Pequenas Mentiras

Descanso do guerreiro

Depois da entrevista à TV, o índio Baiá se vê sugado, exausto e inquieto, na selva da cidade grande.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Descanso do guerreiro

As luzes da cidade estavam se acendendo quando Baiá desceu do carro em frente à casa de Danilo.
− A chave está embaixo do tapete – disse Jotabê para Baiá – Descanse um pouco. Pego o Avati e volto logo – Baiá fechou a porta. O carro saiu em alta velocidade.
Baiá entrou e, sem saber como acender a luz, deitou-se no sofá, ao lado da entrada, deixando a porta aberta. O rosto tenso. A testa contraída. E uma dor nas costas jamais sentida. Andar alguns dias na floresta, caçando ou pescando, era menos cansativo do que ficar poucas horas sob aquelas luzes fortes e aquele monte de perguntas. E o casal de jornalistas? Quantas vezes não o fez repetir a mesma coisa! Ajeitou-se no sofá, procurando uma posição. Voltou a mexer-se. Levantou-se e deitou no chão.
Seus olhos estavam quase fechando quando a luz acendeu e o assustou. Baiá levantou rápido, mas relaxou ao ver Danilo, que riu ao vê-lo deitado no chão:
− Por que não deita no sofá. Ou então na cama, lá em cima?
Baiá não falou nada. Apenas levantou-se. Danilo observou-lhe o rosto tenso e cansado:
− Que cara é essa, Baiá? Aconteceu alguma coisa?
− Baiá cansado. Muita luz. Muita pergunta. Mais fácil caçar onça.
Danilo riu. Aproximou-se, deu-lhe um tapa delicado nos ombros:
− Gravar em estúdio é cansativo mesmo. Vamos até a cozinha? Tá com fome? E Avati, onde está?
− Jotabê foi buscar.
− Buscar? Aonde?
− Baiá foi pra TV. Avati ficou no partido. Estudando.
− Estudando?
− Estudando jeito de juntar aldeias.
Na cozinha, enquanto abria a geladeira para escolher o que colocaria à mesa, perguntou sobre a entrevista. Baiá mexeu a cabeça, fazendo careta:
− Difícil a cabeça de branco. Faz mesma pergunta muitas vezes. Baiá responde. Pergunta de novo. Baiá responde. Ele fala, assim não e faz pergunta de novo. Baiá repete, repete, repete.
A campainha tocou. Danilo pediu que Baiá atendesse à porta enquanto terminava de preparar o lanche. Colocou pães e bolachas sobre a mesa e olhou pelo corredor. Baiá voltava acompanhado de Avati e Jotabê:
− Chegaram na hora – falou Danilo em voz alta enquanto pegava mais duas xícaras – sentem-se. O café está quase pronto. Que cara é essa Jotabê? Tá desanimado?
− Nada não – respondeu Jotabê olhando para Baiá enquanto sentava-se. Acomodou-se na cadeira e continuou falando sem tirar os olhos de Baiá – é que a gente se engana, sabe. Você pensa que a pessoa entendeu o recado e não. Não entendeu e faz tudo errado.
− E o que deu de tão errado assim? – perguntou Danilo, curioso, colocando o bule de café à mesa.
− Deixe pra lá – pegou o bule e serviu-se. Apontou para Avati – Ele também tem tino político. Impressionante.
Avati abriu um largo sorriso. Danilo ironizou:
− Cuidado com a cobra, hein Avati? – apontou para Jotabê – ela é venenosa.
Avati fez uma cara esquisita. Jotabê riu. Baiá não entendeu muito bem, mas acabou rindo. Jotabê engoliu um naco de pão e disse:
− Então a cobra aqui contará porque ele tem tino político. Olha, pensando bem, até militar. O pensamento dele é estratégico. Depois que a gente explicou...
− A gente?! – estranhou Danilo.
