Uma visita inesperada
Pequenas Mentiras traz novo texto de César Carvalho.

Uma das coisas que mais me incomoda é receber visitas quando estou trabalhando. E, naquele dia então a coisa estava séria. Tinha um artigo para entregar ao jornal, o prazo chegava ao fim e nada me vinha à cabeça. Estava realmente desesperado e ideia que é bom, nada! Como faço nessas ocasiões, quando a mente trava e o teclado do computador fica inerte, saio para andar, desanuviar e, quem sabe, às vezes acontece, surge alguma ideia. Estava saindo quando o telefone tocou. Era o Julinho dizendo que precisava muito falar comigo. Tentei desconversar. Julinho é amigo há muito tempo e suas conversas são sempre muito agradáveis, ainda que fale obsessivamente, sem deixar espaço para diálogo. O ruim é quando está perto de surtar – Julinho tem disso, toda vez que se percebe desequilibrado, interna-se na casa de repouso – aí fica difícil porque fala de forma desconexa, nervosa e ainda fica bravo quando não o entendemos. Mas minhas tentativas foram inúteis diante de suas alegações. Disse que tinha coisas muito importantes para me falar e precisava de minha ajuda. Insisti para que falasse pelo telefone mesmo, mas não, precisava me encontrar pessoalmente, pois, por telefone não conseguiria e, para não me atrapalhar, faria uma visita breve.
Com certeza, Julinho deveria estar vivendo aquelas velhas situações de auto-internamento. O primeiro indício eram seus olhos que se arregalavam enquanto falava e não se fixava em ponto algum, dando a impressão de estar procurando alguma coisa. O segundo indício era procurar os amigos mais próximos com os quais falava atabalhoadamente e depois, diante da incompreensão do ouvinte, ia embora ainda mais irritado do que tinha chegado. Aquele dia não seria diferente, tinha certeza.
O interfone tocou, autorizei o recepcionista a deixá-lo entrar e esperei. Ao abrir a porta surpreendi-me. Julinho estava com o rosto tranqüilo, seus olhos, ao contrário do que imaginava, estavam calmos e ele me abraçou carinhosamente. Senti uma estranha sensação de paz e convidei-o a entrar. Ele sentou-se na poltrona em frente ao sofá. Recusou a bebida que ofereci e esperou que eu me acomodasse antes de começar a falar.
− Bartê, desculpe, mas eu precisava mesmo falar com você. Você é meu melhor amigo e não tenho coragem de contar o que me aconteceu para, mais ninguém. Sei que me entenderá.
− Julinho, se você puder ir direto ao assunto, agradeço. Sabe, tenho um trabalho a fazer... E no que posso lhe ajudar? Você falou que precisa de minha ajuda, não?
− Não se preocupe, serei o mais conciso possível. Ainda que seja difícil encontrar palavras para descrever o que me aconteceu. Foi ontem à noite, pouco antes de deitar-me quando o Bruno entrou no quarto e começamos a conversar. Você não conhece o Bruno. É um cara legal e um baita contador de histórias, mas ontem foi diferente. Ele entrou, sentou na cadeira em frente à minha cama e começou a falar. Sua voz foi penetrando em minha mente e eu me vi flutuando. Era como se eu não tivesse corpo.
Logo vi, Julinho queria me contar alguma viagem psicodélica. Tinha ingerido alguma droga, dessas que produz a sensação de flutuar no tempo e no espaço. Cansei de ouvir esse tipo de história de muitos usuários – seja de maconha, de ácido lisérgico, hoje meio fora de moda, hayuasca, peiote, cogumelos – quando os entrevistei para algumas reportagens jornalísticas. Mas ele negou veementemente. Não tinha ingerido nada, nada, nem mesmo a caipirinha que tomava antes do jantar. E ele prosseguiu em sua narração:
− Depois que meu corpo praticamente se dissolveu e eu fiquei um tempo, não sei quanto, nesse estado, voltei a me sentir. Senti meus músculos, meu coração batendo e um sol forte na cabeça que me produzia um suor indescritível. Levei um susto porque, ao abrir os olhos, me vi segurando uma picareta que batia na rocha de uma montanha. Era como se eu fosse um quebrador de pedras há bastante tempo. Minhas mãos estavam calejadas, meus pés descalços e sujos. Por mais que me perguntasse como estava ali, não me lembrava de nada. Era como se eu tivesse sido a vida toda uma espécie de garimpeiro, só que não garimpava nada, só quebrava pedras. Desejei ardentemente sair daquela vida, mas ao mesmo tempo sabia que isso era impossível. Tinha que ficar ali, dando picaretadas na rocha. Nisso, ouvi um barulho de cavalos trotando e logo apareceu uma carruagem transportando uma pessoa que não cheguei a ver, mas devia ser muito rico porque a carruagem era luxuosa, cheia de frisos amarelos e o condutor vestido de forma impecável. Na hora desejei ser aquele homem, não só porque era rico, mas porque estava protegido do sol e levava uma vida confortável. Ah, como gostaria de ser aquele homem. Mal formulei esse desejo e, sabe o que aconteceu? Igual cena