Vozes
Pequenas Mentiras traz novo texto de César Carvalho.

Hoje estou com vontade de conversar. [...] Pelo visto, vocês não, como sempre. Mas, como sempre, vou falar e vocês vão me ouvir. Preciso falar. Depois que me acostumei às vozes eu sinto falta delas. Aí falo para compensar. É porque elas despertam minha curiosidade. Elas têm história! História de montão. Diferente da gente aqui, monótona vida sempre. Não dá nem para virar história, não tem história! A única coisa que a gente pode contar é a história das vozes. Ah, essa dá. Vocês se lembram, pois eu me lembro bem, predominavam as vozes femininas. Vinham todo dia. E falavam, nossa, como falavam. Coisas do dia-a-dia delas. As vozes masculinas eram mais escassas, a gente só ouvia de vez em quando e geralmente falavam de suas aventuras na caça, com as mulheres. Impressionante é quando falavam dos governos que têm. Em todos esses séculos nunca ouvimos sobre nenhum que não fosse abusivo e mentiroso. Vocês não acham estranho que todos os políticos sejam mentirosos e insidiosos? E desaparecem numa rapidez... Mas, voltam sempre. Por que será que as vozes toleram esse tipo de coisa? Para mim isso é incompreensível. Já os poetas, ah, os poetas, que maravilha! E a gente sabia que era poeta pelo jeito de falar. Com eles aprendi a prestar atenção nas vozes. E ouvir tornou-se um prazer. Com o tempo as vozes mudaram, a dos poetas também, mas eles continuam falando bonito. Agora, me divirto mesmo é quando ouço voz preocupada com a eternidade. Aí dou risada.
Imaginem... Vivem uns 70, 80 anos, se tanto, e se preocupam em se tornar imortais. Acho que não entendem nada de eternidade. Primeiro porque falam muito e segundo não sabem o que é viver séculos como a gente, aqui, parado, ouvindo, apenas ouvindo... As vozes... O barulho das folhas caindo... O vento roçando as árvores... A sinfonia selvagem dos animais. Puxa, se as vozes pudessem experimentar esta longa existência descobriria que a eternidade é o que se vive, só isso. Mas, elas não têm essa sorte. Talvez nem suportassem viver tanto. Acho que se cansariam fácil. Outra coisa que me chama a atenção é como elas mudam tudo. Até cidade mudam de lugar, imagine. Vocês repararam nisso? Essas mudanças, pelo que dizem – e mudar de cidade é só uma delas - não lhes fazem muito bem não. Acabam contaminando tudo. Só espero que não nos contaminem. Pensando bem, se nos contaminarem o azar será delas. A gente se adapta, elas não. E têm mais, elas dependem da gente para sobreviver. Se acabarem com a gente, acabam com elas. Que ironia. Enfim... [...] Vocês ouviram? São passos e parece que tem criança no meio. Melhor ficar quieto.
- Mãe, tô com sede, vamos beber água do poço?