Um ritual indígena
Um ritual indígena. Novo texto de César Carvalho, em “Pequenas Mentiras” desta semana.

Hoje tive uma surpresa. Ao chegar em casa, depois de passar pela redação, encontrei um volumoso envelope na portaria. Segundo o recepcionista, teria sido deixado pelo Julinho, “aquele seu amigo que vem sempre aqui”. Achei estranho porque ele adora conversar e não deixaria de visitar-me para um papo e, se fosse o caso, entregaria pessoalmente.
Entre curioso e ansioso, telefonei para saber o porquê daquele envelope. Ele estava viajando e sua mãe não tinha a menor ideia de quando voltaria. Ah, claro, ela também nada sabia acerca do envelope. Resolvi abri-lo e, com o título A Saga de Baiá, encontrei um monte de folhas de caderno manuscritas. Na primeira página, seguro por um clipe, um pedaço de papel com o recado: “como sei que você carece de ideias, quem sabe este material lhe ajude a escrever histórias. Use-o como quiser e nem precisa se preocupar em me dar crédito”.
Confesso que fiquei um pouco indignado. Porra, uma vez na vida reclamei ao Julinho que não estava conseguindo escrever − um problema pessoal. Ele até brincou:
− Tá com o famoso bloqueio de escritor, hein?!
E me deu uma tapinha nas costas. Agora se sentiu à vontade para fazer esta acusação absurda. Carente de ideias! Num gesto brusco joguei o envelope sobre o sofá, servi-me de uma bebida e sentei. Em minha cabeça a frase me martelava doído, “quem sabe este material lhe ajude a escrever histórias”. Dei mais alguns goles, acendi um cigarro e, vendo a janela fechada, levantei-me para abri-la, pois, apesar de fumante, detesto o cheiro. Voltei ao sofá e, antes de sentar-me olhei para o envelope. Estou sendo ingrato, talvez seja bom reconsiderar. Afinal, que adianta indignar-me diante da crítica de um amigo como o Julinho? Depois, sua intenção é apenas ajudar-me! Deve ter tido a maior trabalheira para preparar esse material. Sentei, abri o envelope e comecei a ler:
Nossa história começa no norte amazônico quando alguns meninos brincavam na floresta e ouviram um barulho estranho e muito alto. O mais velho, à frente, parou atento. Pegou uma flecha, ajustou-a na corda do arco e passo a passo caminhou em direção ao barulho. Foi seguido pelos outros. Caminharam lentamente, agachados e com seus arcos retesados prontos para qualquer imprevisto. Duzentos metros depois estancaram, assustados e se esconderam nas moitas. À sua frente, um pequeno trator, com uma serra motorizada, cortava as enormes toras em pedaços pequenos deixando-os prontos para o transporte. Os garotos se entreolharam. Sem dizer palavra afastaram-se procurando não ser vistos. Correram alucinados pelo meio da mata até a aldeia.
Depois de ouvir as crianças o cacique não hesitou em consultar o pajé. Haveria alguma magia capaz de impedir a invasão do homem branco? Declarariam guerra?
− Nossa magia é fraca para derrotar homem branco, disse o pajé. Arma que cospe fogo mata todo mundo, não adianta fazer guerra. Vamos consultar os deuses.
À noite, em volta da fogueira, iniciaram o ritual. Enquanto homens e mulheres dançavam, evocando os espíritos, o pajé servia um líquido verde escuro a cada um dos membros, homens, mulheres e crianças. Raro era aquele que não fazia careta diante do sabor amargo e fermentado da bebida.
Poucos minutos depois, todos estavam em transe, dançando e cantando. No auge do êxtase, o pajé interrompeu o ritual. Chamou um a um os guerreiros para que relatassem a mensagem recebida dos deuses. Mas, não convenciam. Uns diziam que deviam atacar os brancos, alguns que nada haviam recebido, enquanto muitos outros falavam de fome, doenças e mortes que assolariam a aldeia.
Quando o guerreiro terminava seu relato, o pajé servia-lhe mais beberagem e mandava-o esperar perto da fogueira, junto aos outros. Depois, conversava com o cacique. O sol já estava alto quando o último relato foi ouvido e o pajé dirigiu-se ao centro da aldeia e começou a cantarolar sendo logo seguido pelos demais. Reverenciou a fogueira e sentou-se ao lado do cacique. Todos se sentaram à sua volta, formando um enorme semicírculo.