de filme, de repente eu estava numa carruagem tão rica quanto aquela e muito, mas muito confortável. Exultei. Estava livre da pobreza, do desconforto e daquela picareta que me deixava as mãos cheias de calos. Mas logo em seguida, a carruagem foi parada. Quem teria ousado me parar? Olhei pela janela e vi alguns soldados comandados por um oficial do exército. Se esse oficial pode parar minha carruagem, significa que ele é mais poderoso do que eu, então, bem... novo corte cinematográfico Bartê, de repente eu era um oficial do exército comandando batalhões. Que alegria! Longe do árduo trabalho de quebrar pedras e podendo fazer o que bem entendesse. Tinha centenas de soldados à minha disposição. Mas aí comecei a suar tanto quanto suava quando era quebrador de pedras e fiquei muito importunado. Se um oficial tem todo esse poder, mas não consegue escapar do suor é porque tem algo maior e mais poderoso do que comandar exércitos. Aí me transformei no sol, Bartê. Foi a coisa mais linda. Lá do alto via o planeta em tela panorâmica e com meus raios navegava pelos ambientes que me provocavam, muitas vezes, estranhas sensações tal o grau de devastação que sofreram. Foi quando compreendi que nada permanece e o planeta se transmuta incessante. Aí vieram as nuvens e lastimei ser bloqueado por aquelas formas indefinidas, às vezes brancas, outras cinza. Foi lastimar e mudar. Virei nuvem. Fiquei eufórico. Sentia-me leve. Mudava de forma N vezes e, para sacanear, enchia o saco do sol. Mas não durou muito porque fui empurrado contra a minha vontade. Um vento, fraco a princípio, depois forte, fortíssimo - não sei o nome, faltei nessa aula de geografia – me dissolvia, me desmanchava e eu era conduzido. Reclamei do vento, mais poderoso do que eu, nuvem, e me tornei aquele vento forte, fortíssimo e novamente me alegrei. Podia me tornar furacão, tornado, o que quisesse e me senti forte, poderoso...
O telefone toca. Caminho até o hall de entrada, onde está o telefone, e atendo. Pego o aparelho e me viro em direção a Julinho. Discretamente ele presta atenção em meus movimentos e, claro, escutará a conversa. Isso não me preocupa − uso o telefone mais para agendar compromissos e menos para longos papos, que prefiro ao vivo. Do outro lado da linha a voz feminina que logo identifico, é a mãe de Julinho. Está desesperada porque o filho fugiu do hospício e quer saber se eu o tinha visto. Fiz um longo silêncio, olhei para Julinho e menti, não, não tinha visto mas daria notícias caso o encontrasse. Desliguei o telefone e voltei ao sofá.
Sentei. Julinho olhou para mim de um jeito calmo, com um meio sorriso estampado no rosto, como se nada tivesse acontecido. Isso me surpreendeu mais do que ele ter fugido do hospício. Aliás, fugir é uma palavra inadequada para o caso dele. Um cara que se interna por conta própria não tem o direito de se dar alta? Além do mais ele estava super bem, notei logo que chegou. Imaginava encontrar um alucinado e encontrei um cara tranqüilo que nem sequer se interessou em saber o que eu tinha conversado com sua mãe. E retomou sua contação:
− Eu te contei do furacão, né?! Então... Tinha me tornado um furacão e gostava daquilo. Girava, cada vez mais, e girava, girava. Uma delícia, mas que acabou. De repente comecei a me transformar em vento cada vez mais fraco até me tornar brisa. Sabe, aquela brisa suave, aliás isso é redundância, não?! Brisa já é suave, senão não é brisa – ri – mas o pior não era ter virado brisa não, o pior é que senti que alguma coisa me impedia, me bloqueava. Sabe o que era? A montanha, cara. Imagine. Uma montanha bloqueando o vento. Fiquei puto. Fiquei com vontade de virar furacão de novo e destruir aquela montanha, acabar com ela. De novo, foi reclamar e me tornei o objeto reclamado, virei montanha! Nossa! De novo aquela sensação boa. Estava gozando uma nova forma, alta, rochosa. E poderosa porque podia bloquear o vento. Fiquei um tempo assim, de montanha. Curtindo. Não dá pra dizer em termos de hora, sabe. O tempo da montanha é diferente. Parece infinito. Sei lá. E prazeroso. Bem, prazeroso até eu sentir uma fisgadas no meu sopé, sabe, a base da montanha. Cada fisgada que doía, mais doía mesmo, não dá nem pra te dizer o quanto doía. Fui ver o que era aquilo e surpresa, tinha um cara igualzinho a mim quebrando minhas rochas. Dei uma gargalhada, gozando a mim mesmo, afinal aquele homem com aquela picareta conseguia ser mais forte que eu, a montanha. Não deu outra, me vi, de novo com a picareta na mão. Trabalhei uma infinidade, dias e noites até que um dia, já cansado de tanto trabalho sob aquele sol escaldante, dormi. Ao acordar eu estava sentado na cama. O Bruno não estava. A princípio não entendi nada e fui atrás dele. Onde estaria? Quanto tempo eu vivi aquilo que me pareceu interminável? Mas eu não achei o Bruno.
