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A Santa, a Torneira e o Estado Laico

Vereadora pede instalação de torneira em monumento religioso e reacende o debate sobre a atuação do poder público e a mediação dos interesses do povo, políticos e religiosos no Estado Laico.

Por: Isabel Gonçalves
A Santa, a Torneira e o Estado Laico

Esta semana mais um tema polêmico se apoderou das redes sociais, a indicação de uma vereadora solicitando, segundo o site de Notícias Sigamais: “que a prefeitura faça a instalação de água no local onde está colocada a imagem de Nossa Senhora Aparecida, no trevo principal da cidade. ‘A presente solicitação visa facilitar os trabalhos das mulheres voluntárias que tem que levar água em galões para limpeza semanal do local de grande frequentação pública’, diz a Indicação” (veja aqui).

Isso bastou para que a página do grupo de discussões Adamantina│Siga Mias entrasse em ebulição (veja aqui). A grande maioria contestou a indicação ponderando que a cidade está imersa em problemas estruturais, de fiscalização e de gestão que merecem mais atenção do legislativo, não as usuais e “tradicionais” indicações e monções feitas pelos vereadores.

Mas este tema vai além da prioridade e relevância dessa indicação, alguns internautas contestaram a indicação contrapondo o fato de a prefeitura encampar uma obra que poderia ser feita pela Igreja Católica, afinal, a população já paga o dízimo, e neste ponto, creio que é fundamental que nossa sociedade entenda o que é um estado Laico.

Mas o que vem a ser um estado Laico? Um estado sem religião? É um estado que privilegia a não crença em detrimento a uma crença?

A resposta é, Não! E por quê?

A Constituição do Brasil estabeleceu em seu artigo 19, I: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

A partir dessa disposição, o Brasil foi caracterizado como um Estado Laico. Mas o que vem a ser um estado Laico? Um estado sem religião? É um estado que privilegia a não crença em detrimento a uma crença? Não!

Para Victor Mauricio Fiorito Pereira “Estado laico não deve se confundir com Estado ateu, pois no Estado laico há direito à liberdade religiosa, ‘liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter uma crença’. O Estado brasileiro, de acordo com a sua Constituição, deve dispensar tratamento igualitário a todas as crenças religiosas, incluindo a não crença, sem adotar nenhuma delas como sua religião oficial. A inexistência de religião oficial no Estado não significa que o Estado seja partidário da não crença (ateísmo e assemelhados), pois, com base no princípio da liberdade religiosa, esta deve ser posta ao lado das demais religiões, não podendo junto com qualquer uma delas ser também considerada oficial. Em caso de situações em que o Estado tenha que optar por favorecer uma determinada crença religiosa ou a não crença, o critério de escolha deve ser o princípio democrático da preferência da maioria, exprimida diretamente pelo povo ou através de seus representantes, ao contrário do que ocorre nos Estados que adotam religião oficial, que prevalecerá ainda que a maioria da população prefira outra”.

Dito isso, entende-se que um estado Laico deve discutir temas espinhos e decidir em favor do bem estar população, sem dogmas ou imposições arbitrárias de grupos.

Na Constituição da República em seu artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (...)Parágrafo único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

E aí que a “coisa” começa a “pegar”, como um estado Laico em sua definição, como o Brasil, educa/educará e governa/governará seu povo, enquanto país laico, se ainda em nosso país, embora não seja adotada uma religião como oficial, decisões são tomadas como se ainda fossemos um Estado Religioso? E cabe ressaltar: as imagens de santos são figuras simbólicas, para católicos; imagens de divindades são sagradas para umbandistas; mas não para protestantes.

“Em caso de situações em que o Estado tenha que optar por favorecer uma determinada crença religiosa ou a não crença, o critério de escolha deve ser o princípio democrático da preferência da maioria, exprimida diretamente pelo povo ou através de seus representantes”.

O que isso significa? Os representantes do “povo”, eleitos pelo “povo”, que são porta vozes da vontade do “povo”, simples? Não, não é tão simples assim.

Meus caros o problema está aqui: não temos maturidade, enquanto sociedade, para escolher nossos representantes, mais de 1/3 destes de nossas representantes no Congresso Nacional, respondem por crimes na Justiça, por exemplo. Elegemos vereadores, prefeitos, deputados, governadores, presidentes sem capacidade para a função, a “máxima” - “brasileiro não sabe votar” -, nunca foi tão triste e tão verdadeira, mas esta culpa não deve recair, única e exclusivamente, nas costas do cidadão, pois os partidos estão se especializando em oferecer, para nós cidadãos, candidatos sem habilidades e competências para os cargos que pretendem ocupar.

Esta confusão entre estado laico e estado religioso está mais ligada a uma questão de educação e cultura, do que de religião. Afinal, um povo com cultura tem a tendência a problematizar e refletir sobre questões importantes para si e para a sociedade.

Mas pergunto a vocês: é interesse da classe dominante de nosso país educar e promover a cultura?

