Um passo atrás
Cesar Carvalho traz seu novo texto, “Um passo atrás”, em Pequenas Mentiras desta semana.

Baiá bateu a porta do escritório e saiu ofegante, pisando duro. Avati vinha logo atrás, descendo a trilha em direção ao rio, tentando chamar a atenção do amigo. Queria saber por que Baiá levantou o homem pelo pescoço. O que eles gritavam? A curiosidade o corroía, mas Baiá continuava mudo.
Perto do rio, Baiá parou e falou agressivo:
− Onde está o barco?
− Baiá, a gente não...
− Vamos embora. Aqui é perigoso.
− Perigoso?! Por quê?
− Depois explico.
No final da tarde, longe do Serviço de Proteção, acamparam. Acenderam uma pequena fogueira e, enquanto Baiá cuidava de manter o fogo acesso, Avati assava o peixe e puxava conversa, ou, pelo menos, tentava:
− Baiá, o que aconteceu lá dentro? Por que você quase bateu no homem? Levantou ele pelo pescoço assim, ó – ergueu o peixe e riu – que ele ficou mais branco do que já era.
Baiá limitou-se a olhar. Continuou sentado. Avati prosseguiu:
− Vi que você ficou vermelho de raiva e ele apavorado. O que vocês estavam falando? Declarando guerra? Nós vamos lutar contra os brancos?!
− Não seja idiota, Avati. Se fosse guerra o branco estaria morto.
− O que vocês estavam falando? Não entendi nada.
− Ele estava enganando a gente. Percebi logo que cheguei.
− Enganando?
− É, enganando.
− E o que vamos fazer? Sem floresta, sem caça...
Baiá, agora mais descontraído, respondeu;
− Ele falou que ia mandar uma carta para o Presidente do Serviço de Proteção. Só que não sabe em quantas luas vem a resposta. Não acreditei muito. Quando entrei ele conversava com alguém. Ouvi tudo, mas teve coisa que não entendi. Algo não me cheirou bem. Ele dizia que se índio aparecesse daria um jeito de enrolar. Um jeito de enrolar – Baia repetiu em voz alta, passou a mão no queixo – Sabe, essa palavra enrolar, um jeito de enrolar... Fico confuso, não consigo entender direito.
− Mas você não aprendeu a língua deles?
− Mas enrolar, jeito de enrolar, não me lembro de ter ouvido antes.
Avati, tentando fazer graça com o fato de não falar nenhuma palavra em português, pronunciou enrolar. Baiá teve um sobressalto, pediu que ele repetisse, ouviu atento, sorriu e cantarolou:
−Rola bola, bola rola/ Rola pedra, pedra rola./ Fala logo e não enrola/Que teu pai é de Angola. – fez uma pequena pausa - É isso, Avati.
Avati encolheu os ombros, sem entender:
− É isso o quê?
− Que a gente foi enrolado!
− Enrolado?!
− É, preste atenção, essa música – rola bola, bola rola/rola pedra, pedra rola – aprendi na escola dos brancos. A bola rola, a pedra rola. Enquanto rola, o tempo passa. Concorda? É isso – fez com as mãos o formato de uma bola – o jeito de enrolar é fazer a gente igual bola ou igual pedra, se índio aparecer dou um jeito de enrolar. Sabia! Senti cheiro ruim logo que cheguei.
− E se vier a época da grande fome? Como a aldeia sobreviverá?
Baiá deu risada, bateu a mão na perna e disse, brincando:
− De minha parte, sigo o conselho de Nhandeiara, o grande espírito.
− Conselho?! Qual conselho?
− Matar Avati.
− Me matar?! Logo eu?! Por quê?
− Para que nasça a planta de milho – Baiá caiu na risada, batendo nas pernas – Avati foi quem renasceu milho. Você não conhece a história não? Não?! É curta. Dois guerreiros procuravam resolver o problema da fome de sua tribo. Aí apareceu Nhandeiara, o grande espírito, com sua mensagem: a salvação da tribo dependia de um duelo mortal entre os dois. Eles concordaram, duelaram e Avati morreu, transformando-se em planta de milho, salvando a tribo.
Avati olhou para Baiá, balançou a cabeça e passou-lhe um dos peixes:
− Tome. Coma seu peixe e vá dormir!
♫
Na manhã seguinte, entraram na aldeia aparentemente deserta, não fosse o bater do pilão e o som distante das crianças brincando no rio. No meio do caminho Baiá diminuiu os passos, olhou para o céu, para a copa das árvores se vergando perante a brisa matinal e sentiu seu corpo todo estremecer, como se tivesse levado um choque. Chacoalhou a cabeça e continuou a andar, falando em voz baixa, para si mesmo:
− Isso está muito esquisito.