− É. A gente. Lá do partido. Depois das primeiras explicações ele elaborou assim, de pronto, um monte de ideias. Coisa maluca. Tudo interligado. Demorou porque não entende todas as palavras. Aí tem que explicar. Às vezes é difícil, mas acaba entendendo, né, Avati?!
− Palavra de branco igual passarinho. Vive no céu. Não dá para pegar – disse Avati.
− E a entrevista? – perguntou Danilo – o Baiá ia me contar quando vocês chegaram.
− Um desastre – disse Jotabê em tom de lamúria – primeiro que os jornalistas não aceitaram nossa pauta, aqueles filhos da puta. Devia ter cobrado mais caro. Fizeram as perguntas que quiseram. E o Baiá?! Não seguiu nenhuma de nossas orientações. Porra, Baiá!
Baiá colocou a xícara sobre a mesa, pegou uma fatia de pão e lambuzou-a de creme de soja. Antes de dar a primeira mordida, falou:
− Baiá respondeu pergunta. Muita pergunta. Mas não deixavam falar do desmatamento. Assim não, fala de novo, dizia a mulher – olhou fixo para Jotabê e perguntou sério – quando Baiá pode falar do desmatamento?
Um silêncio constrangedor espalhou-se pela cozinha, só quebrado pelos ruídos quase inaudíveis do beber e comer. Para fugir do olhar acusatório de Baiá, Jotabê se ajeitou na cadeira e, meio sem graça, pegou o açucareiro, colocou açúcar na xícara, pôs café e mexeu lentamente.
− E o que os jornalistas te perguntaram, Baiá? – perguntou Danilo, minimizando a sobriedade súbita do ambiente.
− Só queriam saber de corrupção. Eleição...
− É aí que você tinha que criticar o prefeito – resmungou, choroso, Jotabê − Que nem a gente combinou, lembra? Na reunião do partido.
− Mas por que Baiá tem que criticar prefeito? Falar mal? Baiá nem conhece. Baiá respondeu pergunta. Muita pergunta. Desmatamento não. Não deixavam Baiá falar. Por que não pode falar?
− Alguém quer mais café? – Danilo perguntou, mas não esperou resposta e levantou-se. Enquanto colocava água no fogo dirigiu-se a Baiá – Sabe, não é que não pode falar. Falar pode, mas só assunto que interessa. Que dá audiência.
− Audiência? – perguntou Baiá.
− Sim – respondeu Danilo – gente que assiste TV. Quando mais gente assiste, mais a emissora ganha. E o assunto quente do momento, que dá audiência são as eleições e as campanhas contra a corrupção.
− É por isso que era importante você falar da corrupção, Baiá –insistiu Jotabê – o prefeito é nosso inimigo. Ele está à frente de nosso candidato. A gente tem que destruir a imagem dele pra ganhar as eleições.
− Tudo ou nada, né, Jotabê?! Vale qualquer arma – falou Danilo com sarcasmo, levantou a mão direita e, fazendo do indicador e polegar um revólver, exclamou – Bang! Bang!
Jotabê deu um sorriso sem graça, mas ficou quieto. Consultou o relógio:
− Danilo, tá na hora do jornal. Posso ligar a TV?
− Fique à vontade. Vou dar um jeito aqui na cozinha, depois vou pra sala. Você, Avati, deveria ir assistir também. Ajuda a se acostumar com a língua.
Avati levantou-se e acompanhou Jotabê. Baiá recusou o convite para acompanhá-los. Estava farto de TV. Preferiu ficar na cozinha, ajudando Danilo. Mas, mal tiveram tempo de tirar a mesa e Jotabê os chamou aos gritos. A matéria estava prestes a entrar no ar.
As primeiras imagens apareceram e Baiá não escondeu sua satisfação. Olhou orgulhoso para Avati que retribuiu com um sorriso, feliz em ver a imagem do amigo. O mesmo não se podia dizer de Jotabê que começou a resmungar, indignado, logo nas primeiras cenas:
− Filhos da puta! Editaram tudo.