Ansiosos, o crepitar da fogueira mal disfarçava o som pesado e ofegante da respiração. Ninguém se mexia. Qual seria a mensagem dos deuses para evitar que os homens brancos desmatassem a floresta e minassem a fonte de vida da aldeia? Iriam para a guerra? Mudariam mais uma vez? E para onde? Ao norte a hidrelétrica diminuiu o tamanho da terra, ao sul os campos de mineração, agricultura, e nada de floresta, nem de caça.
O pajé tomou a palavra e vagarosamente comunicou a decisão tão esperada: não haveria guerra contra o homem branco, mas negociação. Houve um burburinho. Todos os homens protestaram, muitos ergueram os punhos fechados. Desde que se isolaram vivem em estado de guerra, sempre atentos ao inimigo, índio ou branco. A guerra, não a negociação, é o mecanismo de sobrevivência.
O cacique ergueu a mão, pedindo silêncio e tomou a palavra mostrando o quanto eram vulneráveis diante dos homens brancos que tinham armas de fogo e eles, lanças e flechas! A platéia silenciou. O pajé tomou a palavra:
− Baiá foi o escolhido.
Novos protestos. O burburinho aumentou. Baiá é o menos guerreiro de todos. Baiá é fraco. Baiá prefere cantar, dançar a fazer guerra. Que sucesso teria junto ao homem branco? Nenhum deles queria acreditar, Baiá, o escolhido!
Estabelecido o silêncio, o pajé chamou Baiá para contar a mensagem recebida. Ao ouvir seu nome, Baiá olhou de um lado, olhou para o outro e, surpreso, apontou os dedos para si mesmo:
− Eu?!
O pajé olhou duro em sua direção e disse:
− Não ouviu não? É você mesmo, Baiá!
Baiá voltou a olhar para os lados. Fez uma pausa e, sem jeito, levantou-se. Em pé, junto à fogueira, com voz tímida falou:
− Dançava, depois de beber o vinho sagrado, e caí. Os deuses me levaram para longe. Era um lugar grande, muito grande. Sem árvore, sem nada, tudo cinza. Homem branco andando de um lado para o outro em trilha estreita. Gente triste, sem brilho das árvores. Só sombra de ocas muito altas, feitas de pedra. Aí os deuses me levaram para uma oca muito grande. Não era alta, mas grande, muito grande e fiquei de frente a um homem vestido com roupa cinza e um pano com nó no pescoço, mas só dava para ver um pedaço porque outra roupa cobria o corpo. Ele conversou comigo, mas os deuses não me deixaram ouvir. Entendi que era a mensagem, levantei e voltei a dançar.
Depois que Baiá terminou, começou a andar em direção ao seu lugar quando o pajé pediu-lhe que esperasse:
− Essa foi a mensagem enviada pelos deuses. Baiá é o escolhido para falar com homem branco.
Um dos índios pediu a palavra:
− Baiá pode ter sido escolhido pelos deuses, mas a aldeia tem que concordar.
O pajé enfureceu-se:
− A mensagem dos deuses não pode ser discutida, tem que ser cumprida. Senão vem castigo. O nosso castigo é desaparecer. É acabar. Sem floresta não tem caça, sem caça não tem vida.
Os argumentos do pajé pareceram ser conclusivos porque logo os guerreiros se acalmaram. Em seguida, o cacique tomou a palavra e, para aumentar a confiança da tribo, explicou que, mais do que qualquer outro, Baiá tinha grande chance de sucesso porque era o único que conhecia a língua dos brancos. Sabia ler, escrever e conversar.
Nesse ponto interrompi a leitura do texto de Julinho. Não sei de onde ele tirou essa história, mas, se tiver algum fundo de verdade, não deixa de ser interessante. Mesmo numa tribo indígena, assim como em nossa sociedade ocidental e civilizada, o poder da poesia parece estar sempre em cheque. Será que Baiá teria capacidade de impedir o desmatamento e, assim, salvar sua tribo de morte certa?
Só tem um jeito de saber, continuar lendo a história.