Avati que lhe percebera os movimentos estranhos, preocupou-se:
− O que aconteceu? Está tudo bem?
Baiá deu um sorriso sem graça:
− Só um pressentimento – fez uma pausa – deixe para lá.
Avati parou, olhou para o amigo e falou calmo:
− Baiá, você é esquisito. Muuuito esquisito – e continuou sua caminhada.
Baiá observou o amigo distanciar-se, levantou a cabeça, olhou para o céu e fechou os olhos. Abaixou a cabeça e, ao abrir os olhos, se deparou com o pajé parado a poucos metros. Falou para si mesmo:
− Só me faltava essa! – e caminhou em sua direção.
− Estava lhe esperando. Venha.
Como estava esperando se nem ele, Baiá, tinha ideia de quando retornaria à aldeia? Só podia mesmo ser um chute. Igual no jogo da criançada que chuta a caveira de qualquer jeito e às vezes acerta. O pajé, com certeza, estava dando um chute. E Baiá nem podia dizer nada. Como discutir com um enviado dos deuses?!
− Não acredita? Sente-se aí. Depois conversamos – e entrou na oca. Ao retornar, fez uma reverência, sentou-se e tirou o fumo da pequena bolsa que fora buscar. Picou-o, enrolou-o na palha e acendeu. Deu algumas tragadas, passou-o para Baiá e começou a falar:
− Você fez tudo errado.
− Errado? Por que errado?
− Você falou com o Ademar!
− Não estou entendendo. Ademar?! A visão era clara: conversar com homem branco, de poder. O homem do Serviço de Proteção chama-se Ademar?! Não importa, ele tem poder, não tem?
O pajé pegou o cigarro das mãos de Baiá, deu uma tragada, levantou a cabeça, soltou a fumaça para o alto e falou sereno:
− Se você tivesse ido ao lugar certo, não demoraria uma lua para voltar, demoraria muitas luas. Não precisa falar com os deuses para saber isso. Já esqueceu quem é o Ademar?
− É o cacique do Serviço de Proteção, o chefe.
− Baiá, você... Você não sabia que foi Ademar quem vendeu nossa terra para os madeireiros e depois nos expulsou?
− Não. Não sabia... Acho que nem tinha nascido!
− É verdade. Você chegou depois que fomos expulsos.
− Cheguei?! Cheguei de onde?
O pajé tragou o cigarro lentamente, olhou para Baiá de alto a baixo e não disse nada. Baiá insistiu:
− O pajé está querendo dizer que não sou índio?!
O pajé ergueu e abaixou o braço fazendo cara de isso não tem importância. Deu nova baforada, passou o cigarro para Baiá e mudou de assunto:
− Depois do ritual, na próxima lua, você viaja para a terra do homem branco. Dessa vez, vá para o lugar certo. E não se esqueça de levar vinho sagrado.
Baiá deu uma última tragada, devolveu o cigarro ao pajé e disse:
− Acho que não sou capaz de cumprir esta missão.
O pajé, que guardava o cigarro dentro da bolsa, riu:
− Você tem medo de quê?
Baiá retraiu um pouco o corpo, intimidado:
− Não sei se é medo. Acho que não. Se tivesse medo não tentaria enforcar o Ademar. Mas, às vezes, só de pensar no homem branco suo frio.
O pajé ouviu atento e aconselhou:
− Na sua viagem, leve um espelho. Das quinquilharias do homem branco, é o melhor.
− Espelho? Para quê?
− Quando sentir medo olhe-se nele.
− ?!
− E quando estiver feliz, também – riu, levantou-se e entrou na oca. Baiá continuou sentado algum tempo, se perguntando o que o pajé queria dizer com levar espelho na viagem.
Mais tarde, aproveitando o calor do sol, foi até a beira do rio, no local onde costumava sentar-se com seu avô e ouvir histórias. Mas nunca ouvira nenhuma mencionando Ademar e seus mercenários, nem mesmo sobre como ele, Baiá, teria chegado à tribo. Sempre fora tratado como índio, por que, agora, essa história do pajé? Cheguei?! Cheguei de onde, atormentava-se Baiá. O avô contava as mais diversas histórias, histórias que ouvia atento, que falavam dos mitos, da criação do mundo, da língua, da comida. E ali, aquele barranco do rio, o lugar preferido dos dois...
Imerso em seus pensamentos Baiá não percebeu a chegada do vulto que o empurrou para dentro d’água.