Pequenas Mentiras

Um índio midiático

Depois de sua entrevista à TV, o índio Baiá experimenta a repercussão pública. É também alvo de interesses, no jogo de poder.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Um índio midiático

Jotabê acordou ao som do celular. Esticou-se. Espreguiçou-se. Atendeu. Sinal de ocupado. Olhou a tela do aparelho e ficou espantado. Levantou num salto. Caramba! Quase uma hora da tarde! Foi ao banheiro, lavou o rosto e voltou ao quarto. Ligou para a casa de Danilo.
− Saíram! Que horas voltam? (...) Disseram aonde foram?(...) Tá. Tô indo. Inté.
Foi até a cozinha e colocou água para ferver. Seu telefone tocou:
− Ah... Bonifácio. Tudo bem com você?
− Jotabê, quero assinar um contrato de exclusividade com o Baiá. E você dirá sim. Tá me devendo uma.
− Ainda está bravo? Já te falei, vendi a entrevista pelo melhor preço. Não tenho culpa... Apareceram compradores. E você não aceitou minha oferta!
− Deixemos isso de lado. Você me dá a exclusividade e fica tudo certo.
− Bonifácio, me diz uma coisa, por que o interesse assim, tão repentino, num cara que apareceu agora?
− É um personagem, Jotabê. A gente quer um programa com ele, como apresentador.
Jotabê riu:
− Você está brincando.
− Então? Fechamos o negócio?
Jotabê coçou a cabeça. Viu a água fervendo:
− Bonifácio, estou terminando de coar café. Posso te ligar daqui a pouco?... Certo. Não se preocupe.
Desligou o telefone, apagou o fogo e colocou o pó de café no filtro de papel. Raios! Esse interesse súbito de Bonifácio está muito estranho. Por mais audiência que Baiá tenha alcançado, ninguém investiria num programa apresentado por um cara exótico. De outra cultura. Nem o português fala direito! Esperou a água filtrar todo o pó, serviu-se de uma xícara e foi para a sala. Ligou o computador. Talvez, na internet, haja alguma informação. Nas redes sociais, textos e imagens sobre Baiá se reproduziam mais do que coelho na época do cio. A entrevista, veiculada na noite anterior, viralizava. A audiência aumentava. Nos jornais, as notícias se repetiam: o índio que movimentou a opinião pública. 
Jotabê desligou o computador, levantou-se, balançou a cabeça, deu uma risadinha cínica e murmurou:
− Bonifácio vai ter que esperar. Isso dará um bom dinheiro – foi para o quarto, vestiu-se e saiu para a casa de Danilo.
Antes que pudesse desligar o motor do carro, Danilo apareceu e agradeceu-lhe a carona. O telefonema da secretária do prefeito pedindo seu comparecimento urgente ao gabinete foi uma surpresa.
− E o que pode ser assim, tão urgente, Danilo? – perguntou Jotabê.
− Não faço a menor ideia. Ela nunca fala. Acho que nem sabe. Ele é cheio de segredos.
− E o Baiá e o Avati, onde andam? A gente tem compromisso hoje.
− Esquece! Os dois foram caminhar no bosque – riu – acho que eles estão estranhando nossa vida de urbanóides. Mudando de assunto – falou com seriedade – arrumou hospedagem para eles?
Jotabê mudou a marcha, acelerou o carro. Tateou a mão no bolso vazio da camisa. Olhou de soslaio para Danilo:
− Tem cigarro? Ah! Esqueci. Você não fuma... Sabe... Não deu tempo... Acabei perdendo a hora... – observou o rosto sério de Danilo – mas, prometo, logo, logo resolvo.
Estavam se aproximando da Prefeitura. Danilo ficou quieto. O carro estacionou. Desceu e apoiou-se sobre a janela aberta:
− Estava esquecendo. Vários produtores ligaram querendo entrevistar Baiá.
Jotabê quis saber mais detalhes. Diante da insistência, Danilo esclareceu que apenas atendera ao telefone, nada além disso. Agradeceu a carona e caminhou em direção à entrada. Nem chegou a seu escritório, a secretária encaminhou-o direto para o gabinete. Danilo perguntou o que estava havendo, mas ela não sabia. Sabia só que era urgente.
No gabinete, esperou o prefeito terminar a conversa telefônica. Pelo jeito, e Danilo conhecia bem esse jeito, falava com Genésio, mas não sabia sobre o quê. A linguagem monossilábica, que passou a usar logo depois que Danilo entrou na sala, tornava o diálogo incompreensível. Desligou o telefone e falou:
− Preciso que você assista a esse videozinho... – Danilo aproximou-se para pegar o pen drive – Não. Você vai assistir aqui mesmo. Quero conversar a respeito – levantou de sua poltrona e dirigiu-se ao aparelho de TV, no fundo da sala.
Danilo sentou-se e esperou. Com o controle remoto na mão, Adolfo sentou-se no sofá um pouco à frente e ligou o aparelho. Raios! É a entrevista do Baiá! Por que a urgência para conversar sobre isso? E justo para ele, que se considerava quase que assessor para assuntos aleatórios.
– O que você achou? – perguntou Adolfo, assim que o programa se encerrou.
– O que eu achei?
– É. O que você achou?... Sobre esse índio, esse tal de Baiá. O que ele falou. Você acha que pode ter repercussões na campanha eleitoral?
Danilo riu, meio sem graça:
– Desculpe, mas acho meio exagerado. É apenas um cara com outra cabeça.
− Mas você prestou atenção nas entrevistas com a população? – perguntou, mas não esperou resposta – Todos os entrevistados concordam com o índio. Repetem o mesmo discurso. Não acreditar nos políticos. Pior. Não votar neles. – Adolfo se inflama - É um discurso corrosivo. Coloca em risco a democracia. Você não acha?
– Com certeza, Sua Excelência não me chamou aqui para isso, mas, já que perguntou minha opinião, permita-me discordar. Numa sociedade democrática – falou frisando as palavras – sistemicamente democrática, os discursos corrosivos também se diluem.
− Mas não estamos numa sociedade democrática – contestou o prefeito num tom enérgico e convicto – por isso, temos que tomar algumas medidas.
− E o que sua excelência quer que eu faça? Escrever algum pronunciamento sobre o caso?
– Nada de pronunciamentos, por enquanto. Quero que converse com todos os partidos e veja qual a posição deles sobre esse índio. Mas tem uma coisa. Discrição. Melhor ninguém saber, senão vira um inferno.
– Não se preocupe – falou Danilo em tom de brincadeira – a mensagem se autodestruirá em cinco segundos.
O prefeito riu:
– Você também assistia Missão Impossível?
O interfone tocou. Era a secretária anunciando a chegada de Genésio. Danilo levantou-se e caminhou em direção ao prefeito. Genésio entrou na sala. O prefeito cumprimentou-o e, apontando para Danilo:
− Vai assuntar prá nós – riu – a questão daquele índio – aumentou o riso, colocou a mão no ombro de Danilo e disse, olhando para Genésio:
– Sabe, Genésio, esse moço aqui acredita que o discurso desse índio vai – voltou-se para Danilo – como é que é mesmo? Evaporar.
− Diluir é melhor – corrigiu Danilo em tom irônico.
Genésio, sem entender o embate lingüístico, acabou por perguntar:
− Vocês estavam discutindo sobre o quê? Filosofia?
Adolfo e Danilo riram.



