Ensaio sobre a nossa cegueira
Conhecemos o preço de tudo, mas não sabemos o valor de nada

O Planeta Terra se comporta de forma "inteligente" em seus processos dinâmicos para regular sua “homeostase” e manter a sua estabilidade, mas existem limites de suporte de “inputs” que consegue regular. Se levarmos em conta que a vida como conhecemos no planeta é baseada em um equilíbrio nas concentrações de determinados gases na atmosfera, ao alterarmos estas concentrações, mesmo em valores desprezíveis, se comprados a escalas geológicas, alteraremos significativamente a vida no planeta.
Vamos refletir um pouco: uma vez que o planeta terra, com seus 4,5 bilhões de anos, apenas “recentemente” (400 milhões de anos) equilibrou e estabilizou suas concentrações de gases na atmosfera - nitrogênio, oxigênio, metano, dióxido de carbono, ozônio, argônio, hidrogênio, entre outros - que propiciaram e deram suporte ao surgimento da vida na forma que conhecemos, como as ações humanas estão modificando estas concentrações em níveis capazes de alterar, não apenas a temperatura atmosférica, mas também o clima e consequentemente a vida no planeta?
Vindo de encontro à capacidade do planeta terra de se autorregular, as ações humanas estão contribuindo de forma significativa para um aumento das concentrações de gases na atmosfera. Este processo se intensificou deste desde o século XVIII, devido a um “fenômeno” que mudaria de forma significativa as características da humanidade, a “tal” da Revolução Industrial, baseada no “milagre” da dominação da natureza em prol da humanidade (1).
Neste sentido, é impossível dissociar a alteração do clima no planeta do estilo de vida de nossa sociedade, que é baseado na produção industrial em série - na transformação de matéria prima em um produto industrializado à base de energia, na maioria dos casos, altamente poluente – e no consumo desenfreado de “bens” oriundos desse processo industrial.
Mudando o clima, alteram-se significativamente as características dos biomas do planeta, que são responsáveis por dar suporte a vida, não apenas a humana. Terras férteis estão gradativamente sendo substituídas por espaços cada vez mais improdutivos devido à diminuição e imprevisibilidade de períodos de chuva, outrora mais regulares. Outro fator que contribui para depauperar a qualidade do solo é resultante das equivocadas estratégias de plantações que priorizam grandes áreas plantadas baseadas em monoculturas como soja, milho e cana de açúcar, que não tem como objetivo direto a alimentação humana, mas sim, servir como insumo para alimentar gado e como matéria prima na produção de biocombustível.
Nossa forma de ser e estar no planeta gera monstros: Há no mundo 7,2 bilhões de habitantes, dos quais mais de um bilhão passa fome - uma em cada sete pessoas no plante não tem o que comer - e mais de 2,5 bilhões vivem sem saneamento básico. Estes dados, que por si só já são catastróficos, mas ganham ar de tragédia se considerarmos que nada efetivamente vem sendo feito para informar, com contexto, a humanidade sobre a gravidade deste cenário.
Além disso, governos se omitem tanto no combate efetivo da emissão de gases, quanto no diálogo e cooperação entre nações para tentar remediar, mitigar e compensar estes problemas. A cada ano que passa a crise da água, do alimento, da energia e do consumismo desenfreado baseado na extração sem parcimônia de matéria prima do planeta ficam mais e mais graves.
Baseados na ilusão de um mundo de fartura e abundância, ancorado no domínio humano sobre a natureza, através de seu conhecimento e tecnologia, alimentamos um ciclo-vicioso, onde toda a agressão ao “planeta” se voltou e ainda se volta contra nós. Comportamo-nos como cegos guiados por “verdades” deliberadamente mentirosas, vivendo a farsa do bem estar e paz social, baseada na pretensa abundancia de um planeta que acreditamos nos fornecerá bens de consumos, água e alimentos de forma infinita. A muito as ações da humanidade no planeta deixaram de ser apenas um “ensaio” sobre a cegueira.
(1) Uma sociedade outrora formada por agricultores, artesãos e artistas transformou-se em uma sociedade de trabalhadores industriais e do comércio, com base na produção e no consumo de materiais extraídos sem parcimônia de Gaia. A partir da revolução industrial edificamos uma sociedade baseada no consumismo sem lastro.
(*) Isabel Cristina Gonçalves é Adamantinense, Oceanógrafa, Mestre em Educação e Doutora em Educação Ambiental. Atualmente trabalha como pesquisadora, Pós-Doutoranda, pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no projeto: "Mudanças climáticas globais e impactos na zona costeira: modelos, indicadores, obras civis e fatores de mitigação/adaptação - REDELITORAL NORTE SP"