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Não existe mais anti-vida do que guardá-la para o futuro

Os desafios cotidianos em uma sociedade refém no seu próprio tempo, presa aos medos, ao consumo e a outras amarras.

Por: Isabel Gonçalves
Não existe mais anti-vida do que guardá-la para o futuro

Vivemos de ilusão, no “fantástico mundo” onde as coisas parecem ser perfeitas. Neste mundo, mais importante do que “SER humano”, é imperativo “TER meios” para bancar o nosso consumismo, isto é, transformar em realidade nossa “vontade” por adquirir e acumular bens. O consumismo legitima a ilusão da plenitude do ser. A vida voltada para o consumo nos traz prazer momentâneo em uma sociedade voltada para a satisfação imediata de nossos desejos.

Todo dia a gente faz tudo sempre igual... A gente trabalha, muito, para poder comprar mais e mais, e “ter” o que exibir, pois acreditamos que assim, somente dessa forma, seremos reconhecidos pela sociedade como "gente de bem". São forjados a ferro e fogo, não seres humanos livres e autônomos, mas sim, engrenagens que fazem parte de uma sociedade baseada na “venda” – que na realidade é a entrega, a capitulação - do tempo e da vida para trabalhar e, consumir.

Em alguma parte de nossas vidas nos convenceram que é sinônimo de mediocridade nos contentar em ter somente aquilo que realmente precisamos, a gente desde cedo aprende que ter tempo livre, para viver a vida, é coisa de fracassado ou preguiçoso, neste mundo do consumismo e exibicionismo a qualquer custo, viver a vida representa MUITO pouco, pois o acúmulo de bens nos proporcionará a satisfação pessoal e, dessa forma, somente dessa forma, poderemos ser reconhecidos como “gente” - gente de bem, gente de sucesso, gente... - perante a sociedade. Na realidade nossa sociedade entrega toda uma vida a preço de banana, acreditando que está mais rica! Sem se dar conta que cada vez tem menos tempo para viver a vida como ela deve ser vivida, em sua plenitude!

E neste “fantástico” mundo onde o sujeito tem o valor daquilo que consome e exibe, nossas crianças já nascem sem tempo, domadas e extremamente competitivas. Infelizmente, o que estamos embutindo na cabecinha delas é que não há valor, pessoal ou do outro, se não vier acompanhado por produtos de consumo. Crescem confundindo TER humano com SER humano – como verbo de ação -, consumismo com qualidade de vida, e amor com qualquer coisa animada/inanimada que pode ser comprada.

Se nós adultos, que ao menos em teoria, temos maturidade e habilidades para discernir entre o que importa e não importa, somos iludidos e nos legitimamos na vontade e no poder de consumir e no consumismo, e nos prostramos diante de bem de consumo, agora pergunto à vocês, o quão estão vulneráveis nossas crianças que são vítimas “passivas” de propagandas em massa voltadas para estimular o consumo infantil? Se nós adultos temos um background de vida, que teoricamente nos tornaria resistentes a “vontade e imposição” do mercado, caímos neste conto de que seremos gente tão e somente se consumirmos e exibirmos o produto de nosso consumo, imaginem o que dever passar na cabecinha, coração e alma de uma criança bombardeada por promessas mentirosas de plenitude via consumismo. É inadmissível que sejam veiculadas propagandas induzindo uma criança a comprar algum produto, sobretudo porque ela ainda não tem formação e maturidade para discernir sobre tudo isso, não podemos esperar ponderação das crianças, mesmo porque, em se tratando de sedução de uma propaganda vendendo um produto, nós adultos não temos o mínimo juízo.

Já é extremamente difícil para um adulto resistir, se desvencilhar e se libertar das “vontades” do TER e assim SER o que é, e não o que a sociedade espera dele, imaginem uma criança que desde cedo é bombardeada por propagandas massivas de que ela apenas será “alguém” se souber dançar como a cantora da moda, ou ter todos os discos, sapatos e roupas da Xuxa. Imagina crescer em um mundo onde a criança só será aceita pelo grupo se tiver todas as bonecas caríssimas à venda, além de bolsas, cadernos, lápis, colchas e uma infinidade de produtos inimagináveis das Monster High, por exemplo, e toda “sorte” de personagens criadas para “seduzir” as crianças.

