Sobre Babás e Miseráveis
A babá de branco empurrando o carrinho durante a manifestação e os aspectos sociais que compõem esse cenário.

O caso da babá de branco empurrando o carrinho durante a manifestação e a crença que o governo federal tirou milhões da miséria podem ser colocados no mesmo saco e ilustram, com clareza, grupos constroem a narrativa em seu favor, presos em suas fronteiras mentais e físicas, protegidos em sua zona de conforto.
Babás e os miseráveis? São apenas peças - signos manipuláveis e manipulados - na narrativa do poder, temo que não estamos, enquanto sociedade, nos importando com isso.
Na temporada que vivi no Rio de Janeiro a faxineira de casa era moradora do Pavãozinho. Ela trabalhava em casa todas as quartas e cozinhava como ninguém, eu esperava ansiosamente as quartas para poder comer da comidinha dela.
Através dela, nesta minha temporada de Rio, pude conhecer um pouco mais sobre as vidas dos moradores das favelas – o Complexo Pavão-Pavãozinho e o Cantagalo - que cercam Parte de Copacabana e Ipanema.
Ela me falou muito sobre sua vida no morro, sua família, a escola dos filhos, filhos adotados, o trabalho do marido, me levou para conhecer sua casa, família, a escola dos filhos. E é bem aquela típica história, um monte de filhos, terceiro casamento, uma casa minúscula com dois cômodos que abriga toda esta gente.
Em uma dessas quartas ela chegou muito chateada em casa e eu perguntei o que havia acontecido, ela disse que o elevador de serviço estava parado para manutenção e ela subiu pelo elevador social, com isso ela dividiu o elevador com uma moradora, que ao vê-la se encolheu em um canto e a olhou de uma maneira como se dissesse “empregada, este não é seu lugar”!
Eu simplesmente desacreditei, disse a ela, “como”? “Não pode ser, ela fez isso com você”? “Que absurdo”! “Você tem certeza que ela fez isso, não foi impressão sua”? Naquele dia, apenas naquele dia – talvez porque eu não tenha feito as perguntas ou olhado com olhar de quem vê – é que descobri que era vedado, para quem trabalhava em alguns dos apartamentos, usar o elevador social. Para mim isso não existia mais, como assim alguém segregar outra pessoa em um elevador, no meu prédio!? Aí a gente vai caindo na real e entende que existe uma imensa indiferença de nossa parte e uma colossal diferença entre o mundo ideal que a gente cria em nossa mente e, aquele mundo real que a gente acredita não existir mais, mas que na realidade, é o que existe de verdade.
Aí me lembrei das várias vezes, quando no supermercado Zona Sul, encontrei muitas mulheres vestidas com aqueles uniformes de empregadas da novela das nove do Manuel Carlos, as domésticas das madames do Leblon.
Mas também existe outro lado, o alardeado e festejado feito de que o governo federal tirou 50 milhões de brasileiros da miséria.
Aqui, também, faltaram às perguntas e um olhar um pouco mais atento, ou olhar, do jeito que nos ensinou Fernando Pessoa.
“Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina”
- Pois sim, contudo, porém e todavia o patamar de miserabilidade de nosso país era de... era de...?
- de 78 reais!!! O que? Sim!, quem ganhava acima de 78 reais no país não era considerado miserável, mas pobre...
Na realidade nua e crua é miserável a nossa forma de compreender tudo isso, não temos foco em nosso olhar que carece de empatia – se os olhos são a janela da alma, certamente estamos cegos!
- Li em algum lugar que a solução desse problema seria aumentar benefícios sociais de 78 para 100 reais.
- beira a insanidade cínica!
- Creio que a nossa lógica de país é que anda miserável, sem flutuações estatísticas e nenhuma margem de erro...
Existe, sim, um apartheid que é intencional de acesso à cultura, cultura a única forma para se alcançar a liberdade, de se (re)inventar e, de ser (como verbo de ação) e estar em nosso mundo. É o que disse o dr. Drauzio Varella “Mil vezes ser filho de intelectuais ricos do que ter pais pobres e ignorantes. Nutrição inadequada, infecções de repetição e indigência cultural comprometem o desenvolvimento do cérebro da criança” – “Sem minimizar o impacto da escolaridade e sua influência na formação do cérebro adulto, o papel da família é crucial. Vivam juntos ou separados, mães e pais que conversam, contam histórias, leem e criam um ambiente acolhedor promovem no cérebro dos filhos respostas hormonais e neuronais decisivas para o desenvolvimento pleno”.
Existe um Brasil de inclusão e um Brasil de exclusão! O mais grave disso tudo, é que esta terrível exclusão que separa o país em castas é mascarada por esta inclusão no mercado de consumo, disfarçada por esta sensação de que chegamos onde tínhamos que chegar, mas não, há muito que se caminhar nesse nosso país tão desigual.
Vivemos em um loop eterno de nossas verdades e certezas, nos retroalimentando de nós mesmos, das mesmas ideias que nos levam a “esquecer” ou não notar, que existe(m) outro(s) mundos lá fora – que este país está desmoronando, derretendo -, estes dois polos se empoderam de suas próprias razões e credos.
Cegos - por antolhos, presos no cabresto -, não enxergamos um palmo diante do nosso nariz, pois estamos de olhos tapados, mas uma hora precisaremos abri-los, mas aí, não reconheceremos o mundo, simplesmente porque vivemos em estado de cegueira e negação.
Isabel Cristina Gonçalves é Adamantinense, Oceanógrafa, Mestre e Doutora em Educação Ambiental. Pós-doutorado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no projeto: "Mudanças climáticas globais e impactos na zona costeira: modelos, indicadores, obras civis e fatores de mitigação/adaptação - REDELITORAL NORTE SP" & KAOSA/Rio Grande – Rio Grande do Sul. Acesse aqui seu perfil no Facebook.