Julinho fez uma longa pausa que me deixou indeciso: tinha terminado? Com o silêncio prolongando-se, perguntei-lhe e, diante da resposta positiva, tomei a rédea da conversa, em tom bastante áspero:
− Julinho, desculpe, a gente é amigo e coisa e tal, mas você vem na minha casa, num momento em que estou desesperado, cheio de trabalho e com o editor me enchendo o saco, me contar uma história dessa?
− Você não acredita em mim?
− Claro que não, Julinho, essa história que você viveu – e falei um viveu assim, bem debochado, fazendo careta – não passa de uma história clássica que veio lá do Oriente, acho que do Japão. Não sabia que você tinha essa mania de pegar história e contar como se as tivesse vivido. Cara, desculpe, mas você ta é maluco. Daqui a pouco vai virar Raul Seixas.
Depois de me ouvir com aquela calma, que começava a me deixar nervoso, falou com a mesma voz mansa que contou sua história:
− Bartê, não contei uma história fictícia, contei uma experiência vivida. Uma coisa que senti de corpo inteiro. E não era sonho, era realidade. Li em algum lugar? Se li, não lembro. Mas me lembraria se a tivesse lido, ou visto algum filme. Mas isso tem pouca importância. Vivi essas experiências. E o mais maluco, Bartê, foi quando terminaram. Um sentimento esquisito, mas não ruim, pelo contrário, pulsa até agora em meu corpo e me sinto inteiro e feliz, e me sinto parte de um todo, e fico feliz com isso.
− Isso que você teve foi uma epifania, uma mensagem dos deuses – e mais uma vez ironizei o tom de voz na mensagem dos deuses.
− Rótulos, Bartê, palavras. Quando é que vai aprender que as palavras são pobrinhas – ri – e só conseguem apontar, nunca chegam às coisas. Mensagem dos deuses, viagem astral, seja lá o nome que quiser dar, é apenas um nome, um indicativo. Não substitui a experiência vivida – ele fez uma longa pausa, me olhou firme, mas sereno – Quer um exemplo? A Casinha. Quando o pessoal fala da Casinha, antigamente era hospício, depois virou casa de repouso, Casinha pros íntimos. Esses nomes passam longe de indicar o que acontece lá dentro. Imagine então o que se passa na cabeça de cada um. A experiência de cada um.
− Mas a experiência de cada um não é a história lida – falei meio indignado.
Primeiro ele começou a rir, com seu jeito calmo, que continuava me irritando, depois, me olhando bem no fundo dos olhos, começou a fala mansa:
− Nunca imaginei que ouviria isso de um jornalista. Que se pretende escritor, diga-se de passagem.
– O que eu quero dizer é que você não pode viver uma história que leu.
Ele levantou-se em direção à mesa de centro da sala, serviu-se de uma cachaça que estava ali desde a noite anterior e, sem tirar os olhos de meu rosto, degustou a bebida e falou:
– Meu amigo jornalista e futuro escritor famoso, qualquer leitura é uma viagem. E todo mundo viaja quando ouve uma história.
Antes que ele terminasse de falar, peguei o celular para checar as horas. Estava meio embaraçado com aquela conversa e a desculpa, mais do que aceitável, era o compromisso com o trabalho. Ele concordou e eu lhe perguntei:
- Afinal, você disse que precisava de um favor meu, o que é?
- Posso ficar uns dias aqui em seu apartamento? Não quero voltar para a casa de mamãe porque ela vai me encher o saco querendo que eu volte para a Casinha. Não quero brigar com ela.
- Aliás, foi sua mãe que ligou, querendo saber se eu tinha lhe visto.
Ele deu um sorriso e perguntou:
- Em qual quarto posso ficar?