Melancolicamente estamos condenando crianças e adolescentes a nossa prisão.

Mas além da realização pessoal através do consumismo. Em nossa sociedade cada vez mais disfuncional, hipócrita, “doente” e sem tempo, crianças inquietas são/serão diagnosticadas – infelizmente isso é cada vez mais comum – como padecendo de algum transtorno e, assim, tratadas com remédios para acalmar e domar a mente inquieta e fértil. Estamos criando nossas crianças e jovens para que acreditem que pílulas tratarão todas as inquietudes de suas almas.

Na sociedade sem tempo para relações profundas (mesmo as em família) e das soluções instantâneas não há tempo pra contemplação e observação, artigo em extinção nos dias de hoje. Na sociedade medicada, diálogo é coisa ultrapassada, comprimidos são mais eficientes para tratar as “doenças fúteis” da alma.

E para aquele ser que insiste em ser transgressor, inquieto, diferente do padrão pré-estabelecido a receita poderá ser algum remédio que domará a sua mente e lhe dará “foco”.

Pobre mente criativa que será reduzida a apenas um foco! Isso porque os pais precisam trabalhar para comprar, ter e exibir, pois somente assim serão “alguém” de “valor” nesta sociedade, afinal, mesmo não tendo tempo para o presente, estão lutando para dar um “futuro” melhor para esta criança. Infelizmente estes países não têm tempo pra entender o que está se passando naquele coraçãozinho e alma, pois o que importa é o futuro.

Mas para a sociedade sem tempo e da resolução de problemas de forma instantânea, a receita é domar estas crianças, porque não há tempo. Afinal, tempo é dinheiro e sem dinheiro não haverá futuro para estas crianças - que desde cedo, além de acreditar na cura imediata pelo remédio, passam a crer que só serão alguém mediante muito trabalho alienado, que poderá lhe dar satisfação ou não, mas, sim, dinheiro para comprar a “felicidade”.

Em uma sociedade pobre, fétida, estéril e corrupta, mais vale parecer ser o que não é do que “ser humano” e, meus caros, isso certamente provoca uma imensa confusão na cabecinha, coração e alma de qualquer um que ousar questionar está lógica, sem lógica.

E esse pequeno ser humano, provavelmente virá ao mundo através de uma cesárea, pois nem o médico e nem a mãe terão tempo para esperar a hora certa e natural dele chegar, e crescerá tomando remédios para ansiedade, para depressão, para seus problemas do cotidiano, para dor de cabeça, para ressaca, para acordar, para dormir, para emagrecer, para criar músculos de forma instantânea e para medicar milhares de doença que não têm, mas que serão diagnosticadas.

Abdicamos desse tal presente. Desistimos das férias, para juntar mais dinheiro para o futuro. Abandonamos os amigos, relegamos os filhos, para trabalhar mais e poder dar um futuro melhor a eles. Mas será que um presente – presente - não é tudo o que nossos amigos, família e filhos precisam?

E infelizmente, educamos nossos filhos para reproduzir a nossa lógica de vida, para que sejam, como nós, os “AVARENTOS do viver a vida a cada instante no presente”, para serem os “milionários do viver a vida no futuro”.

Enclausuramos as crianças em escolas de período integral, deixamos a educação delas nas mãos de estranhos, pois não temos tempo, afinal estamos acumulando milhas. Assim, nossas crianças já nascem sem tempo, domadas, extremamente competitivas, presas e condicionadas.

O medo do futuro faz com que a gente não viva o presente, mas não existe mais anti-vida que guardá-la para o futuro.

Isabel Cristina Gonçalves é Adamantinense, Oceanógrafa, Mestre e Doutora em Educação Ambiental. Pós-doutorado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no projeto: "Mudanças climáticas globais e impactos na zona costeira: modelos, indicadores, obras civis e fatores de mitigação/adaptação - REDELITORAL NORTE SP" & KAOSA/Rio Grande – Rio Grande do Sul. Acesse aqui seu perfil no Facebook.
 

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