Ela no ponto
Leia o novo conto do autor adamantinense Cacá Haddad.

O rio cumpria sua costumeira função. Corria sem alterar seu hábito; escoar-se na correnteza, redemoinhar-se por um canto ou outro de seu leito. Vivia intensamente a sua essência, sua natureza única: ser um rio que flui.
Natalie, por sua vez, aparentava buscar sua existência em um torvelinho de sentidos que se alteravam diariamente, talvez mais de uma vez ao dia.
Descobri seu nome quando resoluto desci pelo elevador do hotel, atravessei a grande avenida e dirigi-me ao ponto de ônibus encravado ao lado do rio. Apressei o passo para o primeiro contato. Não consegui! Ela acabara de entrar no ônibus com seu bouquet de rosas. Ví o pequeno cartão branco descolar-se do ramalhete e indeciso, rodopiar no vazio e cair na calçada. Nele havia poucas palavras: “Natalie, Je t’aime!”
Fiquei quatro dias hospedado naquele quarto. No terceiro dia, véspera de minha partida, tomei a invasiva e curiosa decisão de entender o que acontecia. Foi tarde demais. Consegui apenas um nome.
Janelas de hotéis costumam despertar um sentimento voyeurístico pela cidade e pormenores alheios. No primeiro dia a observei, sem alcançar detalhes de seu rosto. A mulher em sobretudo marrom, echarpe bege, botas até os joelhos, cabelos negros e lisos, sentada no banco frio de um ponto de ônibus, atraiu minha distante curiosidade. Nem imaginava que do oitavo andar alguém a observava com questionamentos imbecis. Quem seria aquele ser humano perdido no inferno prosaico de uma cidade caótica? Qual o seu trabalho? Seria casada? Teria filhos? Quais seriam suas tarefas hodiernas? Qual trabalho teria desenvolvido naquele dia? Teria sido eficaz ou falhou em suas atribuições? Teria a frágil sensação de dever cumprido, ou estava frustrada por sua incapacidade? Ao sair do suposto trabalho, qual seria a sua responsabilidade? Passar na casa dos pais? Tomar um café com a amiga? Pegar o filho na escola? Ou comprar comida para o seu gato?
Seu celular tocou. Levantou do banco. Via-se que estava irritada. Gesticulava com os braços, andando de um lado para outro. Foi assim que entrou no ônibus, alterada em um vórtice de raiva.
No segundo dia de hospedagem, no mesmo horário, observei Natalie mais uma vez ocupando sozinha o ponto de ônibus. Desta vez trazia sacolas de um supermercado.
Junto a bilhões de pessoas ao redor do mundo, possivelmente se questionava ao final da jornada: qual o sentido disso tudo? A existência de cada um procurando uma resposta que o valha para um final de dia qualquer.
Percebi Natalie irritada ao ver o celular uma vez mais tocar. Parecia ter dúvidas se deveria ou não atender. Atendeu, escutou, falou alguma coisa de forma truculenta e desligou. Eu assistia de camarote mais um final de dia da vida de uma pessoa que jamais poderia imaginar minha frugal intromissão.
No terceiro dia de hospedagem, véspera de minha partida pensei em Natalie o dia todo. Quem era ela? Como se chamava? O que fazia da vida? Com quem estava irritada? Qual sentido procurava dar a sua existência?
Como narrado no início desta história, minha intenção foi frustrada por um ônibus que a levou antes que eu pudesse descobrir quem era. Dormi sob o efeito do vinho e de fragmentos de um ponto de ônibus invadindo meu inconsciente. Tentava chegar até Natalie. Ora era impedido pelo elevador que não chegava, ora por carros que não me deixavam atravessar a via. Quando finalmente alcancei o ponto, ele acabara de ser tragado pelo rio Sena que transbordava revolto e arrastava Natalie, suas sacolas de compras e seu celular. Era levada pela única direção do rio, aquela de sua natureza única. Esta natureza a afogava, enquanto eu observava em sua última tentativa de submergir o grito esganado de sua voz que dizia Je t’aime!