Sob os holofotes
Em época de eleição, os Ãndios Baiá e Avati sob os holofotes, encontros e desencontros, na cidade grande.

Baiá, diferente de Avati, não se amedrontou com a luz branca que ofuscou seus olhos. Ele também desconhecia o que podia ser aqueles homens carregando objetos estranhos. Nos tempos em que viveu junto aos brancos, num vilarejo em plena floresta amazônica, nunca tivera contato nem com câmera de vídeo, nem com o refletor de luz. Mas, como eles vinham sorrindo, Baiá ficou tranqüilo. Como sempre, Baiá confiava no primeiro que lhe parecesse simpático. Nenhum dos dois viu a jovem, com um microfone na mão atrás do cinegrafista. Avati levou outro susto quando ela surgiu em sua frente, num salto, e fez-lhe a pergunta de praxe dos repórteres de TV:
− Pode me dar uma entrevista?
Avati, atônito e assustado, pronunciou algumas palavras ininteligíveis enquanto virava o rosto para Baiá que entendeu a angústia do amigo. A repórter compreendeu que os dois eram estrangeiros. Não poderia saber de onde, muito menos que eram índios. Ao descobrir-lhes a origem, a curiosidade da jornalista aumentou e repetiu o jargão, agora no plural:
− Podem me dar uma entrevista?
Os dois se entreolharam sem entender. Baiá perguntou o que seria uma entrevista e ela respondeu:
– É responder algumas perguntas. E a primeira que quero fazer é como vocês vêem os políticos candidatos nesta eleição?
Baiá e Avati voltaram a se entreolhar, sem entender. Baiá perguntou:
− O que é político? Candidato?
A repórter franziu a testa, estranhando tanta ignorância. Como pode alguém não saber o que é político? Esses dois só poderiam estar se divertindo com sua cara. De qualquer maneira entrevistar índios poderia dar um bom resultado, até aumentar a audiência. Afinal, é um povo exótico, avis rara naquela região. Respirou fundo e respondeu:
− Político é aquele que vai representar o povo, entende? – não, os dois não tinham entendido nada, então ela continuou – É simples. Você escolhe alguém para falar em seu nome.
Baiá deu um sorriso. Achou que estava entendendo e disse:
− É um cacique. Chefe dos brancos.
− Vamos dizer que sim, mais ou menos isso.
− Mas cacique não pode falar. Cacique fica quieto. Se não for assim, não é cacique. Cacique não pode ficar no alto da árvore e mandar. Cacique tem que ficar embaixo, junto da gente e obedecer.
A noite se avizinhava e os comícios eleitorais davam por encerradas suas atividades. A multidão dispersava-se. Atraído pela luz da equipe de TV, muitos pararam para acompanhar a entrevista, outros se postavam frente à câmera, atrás do entrevistado dando tchauzinho ou fazendo gestos os mais variados, talvez em busca dos famosos quinze minutos de fama. Aqueles que estavam atentos reagiram positivamente às palavras de Baiá. Alguns chegaram a bater palma, outros comentavam com o desconhecido ao lado o quanto fazia sentido o que aquele fulano falava. Dentre eles estava Jotabê cuja curiosidade pelo que acabara de ouvir fez com que abrisse espaço entre as pessoas para poder ver e ouvir melhor.
A repórter, ainda que jovem e com pouca experiência no jornalismo, não era insensível a ponto de não perceber o interesse das pessoas em volta. Resolveu, assim, transformar o que deveria durar pouco, um minuto no máximo, em algo maior, dois, três minutos gravados. Certamente o chefe de edição lhe daria uma bronca, mas valia a pena correr o risco. O resto se daria na ilha de edição, onde os melhores momentos seriam escolhidos, trabalhados, sonorizados e levados ao ar. Resolveu, então, tocar no ponto mais nevrálgico da campanha política, a questão da corrupção. O país vivia em polvorosa. A corrupção era denunciada em todos os meios de comunicação e tornara-se pauta obrigatória dos candidatos, ainda que não houvesse qualquer diferença entre eles a respeito. Os projetos fluidos de combate à corrupção nas instituições governamentais acabavam por amenizar o crime e, aprovados, muitos seriam inocentados. De qualquer maneira o assunto era quente e valia a pena conhecer a opinião do índio sobre isso. A dúvida era se ele entenderia a questão. Olhou. Respirou fundo e perguntou:
− E o que você acha do combate à corrupção?
− Corrupção?! – Baiá fez uma pausa. Seu rosto era a própria incompreensão. O que era corrupção? A repórter logo entendeu o recado. Teria que explicar-lhe o que era corrupção. Ora, raios, de que planeta vem este índio? Não sabe o que é político, não sabe o que é prefeito, não sabe o que é corrupção. Não sabe nada. Como pode? Bem, se já tinha chegado até aqui, porque não continuar. Afinal, a audiência... A chance de subir na vida... o aumento de salário... Então, logo ela explicou:
− Corrupção é quando um político...
− Um cacique – interrompeu Baiá.
− É. Mais ou menos. É quando o político leva vantagem. Pega algum dinheiro do Estado em troca de favores. Bem – ela hesita, depois conclui – rouba nosso dinheiro.
