Pequenas Mentiras

Confissões ébrias, final

A saga dos índios Baiá e Avati continua. Depois da mesa de bar, novos desdobramentos.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Confissões ébrias, final

Jotabê não podia acreditar no que tinha visto. Tudo bem, Danilo costumava pregar peças em todo mundo, mas nunca dessa maneira, batendo na mesa e chamando o índio de preconceituoso só porque estava olhando os surdos-mudos. E justo com Avati, o mais sério e bravo dos dois, que não perdeu tempo em fechar os punhos logo que a voz ríspida de Danilo foi acompanhada de um violento espalmar na mesa.
− Danilo... Que é isso? Calma... – mas parou de falar surpreendido pelas risadas do amigo que se contorcia de tanto rir, apontar para Avati e dizer:
− Te peguei – fez uma pausa, sem deixar de rir – só pra mostrar como é chato o politicamente correto – diminuiu a risada e colocou a mão no ombro de Avati – mas é pura brincadeira, viu? Só para quebrar o gelo.
Baiá, que se mantivera atento, começou a rir motivado pelas gargalhadas de Danilo, logo seguido por Jotabê. Avati tinha entendido o espírito brincalhão de Danilo, mas não o significado de suas palavras e manteve-se quieto. Desfez os punhos cerrados e acertou a postura do corpo. Observou os três rindo e tentou ficar quieto, mas logo foi vencido pelas risadas que ecoavam pelo salão do bar. Talvez, pensou Avati, esses brancos não sejam inimigos e eu possa matar minha curiosidade perguntando-lhes o que é surdo-mudo. Não, melhor não. Melhor esperar do que ir com muita sede ao pote.
Jotabê viu o garçom aproximar-se, apontou para o adolescente – um garoto alto, com um bigode fino, vestindo um jaleco branco e trazendo, em sua mão direita, a bandeja colocada um pouco acima do ombro, com o nariz um pouco empinado, dando-lhe uma postura palaciana – e disse:
− Por falar em gelo, tá chegando a nossa geladinha. Mas, antes, precisam experimentar a pinga – apontou Baiá e Avati para que fossem servidos – depois tomem um gole de cerveja. Uma delícia. Experimentem.
Baiá aceitou o convite de imediato. Segurou firme o copo com a mão direita, aproximou-o do nariz e cheirou. Seus lábios se distenderam num sorriso largo:
− Cheiro bom – aproximou novamente o nariz do copo, fechou os olhos e inspirou fundo o cheiro acre da bebida, ampliou seu sorriso e deu um gole. Engoliu o líquido, passou a língua sobre os lábios – é muito bom – estalou a língua – queima a garganta – e sorveu num único gole o resto do copo.
Avati, vendo Baiá deliciando-se com a bebida, olhou para o copo de pinga. Correu os olhos pelos dois brancos, de quem desconfiava, e voltou a olhar para a pinga. Não seria dessa vez que recusaria um desafio, ainda mais de branco. E aquela bebida lhe parecia um. Decidiu. Pegou o copo, ergueu-o diante dos olhos, mexeu-o em movimentos circulares, examinou seu conteúdo e aproximou-o do nariz. Seus músculos contraíram-se. Ele afastou o copo. Olhou para Jotabê. Olhou para Danilo. Ficou tranqüilo. Eles não viram sua hesitação. Levou o copo à boca. Deu um gole. Seu rosto se contraiu. Os olhos quase fecharam. Deu mais um gole, pequeno, desses mais para degustar do que beber, fez cara feia, colocou o copo sobre a mesa e disse num português sem muito sotaque: − Água quente queima garganta – colocou o copo sobre a mesa, deslizando-o para o mais longe possível.
Enquanto Avati limitava-se a beber moderadamente a cerveja, que lhe agradou mais, Baiá misturava doses de pinga e cerveja e contava animado da missão que estavam encarregados. Na medida em que se sentia mais à vontade, mais relaxado pelo efeito da bebida, mais falava. E reclamava da morosidade dos brancos em autorizá-lo a falar com o cacique. Baiá e Avati, há semanas no Centro do Poder, conseguiram apenas aproximar-se do hall de entrada da Prefeitura com a sensação de estarem muito perto, mas ao mesmo tempo longe, muito longe do Prefeito.