Naquela manhã, antes do nascer do sol, Baiá e Avati levantaram-se e foram caminhar. Logo que dobraram à esquerda, na esquina da casa de Danilo, vislumbraram o vale, distante alguns quilômetros com mata fechada. Os olhares recíprocos confirmaram o caminho a seguir. Iriam explorar aquela mata e, ao mesmo tempo, fugir um pouco do burburinho ininterrupto da cidade. Nenhum dos dois comentava, mas era óbvio que estavam com saudades da vida na floresta. E a chance de reviver um pouco o pisar no chão coberto de arbustos, desviar dos galhos, sentir o frescor do mato deixava-os animado. E andaram lépidos, alegres e descontraídos.
No que pensavam ser o início da mata, encontraram uma cerca de arame que se estendia pela rua. Baiá e Avati olharam-se surpresos. Resolveram acompanhar a cerca e deram com um portão de entrada fechado. Continuaram caminhando alguns metros. Pararam. Pelo jeito, a cerca continuava. Voltaram. Pararam em frente ao portão e sem hesitar o escalaram.
Subiram o pequeno trecho de terra que se elevava após a cerca e se depararam com uma trilha de pedras. Entreolharam-se. Caminharam alguns minutos. Um cruzamento. Pararam. Seguir em frente, à direita ou à esquerda? Seguiram em frente. A trilha se alargou e surgiram alguns quiosques que começavam a abrir suas portas. Baiá, curioso, parou e ficou olhando. O que faziam aquelas malocas no meio do mato? Ainda que seja um mato estranho com essas trilhas de pedra. O garoto, já com o uniforme de trabalho e varrendo o piso, olhou para os dois e mal humorado disse:
− Tá fechado. Abre daqui a meia hora.
Baiá e Avati continuaram a caminhada por algum tempo, mas logo se enfastiaram A quantidade de gente que passava por eles era cada vez maior. Passavam correndo, andando apressados, com carrinhos de bebê, cachorros, gatos. E vestidos com roupas esquisitas. Homens de calça curta. Mulheres com roupas grudadas no corpo. Todos com fios nos ouvidos. Burburinho por burburinho, melhor voltar. Saíram pelo portão sem serem notados.
Nas proximidades da casa de Danilo, passaram por um bar de esquina, onde havia alguns homens bebendo, sentados em mesas na calçada, quando Avati, sem querer, esbarrou no ombro de um deles. Excitado e nervoso, o homem levantou-se, mas deu de cara com Baiá. Levou um susto:
− Cara, você é o índio da TV! – e apoiou a mão no ombro de Baiá.
Baiá, meio sem jeito e sem entender o porquê daquela euforia, retirou discretamente a mão de seu ombro, deu um sorriso e começou a andar. O homem gritou para os outros, dentro do bar:
− É o índio da TV. É o índio da TV.
Alguns saíram até a porta. Baiá e Avati estavam do outro lado da calçada quando ouviram um deles gritar:
− Índio filho da puta. Volta para sua terra.
Um jovem, de seus trinta anos, deu-lhe um empurrão, batendo forte no ombro, e disse:
− Que é isso cara? Ele é igual à gente.
− Igual à gente porra nenhuma. Não sou igual a índio – e deu um soco no rosto do jovem.
Baiá e Avati deram uma rápida olhada para o bar, agora cenário de socos, pontapés, berros e gemidos, e continuaram a caminhar.
− Dá para entender? – perguntou Baiá a Avati em sua língua nativa.

Mais colunas