Baiá estranhou:
– Cacique rouba?
– É. Rouba. Ele faz negociatas com os empresários. O empresário ganha a concorrência e o político, dinheiro.
Baiá deu um sorriso, fazendo cara de quem estava entendendo, senão tudo, pelo menos parte do que ela explicava. E falou:
− Se cacique rouba, a tribo passa fome. Aí cacique morre. Cacique não pode matar a tribo, roubar a tribo. Cacique tem que obedecer a tribo.
− Vocês matam? – perguntou surpresa a repórter. Baiá respondeu:
− Não precisa. Ninguém na tribo rouba. Índio depende de todo mundo para viver na floresta. Um tem que ajudar o outro. Se não for assim, morre. Ninguém rouba na tribo. Não precisa. Se roubar morre ou é expulso. Branco devia fazer o mesmo. Matar cacique que rouba senão cacique mata a tribo.
As pessoas ao redor da equipe ovacionavam. Batiam palmas. Gritavam, é isso aí. Tem que matar mesmo. Lugar de ladrão é na cadeia e assim por diante. Jotabê se entusiasmou. A simplicidade daquela fala parecia ter um enorme poder explosivo. As pessoas estavam tão robotizadas, disciplinadas, comportadas e insatisfeitas que aquelas palavras soavam como algo liberador. Desafogava, pelo menos por algum tempo, a angústia do cotidiano desolado. Um cara desses poderia ser uma excelente arma política nesta campanha, pensou Jotabê. Como ativista e militante político empenhava-se para que seu partido, um dos mais radicais na disputa eleitoral, chegasse ao poder. E aquele fulano tinha bom potencial. Poderia colaborar, e muito, para atingir seus objetivos. Jotabê esperaria a entrevista terminar para aproximar-se de Baiá e Avati. Só tinha uma dúvida: será que aqueles dois índios eram os mesmos cuja prisão ele havia filmado?
O brilho do poente já havia se apagado quando o iluminador desligou a luz refletora e a equipe retirou-se. Na praça, agora iluminada apenas pelas luzes dos postes, a multidão se dispersava. Baiá e Avati só se deram conta do anoitecer quando o iluminador desligou o refletor de luz. Jotabê aproveitou a oportunidade para aproximar-se. Tocou no ombro de Baiá que se virou meio espantado, olhou para o rosto de Jotabê, e exclamou:
− Te conheço!
− Não, a gente não se conhece não. É a primeira vez que a gente se vê.
Baiá dirigiu-se a Avati e, em sua língua nativa, perguntou-lhe se aquele jovem, de estatura mediana, cabelos castanhos e lisos, que andava de um jeito esquisito, não era o mesmo que eles tinham abordado na rua. Avati não se lembrava. Baia insistiu:
− Voce lembra sim. Eu parei ele para perguntar que caminho a gente devia fazer. Ele andava esquisito, sempre parando e olhando para trás, desconfiado. Depois, acabou sendo perseguido pela polícia. Lembra?
Avati não se lembrava, mas Baiá tinha certeza que era a mesma pessoa e, teimoso, insistiu:
− Te conheço sim. Você caminhava esquisito e eu te perguntei caminho da aldeia e você respondeu, mas não parou. Depois, polícia te seguiu.
Jotabê não podia acreditar naquela coincidência. Agora, sim, lembrava-se dos dois quando foi abordado, pouco antes de ser perseguido pelos policiais. Claro, não poderia identificá-los. Estavam muito diferentes. Quando os gravou pareciam dois mendigos, com roupas velhas e esburacadas. Agora estavam vestindo roupas limpas, aparentemente novas. Como poderia reconhecê-los? Quando foi parado na praça, mesmo estando a centímetros de distância, a única coisa que poderia identificá-los eram os cabelos, que continuavam compridos e com as franjas mal cuidadas cobrindo-lhes as testas. De qualquer maneira, talvez fosse mais sensato continuar fingindo não conhecê-los. Afinal, o potencial político de Baiá poderia ajudá-lo, e muito, em sua carreira política.
− Tenho certeza que não os conheço. Juro. É a primeira vez que os vejo, mas isso não tem importância. Quero conversar com vocês. Vamos beber alguma coisa? Conheço um bar bem tranqüilo aqui perto.
Mais uma vez a simpatia de um desconhecido justificava a confiança de Baiá. Perguntou a Avati se concordava em ir até o bar. Avati, mais desconfiado, respondeu receoso:
− Mas a gente não o conhece. E se for inimigo?
Baiá riu. O inimigo não era aquele branco desconhecido, e sim os brancos que desmatavam a floresta. E aquele jovem não parecia ser um desses. Avati resmungou:
− Não consigo entender Baiá. Primeiro diz que não gosta de branco, agora, só porque o branco veio sorrindo, fazendo jeito de amigo, Baiá acredita nele. Sei não, Baiá...
Baiá não deu ouvidos à reclamação e aceitou o convite de Jotabê. Nenhum dos três poderia saber o quanto aquele terceiro encontro mudaria seus destinos. Se para o bem ou para o mal, só os acontecimentos futuros poderiam dizê-lo.