Os resmungos aumentaram em som e intensidade e explodiram quando a matéria foi encerrada. Jotabê deu um murro na perna, levantou-se da poltrona e andou de um lado para o outro:
− Esses jornalistas são filhos da puta, Danilo. Alteraram tudo.
− Mas alteraram o quê? – perguntou Danilo, desligando a TV.
− Editaram de tal jeito que dá impressão do Baiá ser o paladino da justiça. O justiceiro do planalto. O enviado dos deuses que desceu de uma estrela colorida e brilhante e veio para acabar com a corrupção.
− E por que você se espanta? Devia estar acostumado. Qual veículo de comunicação não edita sua matéria? Indique ao menos um.
− Mas eles exageraram! – reclamou Jotabê.
− Exageraram não. Apenas editaram a matéria privilegiando a linha editorial. Só isso.
− Mas isso é desonestidade, Danilo!
Danilo riu. Foi até a estante, ao pé da escada que dá para os quartos, pegou um jornal e voltou para a sala:
− Conhece esse jornal? – passou-o para Jotabê – Financiado pelo seu partido. Mostre ao menos uma reportagem que não tenha sido editada, escrita de acordo com a linha editorial. Te pago uma cerveja, se achar.
Baiá e Avati prestavam atenção aos dois, mas não entenderam o motivo da discussão. Os dois tinham gostado do que viram na TV. Avati achou o amigo altivo, orgulhoso, respondendo de pronto às perguntas feitas pelo casal de jornalistas. Nenhuma hesitação. Não havia motivo algum para os dois discordarem. Curioso, e tímido, Avati perguntou:
− Não ficou bom?
− Ficou bom sim, Avati. A discussão é porque a entrevista foi editada. Entende? – Avati mexeu a cabeça para os lados. Não. Não tinha entendido. Danilo explicou – É assim. Eles pegam as imagens, escolhem as que querem e grudam uma na outra. Entendeu?
Avati voltou a mexer a cabeça para os lados, agora acompanhado por Baiá. Danilo pensou um pouco. Saiu. Voltou com um envelope de onde tirou algumas fotos, colocou-as na mesinha de centro, escolheu umas poucas e disse:
− Tenho várias fotos desse barco, certo? Ele no porto. Navegando. Com passageiros subindo a bordo. O capitão no leme. Com essas fotos eu quero contar uma historinha. Por exemplo, que o barco saiu do porto – pegou a foto correspondente – desceu o rio – colocou a foto – e chegaram ao outro lado da margem – pegou a foto com pessoas descendo da embarcação e colocou-a por último – Pronto! Olha só, com as imagens nessa ordem, conto essa historinha. Isso é editar. E foi o que fizeram com a entrevista do Baiá. Cortaram e remontaram.
Danilo juntou as fotos, guardou-as no envelope, e consultou o relógio:
− Não sei vocês, eu vou subir e trabalhar. Preciso escrever. Se quiserem, podem ficar aqui, proseando. Mas, antes, preciso ter uma conversinha com você, Jotabê... Em particular.
− Preciso ir. Podemos conversar lá fora? – perguntou Jotabê. Antes de sair despediu-se de Avati e Baiá relembrando-os da agenda para o dia seguinte. 
Na calçada, com Danilo apoiado ao portão, Jotabê perguntou:
− E aí, qual o assunto secreto?
− Você não disse que arrumaria lugar para esses dois ficarem?
− Disse.
− E então. Porque eles continuam aqui?
− Pô cara. Precisa levar em consideração que hoje foi um dia corrido. Não deu tempo pra nada. Mas, prometo, amanhã arrumo – apertou-lhe a mão, deu-lhe um abraço forte e caminhou em direção ao carro. Abriu a porta e, antes de entrar, voltou-se para Danilo:
− Você é um puta amigo, cara.

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