Quando Danilo entendeu que Baiá e Avati acreditavam resolver o problema do desmatamento falando com o prefeito, caiu na risada:
− Sabe Baiá, desse jeito você e seu amigo chegarão a lugar nenhum. Isso é um assunto federal. Sabe... Governo federal? O prefeito não cuida disso não.
Aquela informação explodiu nos ouvidos de Baiá que fixou os olhos em Danilo e viu sua imagem oscilar e duplicar. Apontou o indicador para Danilo, riu, balbuciou alguma coisa que nenhum deles entendeu, fez uma pausa e falou com a língua enrolada, tentando não perder o prumo:
− Não cuida? Cacique daqui é fraco?
− É uma questão de território, Baiá. Igual na sua tribo – falou animado Jotabê, um pouco menos bêbado que Baiá – Seu cacique só manda na sua tribo, né não?
− Mas lá – engoliu seco, movimentou a cabeça, fez uma careta e continuou – a gente fala direto com o cacique. Aqui branco não conhece chefe − dirigiu seu olhar para Jotabê, apontou-lhe o dedo indicador e começou a rir de sua imagem duplicada. Sem importar-se, Jotabê falou:
− É por isso que sua luta tem que ter apoio partidário, Baiá. E meu partido pode fazer isso por você e sua gente.
− Jotabê, que é isso? Explorar a inocência deles? Eles não sabem nada do que acontece aqui.
− Danilo, é que você não viu ele dar entrevista pra TV. O pessoal em volta gritou de alegria. Esse cara é revolucionário. Se for pro meu partido, você verá, em pouco tempo ele vira vereador. E será um político de mão cheia.
− É isso aí – exultou Baiá, apontando o dedo indicador para Jotabê e levantando um pouco o corpo da cadeira – Baiá político – e jogou-se na cadeira, esticando as pernas. Em seu rosto a alegria manifestava-se nos músculos descontraídos e no olhar para lugar nenhum.
− Viu, ele topa – falou Jotabê para Danilo – motivação já tem, o que é mais difícil. E como se virar com os políticos? Isso ensino rapidinho. Você verá, Danilo – elevando a voz, animado – esse cara vai explodir.
− Trouxa, é o que fará dele. Trouxa – replicou Danilo, meio irritado.
Baiá estremeceu ao ouvir a palavra trouxa. Levantou o rosto levemente, olhou para cada um deles e comprimiu as pálpebras, esticando o corpo na cadeira e relaxando. No fundo de seu cérebro, vozes distorcidas gritavam em coro trouxa, trouxa, trouxa. Avati, vendo o amigo praticamente largado e com os olhos fechados, ficou preocupado. Inclinou seu corpo na direção de Baiá, tocou-lhe os braços e murmurou em sua língua nativa:
− Tá tudo bem? – esperou alguma resposta, que não veio, e continuou - bebida de branco é onça d água. Deixou Baiá caído. Sem defesa.
Baiá aproximou sua cadeira de Avati, puxou-lhe o braço, pousou sua cabeça no ombro do amigo e começou a chorar sem conseguir conter as lágrimas que logo se tornaram intensa. Jotabê e Danilo entreolharam-se. Efeito da bebida, com certeza. Jotabê levantou, puxou sua cadeira e sentou-se ao lado de Baiá, abraçando-o carinhosamente:
− Chorar é bom, amigo. A pinga deixa a gente mais solto. Chore à vontade – aproximou-se do ouvido de Baiá e, sem disfarçar sua curiosidade, continuou – o que aconteceu? A gente fez alguma coisa?
Baiá tentando conter as lágrimas se recompôs. Passou a mão pelo rosto:
− Baiá lembrou escola. Baiá curumim. Lembrança forte... Na escola.