A classe dominante de nosso país joga “migalhas” para o povo e os convence que estas “migalhas” são o que precisam. Para alcançar este fim, a estratégia utilizada é sonegar do sujeito o que realmente importa, e convencê-lo de que o que é "dado" é o que ele realmente necessita. Para tanto, importante manter a sociedade distante de qualquer possibilidade que a faça dar contexto a sua realidade, inviabilizando que foque suas lentes e compreenda como é mantida apartada de sua própria vida.

Existe um apartheid intencional de acesso à cultura, cultura a única forma para se alcançar a liberdade, de se (re)inventar e, de ser (como verbo de ação) e estar em nosso mundo. É o que disse o dr, Drauzio Varella “Mil vezes ser filho de intelectuais ricos do que ter pais pobres e ignorantes. Nutrição inadequada, infecções de repetição e indigência cultural comprometem o desenvolvimento do cérebro da criança”.

Nossa sociedade está imersa em absoluta miséria/indigência cultural, não temos e não somos estimulados a desenvolver habilidades e competências que propiciem que consigamos analisar a nossa vida com o devido contexto e complexidade. O ser humano vê o mundo através de sua história de vida, quando mais informação este sujeito tiver ao longo da vida, maior será o seu arcabouço para problematizar, criticar e compreender os fatos que o envolve. Quanto universal e melhor a qualidade da educação e cultura de um povo, maior será a sua capacidade de compreender os fatos, se reinventar e, também, ao mundo em sua volta. Mas para isso todos nós precisamos acreditar que temos, sim, capacidade de entender qualquer assunto que seja relevante para a nossa vida, não podemos mais ser vítimas passivas de discursos que tentam nos convencer que não somos capazes de tomar decisões e, por isso, precisamos ser tutelados por políticos que nos dizem o que fazer, uma premissa inválida, porque é a sociedade que dita o que o politico deve fazer.

Ou seja, existe um Brasil de inclusão e um Brasil de exclusão! O mais grave disso tudo, é que esta terrível exclusão que separa o país em castas é mascarada por esta inclusão no mercado de consumo, disfarçada por esta sensação de que chegamos onde tínhamos que chegar, mas não, há muito que se caminhar nesse nosso país tão desigual.

Políticas de trabalho e salário são de extrema importância, mas é imperativo que venham acompanhadas de um efetivo e maciço investimento em “coisinhas básicas” como saneamento, educação e acesso a cultura.

Mas infelizmente nossas escolas da base estão sucateadas e desestruturadas, as aulas são dadas por professores mal formados, mal pagos e desmotivados. Pergunto, existe vontade política para ampliar o conceito de educação nas escolas indo além do “conteudismo”? Há espaços para formação de educadores que sejam facilitadores da inteligência coletiva, que consigam, mais do que tudo, mediar todas as formas de construção do conhecimento? Existe um trabalho sério e efetivo que busque uma revolução na educação em médio e longo prazo que possibilite nas escolas uma forma de educar que estimule a criatividade, transgressão, compartilhamento de ideias, menos competitividade e mais associatividade, que contemple a musica, arte, literatura, viagem, construção coletiva do conhecimento....?

O dinheiro e o consumo por si só não produzem educação e cultura, deles não virá à libertação do sujeito e de suas amarras culturais e históricas. Se não houver uma guinada na educação deste país, continuaremos atrelados a este sistema mórbido, onde cada sujeito ocupa o nicho designado a ele. Nosso “Admirável Mundo Novo”. Neste sistema não existe uma revolução social, apenas uma explosão do consumo e uma falsa sensação de bem estar, falsa, pois este bem estar e bem viver, bem (com) viver, nunca será pleno enquanto houver este abismo cultural que nos separa e afasta cada vez mais.

Está em jogo a luta de cada um de nós pela igualdade real de direitos, pelo direito de cada um a ter acesso ao conhecimento e principalmente à cultura! Educação e cultura, a única forma para se alcançar a liberdade, de se (re)inventar, de ser e estar em nosso mundo!

Conseguiram entender onde este tal estado laico entra em tudo isso? Nós já vivemos em um estado Laico, pois ele reflete a vontade da maioria, representada pelos eleitos do povo.

O que falta então? Falta um povo culto, que consiga discernir entre a sua religião ou a sua não religião e, o bem comum. E isso só virá através da cultura e educação de um povo independente, “povo” que acredita em Deus, ou não!

Enquanto temas relevantes para nossa sociedade forem baseados na ignorância das leis, da incompreensão de “fenômenos” que nos cercam e tabus, enquanto temas pertinentes para toda a sociedade não forem tratados e discutidos de forma inteligente, coerente, sem dogmas e principalmente sem Hipocrisia, nada será mudado.

 

Isabel Cristina Gonçalves é Adamantinense, Oceanógrafa, Mestre e Doutora em Educação Ambiental. Pós-doutorado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no projeto: "Mudanças climáticas globais e impactos na zona costeira: modelos, indicadores, obras civis e fatores de mitigação/adaptação - REDELITORAL NORTE SP" & KAOSA/Rio Grande – Rio Grande do Sul. Acesse aqui seu perfil no Facebook.
 

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