Opinião

O jacaré

Leia o novo conto do autor adamantinense Cacá Haddad.

Cacá Haddad Colunista
Cacá Haddad
(Arte: Freepik) (Arte: Freepik)

Como de costume entrou pela porta dos fundos, assenhorando-se do espaço. Trazia na mão a devolução do empréstimo. Sem pedir licença, colocou a lata de querosene timbrada com a logomarca do jacaré ao lado do saco de pão, já levemente amassado sobre aquela mesa de café da manhã.

– Araújo tá aqui uma lata lacrada de querosene. A que você emprestou, estava pela metade. Usei tudo para dar fim nas formigas.

Adelaide, a vizinha privada de semancol, típica familiar por proximidade habitacional e não consanguínea, nem percebeu que Araújo entrara em estado catatônico ao escutar a sua voz estridente agradecer a devolução do produto. Do fundo de sua noite bem dormida, surgiu a lembrança do sonho com o jacaré que o perseguia. O bicho saia de uma lagoa em seu encalço, abrindo a bocarra para gritar “Hoje!”.

Não teve dúvida, de todos os palpites de jogos este era o martelo que batia na mesa para definir o seu futuro. Já sonhara com cachorro e deu tigre, com elefante e deu camelo. Um dia havia cismado que os números da placa de um carro que quase o atropelou era a sorte grande. Conseguiu descobrir a onde o sujeito morava. Quando tocou a campainha viu um rapaz assustado sair pedindo desculpas pelo quase acidente. Tranquilizou-o, queria apenas saber os números da placa para comprar o bilhete. Araújo era assim, um jogador que acreditava, sempre, em todas as suas possibilidades. Sem esperança não existe sorte, dizia. Em algumas ocasiões, depois de sonhos que julgava proféticos, valia-se dos primeiros raios de sol para plantar-se frente à casa lotérica e aguardar o resultado positivo de seu presságio.

Foi preciso que a vizinha e a esposa o sacudissem, sentado na ponta da mesa, com a xícara de café na mão e a boca cheia de farelo de pão, para que voltasse ao mundo dos que apostam. Levantou da mesa sem abrir a boca, saiu para área do fundo de sua casa e olhou para o céu. Nuvens iluminadas se esboçavam livremente em um firmamento de fundo azul; uma delas era o formato exato de um jacaré. Sinais, sinais, era disso que Araújo precisava; apenas de sinais. Era sábado, dia de sorteio da loteria federal. Correu para dentro de casa, tirou o pijama, gritou para a esposa.

– Jandira não tem camiseta limpa aqui no guarda-roupa! Tem alguma aí na lavanderia?

A mulher veio com a camiseta na mão.

– Só esta daqui que você odeia, verde musgo, da cor de um jacaré.

– Dio Santo, a partir de hoje é a minha favorita. Dá aqui!

– Mas para onde você vai com tanta pressa?

– Ao encontro da sorte grande. Não me espera para o almoço, vou correr todas as lotéricas e bilheteiros até encontrar o jacaré.

Apressado, antes de sair, parou na frente do altar na entrada de sua casa. Em lugar de destaque, Santo Expedito, seu santo de devoção segurava a cruz com a inscrição em latim Hodie (Hoje). Sob o pé direito do santo, esmagado, o corvo agonizava a inscrição Cras (Amanhã). Fez o sinal da cruz enquanto falando sozinho saia sob os olhares da esposa e da vizinha que sem entenderem patavinas voltavam a falar da vida alheia.

Na lotérica sobrava um bilhete exposto, o avestruz. “Avestruz não, bicho besta, qualquer ameaça enfia a cabeça no buraco. Não quero!”, pensou.

Viu se aproximar o Etevaldo, marido da vizinha Adelaide. Vivia dizendo que colocar dinheiro em jogo era besteira, que dinheiro se consegue com trabalho e determinação e que o Araújo era um tonto de ficar criando caraminhola na cabeça com estas ideias de ficar rico com os bichos que sonhava.

– Tô com um palpite para o avestruz.

– Você que não acredita em jogo?

– Pois é rapaz, não sei porque cargas d’agua acordei pensando neste bicho hoje.

– Pois pode ficar com este bilhete. Aproveita que é o último. – Respirou fundo e encheu os pulmões – pois hoje o dia é do jacaré.

Correu para a outra lotérica, tinha o jacaré, mas apenas para o sorteio da próxima semana. Resmungava em pensamento inquieto: “Não! Preciso pra hoje! O jacaré falava que era hoje e Santo Expedito aprovou: Hoje!”

– Tenta com os bilheteiros, o Disquinho ou o Discão. Eles ainda devem ter. – disse o caixa da lotérica.