− A gente costuma ter saudades da escola. Eu sempre tenho – disse Jotabê, tentando tirar o índio do estado melancólico produzido pelo álcool – A birita te deixou com saudades, né? – acariciou-lhe o cabelo, deslizou sua mão até o rosto e deu-lhe uma palmadinha.
− Baiá não tem saudade. Escola só trouxe... – parou de falar e ficou olhando o vazio. Em seu rosto os músculos ora distendiam-se e um leve sorriso se esboçava, ora se contraíam, entristecidos. Num gesto brusco, arregalou os olhos, levantou-se da cadeira, ergueu o braço direito para o alto e falou com dificuldade, em voz alta – Baiá político. Fechou os olhos e se deixou cair na cadeira que deslizou sobre o piso. Avati, que se mantivera sóbrio, foi ágil o suficiente para segurá-lo, evitando a queda.
− Não vai conseguir fazer o quatro nem que o Juca tussa – disse Danilo rindo – quero ver como vai pra casa.
Avati, que estava de costas, terminou de arrumar Baiá na cadeira, virou-se para Danilo e disse em tom pausado, limpo e claro:
− A gente não tem casa – virou-se novamente para Baiá e disse, em sua língua nativa – desse jeito Baiá se perde.
Danilo e Jotabê se entreolharam. No estado em que Baiá se encontrava, eles não tinham nenhuma chance de encontrar hotel ou pensão. Além do mais, tirando as roupas que pareciam novas, nenhum dos dois dava qualquer sinal de que tivessem dinheiro. Jotabê, interessado em não perdê-los de vista, especialmente Baiá, estalou os dedos, tocou no ombro de Danilo e disse:
− Tenho uma ideia.
− Lá vem você. Com certeza sobrará para mim.
− Ô Danilo, que é isso? Você podia hospedar os dois hoje. Só essa noite. Amanhã arrumo um lugar para eles dormirem.
− Não dá Jotabê. Amanhã vou pro sítio.
Jotabê fez cara de quem estava tendo uma brilhante ideia. Estalou novamente os dedos da mão direita:
− Melhor ainda. No lugar de você ir amanhã, de ônibus, te levo hoje, de carro. Aí a gente dorme lá e volta no domingo. Que você acha?
Danilo olhou para Baiá que dormia pesado e roncava:
− Fazer o quê. Mas você vai dirigir? Está bêbado!
− Mas ainda estou no comando, disse Jotabê rindo. Saiu logo depois de pagar a conta, dividida com Danilo e voltou minutos depois dirigindo um jeep velho, com o escapamento aberto fazendo o maior barulho. Estacionou em frente ao bar, colocaram Baiá no banco traseiro, com a cabeça apoiada no colo de Avati. Jotabê, com os sentidos um pouco amortecidos pelo efeito do álcool, deu alguns solavancos antes do jeep ganhar a rua, deserta àquela hora da madrugada.
− Jotabê, agora me lembrei – disse Danilo, sentado ao seu lado, olhando-o curioso – pelo que eu saiba você não tem carro, tem?
Jotabê riu. Mudou a marcha, pressionou o pé no acelerador, virou-se para Danilo e disse, sem olhar para a estrada:
− Não se preocupe. Este não é roubado. Tomei emprestado de um amigo. Devolvo na segunda.
Danilo, apavorado, comprimia as duas mãos no assento do banco, olhando para frente, desesperado e com medo. Durante o resto da viagem, limitou-se a olhar apreensivo para frente, evitando qualquer conversa com o motorista. Queria chegar vivo, passar dois dias descansando, longe do barulho urbano, sem luz, sem TV, sem computador. Só o piar dos pássaros. O barulho das águas do córrego. O farfalhar das folhas. Os cães latindo.
Mas, afastados da civilização, só saberiam do sucesso conquistado pela entrevista de Baiá à TV, vista por milhões de pessoas e replicadas nas redes sociais, quando retornassem, na segunda-feira.

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