Adolfo – falou Genésio, em tom pacificador – ele é funcionário da prefeitura, não seu. Então, ele não deve satisfação nenhuma de quem ele hospeda ou deixa de hospedar.
− Porra, Genésio! Até você?! Tá, tá bom. Tá dispensado Danilo. Mas se cuida. Ficarei de olho.
Danilo levantou-se da poltrona, disse até logo aos dois e dirigiu-se à porta. Antes de sair ouviu a voz do prefeito:
− Ah! Outra coisa. Pode providenciar a sua mudança. Vou te transferir. Não preciso mais de seus serviços como escritor.
Danilo, que parara para ouvir o prefeito, deu um amplo sorriso e falou:
− Ótimo. Terei mais tempo para fazer coisas úteis. Boa tarde! – e saiu.
Fez-se um breve silêncio no gabinete. Genésio voltou a acender seu cachimbo. Adolfo mexia a cabeça de um lado para o outro, resmungando:
− Não posso acreditar. Colocava minha mão no fogo por ele. Juro. Agora, você viu, abriga nosso inimigo!
− Eu acho que você está é tenso, Adolfo. Exagerou um pouco.
− Mas ele mora com o índio!
− E daí? Ele pode morar com quem quiser. E a gente não pode fazer nada.
− E as informações que ele tem? E se ele passa pro índio? Vai ver que é isso. Ele está por trás dos discursos do índio. Só pode ser isso.
− Devagar, Adolfo – fez uma pausa – primeiro que ele não tem nenhuma informação importante. Só as necessárias para escrever os discursos. E depois, imagine, ele escrevendo para o índio. Esse índio fala enrolado pra burro. Nada a ver.
− Mas está destruindo a gente. E até agora ninguém aceitou nossa proposta. Última esperança é esse tal de Bonifácio. Aliás, estou esperando ele ligar. Você acredita? Ofereci um dinheiro alto, ninguém quis nem saber. Espero que esse Bonifácio tope a parada e me ajude a calar a boca desse índio.
O interfone tocou. Era Lucinda informando que Bonifácio estava na linha. Adolfo pede para completar e ligação:
− Bonifácio? Não é o Bonifácio?! Ah! Entendi. Espero – colocou a mão no bocal e dirigiu-se a Genésio – Esse pessoal não tem o menor respeito. Ligam e fazem a gente esperar. Hã? Alô. Bonifácio? Bom falar com você. Melhor seria pessoalmente, mas com a agenda apertada tem que ser por telefone mesmo.
− Também prefiro, Excelência. Cheguei ontem de viagem e tenho muitas coisas a resolver. O que Vossa Excelência deseja?
− Não precisa ser formal não, Bonifácio. Deixe o Excelência de lado. Falo como amigo, não como prefeito. Não. Não se preocupe, serei breve. O assunto é sobre esse índio, o Baiá. Precisava que ele desaparecesse. Não fosse mais notícia. Deixasse de existir. E eu preciso que sua emissora, e todas as outras, façam isso. E... Claro, tem uma gratificação polpuda... In off... Evidente.
Do outro lado da linha, Bonifácio ouvia as palavras do prefeito enquanto tamborilava a mesa e mexia em alguns papéis. Quando o prefeito acabou de falar, parou de mexer e tamborilar. Apoiou a mão direita no telefone e falou:
− Não posso fazer muita coisa por Vossa Excelência não. Sua “gratificação polpuda” não compensará a perda de audiência. Sinto muito, Excelência. (...) Não. Não. Nem aumentando a verba publicitária. Além do mais, nossa liberdade é impagável. Somos independentes. E fiéis aos nossos espectadores. Que são milhões. (...) Não, Excelência. Não tenho tempo para um encontro. Sinto muito. (...) Faço questão. Continuarei chamando-o de Excelência, pelo menos enquanto estiver no poder. Bom dia!
Bonifácio colocou o telefone no gancho e resmungou em voz alta, sem perceber que Fernanda entrara na sala:
− Quem esse merda pensa que é? Gratificação polpuda para calar a boca do índio. Justo esse que dá a maior grana pra gente – deu-se conta da presença de Fernanda e falou sem graça – Ah! Você está aí.
− Sim. O senhor mandou me chamar.
− Ah! Claro. A partir de amanhã você volta à redação.
− Mas... Bonifácio, por quê? Agora que minha audiência aumentou bastante por causa do índio, ou você esqueceu que fui eu quem o descobriu? Depois disso a emissora ganhou milhões. Você acabou de dizer, não foi? E agora quer me devolver pra redação. Prefiro me demitir.
− A decisão é sua. E agora me dê licença que preciso trabalhar – o telefone tocou – Quem? Jandir? – acenou para que Fernanda saísse da sala – Não. Não conheço... Detetive?! E o quê um detetive pode querer comigo? (...) Tá. Tá bem. Complete a ligação (...) Pois não? Sim, sou eu, Bonifácio. O que o senhor deseja?
− Saber como conseguiu as imagens dos índios... O senhor sabe o quê estou falando. É. São essas mesmo. Os dois sendo presos. Quem vendeu pro senhor?
− Isso é um trote? Está rindo da minha cara? Se o senhor é detetive ou não, pouco me importa, mas deveria saber que esse tipo de informação a gente não dá nem por telefone nem ao vivo. Tenha um bom dia.
Bateu o telefone.
− Esse cara deve pensar que tomo sorvete pela testa, não é possível. Que descarado.
O telefone tocou novamente. Atendeu:
− Não. Pelo amor de Deus! Não quero ouvir a voz desse sujeito. (...) Ah! O Jotabê? Desculpe. Pensei que fosse esse chato. É. Esse detetive. Se é que é mesmo, né. Tá. Pode completar a ligação. (...) Fala Jotabê. Quer passar aqui? Não sei se é uma boa. Você pode mandar por e-mail... (...) O arquivo é pesado? Não quer deixar para amanhã? (...) Não? Precisa ser hoje?! Tá. Tudo bem. T´espero.
Colocou o aparelho no gancho e antes que pudesse afastar a mão, o telefone tocou novamente. Era a secretária, preocupada, informando que Jandir estava do outro lado da linha. Acabou atendendo:
− Diga, palhaço, o que você quer? (...) Conversar comigo? Nem pensar. Tenho mais o que fazer. Detetive fajuto – e estava prestes a desligar o telefone quando Jandir falou em tom ameaçador:
− Pra quem tem dois processos em aberto na justiça, você é muito petulante.
Bonifácio ficou em silêncio. O rosto contraído. Jandir continuou:
− Então? Sou um detetive fajuto? Você tem ou não processos em aberto? Coisa feia. Dá para passar um bom tempo atrás das grades.
− Você está blefando.
Jandir riu:
− Blefando? Como saberia de seus podres se não fosse policial? Investigador, na verdade – deu um sorrisinho - Se ainda acha que estou blefando como eu sei que seu primeiro processo foi por roubo de carro? E o segundo?
− Tudo bem – interrompeu Bonifácio - Vamos supor que esses processos existam. E daí?
− Melhor conversarmos, não acha? – disse Jandir – Aí explico. Gaste um tempinho comigo. Melhor que um tempão noutro lugar, saca?

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