Saiu em rumo incerto, em meio aos transeuntes que vagavam pelo comércio. Viu o Disquinho cruzando a rua. Correu ao seu encontro, sem esperar o bilheteiro terminar o percurso, em meio aos carros, perguntava do jacaré.

– Acabei de vender o último que eu tinha. O sujeito disse que viu uma nuvem com o formato do bicho e resolveu apostar.

– Este era o meu palpite, este era o meu bilhete!

– Tem que ver com o meu pai, acho que ele tem. Tá sentado na frente da Pernambucanas.

(Imagem: Siga Mais).

De longe enxergou o Discão. Estava sentado em um banquinho, com seu chapéu country, camisa vermelha de manga longa abotoada no punho.

– Discão fala pra mim, tem o jacaré pra hoje?

– Tá com sorte. Um sujeito acabou de devolver. Tinha levado o bilhete, mas chegando em casa viu uma borboleta sentar na cabeça da esposa e resolveu trocar. Tá aqui, jacaré 77758, final 58.

– Sim, é o meu. Jacaré 58 para mim que tenho 58 anos. Vou ganhar Discão!

– Faço gosto que seja você! – aquiesceu o velho bilheteiro com a costumeira sinceridade.

Colocou o bilhete nos pés de Santo Expedito. Fez sua oração, agradeceu o santo e foi divagar sobre o que faria com a bolada. “Uma casa nova?” Já tinha a sua, quitada no banco, mas poderia comprar outra, alugar e ter mais um troco para o final do mês. “Quem sabe trocar os carros?” Já tinha o seu e a esposa o dela, ambos quitados do financiamento, eram bons veículos. “Mas carro desvaloriza, seria bom trocar os dois, quem sabe?”. “Ou viajar?” Já tinha viajado com a esposa, conhecia bem o Nordeste e até alguns países do exterior. Conhecia os Estados Unidos e a Europa. “Quem sabe ajudar a Júlia?” A filha já era formada médica, tinha vida estável. “Talvez aplicar? Sim, daria uma renda razoável. Quem sabe?”. Assim divagou atravessado de espasmos de felicidade.

Araújo era gerente de vendas aposentado de uma concessionária de veículos. Quando parou de trabalhar, enfim livre das metas escravas de seus supervisores, dedicou-se a estudar as probabilidades dos jogos. Fazia cálculos e procurava alinhá-los à contingência. “Um dia vem!”, dizia. E o dia era hoje. “Eu sonhei, a lata de querosene confirmou, a nuvem mostrou e Santo Expedito abençoou. É hoje! Se ganhar vou dar um troco para o Discão. Gostei quando ele disse: “Faço gosto que seja você!”

Ainda eram seis horas. Araújo fez mais uma oração para Santo Expedito, pegou o bilhete e foi acompanhar a transmissão no YouTube que começava às sete horas. Ligou o computador, abriu uma cerveja e se empenhou em assistir os inúmeros vídeos que a plataforma digital oferecia. O primeiro era sobre o comportamento do avestruz. Não sabia que era a maior espécie de ave, produz o maior ovo da natureza e que o fato de esconder a cabeça no chão era apenas mito. No vídeo seguinte descobriu que a criação do avestruz é muito promissora e tem deixado muita gente rica. Sua carne, couro e até as penas geram excelente lucratividade aos seus criadores.

O jacaré padecia de auto estima, o avestruz encontrou caminhos inusitados. O vizinho Etevaldo se personificou em seu inconsciente. O “Hoje” do Santo Expedito poderia estar dirigido ao vizinho? O mouse do computador brilhava por efeito do suor de suas mãos. A cada vídeo assistido deslumbrava esta maravilhosa criatura que era o avestruz. Ave de porte volumoso, poderia medir mais de dois metros, pesar até cento e trinta quilos, era comedor de pedras e um exímio corredor, podendo alcançar até setenta quilômetros por hora em uma corrida. “Meu Deus!”, pensou. Era o dia do avestruz?

Correu até a casa do vizinho, faltavam quinze minutos para o sorteio.

– Etevaldo quer trocar o bilhete do avestruz pelo jacaré?

– Não faço questão! Aliás, faço gosto que seja comigo.

Voltou para a frente do computador, desesperado com as últimas palavras do vizinho. “Ele usou o desejo de boa sorte do Discão para se agraciar”, murmurava angustiado.

Eram oito horas. A mulher o chamou, mas Araújo não respondeu. O encontrou com o mesmo olhar catatônico do café da manhã; pálido, no entanto. Já não respirava, nas mãos o bilhete do jacaré e na tela do computador o print do número sorteado. Nem jacaré, nem avestruz. Deu burro, final 12.

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