Pequenas Mentiras

Saudações, Maluco Beleza!

Aproveitando as comemorações de aniversário de Raul Seixas, dia 28 próximo, “Pequenas Mentiras” traz uma crônica dedicada ao "metamorfose ambulante"

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Saudações, Maluco Beleza!

Tomo a liberdade de ocupar seu tempo e paciência para comemorar um aniversário. Se o aniversariante vivo estivesse, completaria 71 anos. Não, ele não é meu amigo, nem o conheci pessoalmente. Mas é um dos ícones mais emblemáticos da cultura brasileira. Renovou o rock e virou um guru. Gente como Raul Seixas, o Maluco Beleza, merece muitas homenagens.

Até hoje, passado mais de trinta anos, fico impressionado com a quantidade de gente que o admira, mais do que admira, adora. Quando foi lançado o documentário O início, o fim e o meio, sobre sua vida e obra, filas serpenteavam as salas de cinema. Gente idosa, gente que acompanhou sua carreira desde o início, nos anos 70, e o apresentou às crianças e jovens, ansiosos.

Confesso que demorei um pouco para apreciar e entender o ídolo Raul. Quando ele lançou seu primeiro LP, Krig-há Bandolo, não dei muita bola, apesar do enorme sucesso. Estávamos em 1973 e nessa época eu era preconceituoso. Questionava todo e qualquer produto pop. Com Raul não foi diferente, para mim ele era produto midiático e ponto final. Desapareceria rapidinho. E o jeito que encontraram para lançar o disco reforçou minha assertiva: jogada de marketing! A história começou com o amigo-irmão sugerindo: Raulzito canta Ouro De Tolo e é flagrado pelas câmaras de TV nas ruas de Copacabana. Deu certo. Saíram padrão global em horário nobre. Esse amigo-irmão tinha faro pra coisa.

Continuei teimoso, sem mudar de opinião, até o lançamento do segundo álbum, Gita. Foi quando percebi que o cara era bom mesmo. Se não o fosse, em hipótese alguma repetiria o sucesso do primeiro disco. É sempre bom lembrar, os profissionais do marketing advertem: a propaganda ajuda a vender. O consumidor gostando do produto volta a comprar. Em caso contrário... Não há propaganda que salve!

Não deixa de ser irônico. Raul Seixas, rebelde porta-voz de um novo mundo, crítico da sociedade, confirma a tese mercadológica: o sucesso de um produto se deve não ao marketing, mas à sua propriedade de suprir, com qualidade, a necessidade do consumidor.

Raul Seixas era meio obcecado pela imortalidade. Queria porque queria deixar sua marca na história. E o conseguiu. Misturou o baião ao rock e mudou a história da MPB.

A meu ver, ainda que esta seja uma marca importante, é insuficiente para torná-lo imortal, menos ainda garantir-lhe um lugar no Olimpo. Ele se tornou guru, ídolo de multidões, porque soube interpretar como ninguém o vazio existencial de sua geração. E a coisa não era brincadeira não. Além do mau cheiro das botas militares, introduzíamo-nos na futilidade do consumo. Aprender a consumir e se tornar cidadão estava em seus primórdios.

Nesse quadro, ouvir Ouro de Tolo era um toque. Uma dica para nos percebermos.

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado.

Se estávamos precisando de imagens para espelhar nossas angústias, dúvidas, incertezas, Raul Seixas tratou de fornecê-las. Construiu imagens sonoras de nós mesmos.
Nada disso percebia na época. Meu pai, cada vez que ouvia Raulzito no rádio, reclamava:

− Esse cara não canta, ele fala.

Eu achava engraçado. Ele exagerava na acentuação da oxítona da palavra fala e fazia cara de choro. Naquela época canto-falado era uma heresia.

Vim a conhecer mais profundamente o Maluco Beleza ao participar de um programa de rádio criado por um amigo, o Gabriel Giannattasio. Era um projeto da universidade que propunha pesquisar a obra de Raul Seixas como peças filosóficas, literárias. Se o papel da filosofia é manter a dúvida constante e as composições de Raul sempre renovam nossas dúvidas, achei perfeito. Então, topei a parada.

Com o nome sugestivo de Estação Raul, o programa estreou em outubro de 2010, veiculado pela Rádio UEL FM de Londrina, no Paraná.

Participar desse programa foi um prazer indescritível. Cada temporada, e foram seis, tinha uma temática. A equipe, total liberdade para escolher a música e escrever a respeito. Fizemos de tudo. Como adoro escrever histórias, aproveitei a chance e escrevi crônicas, causos, e até uma rádio novela, Conversas na Estação, exibida na última temporada, em 2015.

Mergulhei de cabeça na vida e obra deste personagem de mil faces. No final dos anos 70 eu havia começado uma pesquisa sobre a contracultura e ele, claro, era um dos principais porta-vozes deste universo, a Sociedade Alternativa. Raulzito projetou  Cidade das Estrelas e o objetivo era criar comunidades rurais orientadas pela Lei de Thelema, faça o que tu queres, pois é tudo da lei. O projeto não saiu do papel, mas a ideia espalhou-se aos quatro ventos.

Depois, quando a contracultura começou a esfacelar-se, Raul Seixas manteve-se fiel a seus princípios e nos ensinou que a Sociedade Alternativa é constituída de Carpinteiros do Universo e está dentro da gente.

Carpinteiro do Universo inteiro eu sou
Não sei por que nasci pra querer ajudar
A querer consertar o que não pode ser
Não sei, pois nasci para isso e aquilo
E o enguiço de tanto querer
Carpinteiro do Universo eu sou
Estou sempre pensando em aparar o cabelo de alguém
E sempre tentando mudar a direção do trem
A noite a luz do meu quarto eu não quero apagar
Pra que você não tropece na escada quando chegar 
Carpinteiro do Universo eu sou
O meu egoísmo é tão egoísta
Que o auge do meu egoísmo é querer ajudar
Carpinteiro do Universo eu sou
Carpinteiro do Universo eu sou assim
No final carpinteiro de mim

À medida que me aprofundava, percebia que Raul Seixas se construíra mito. Mito aqui entendido enquanto função psíquica e não em seu sentido quase pejorativo de mentira ou história fantasiosa. Os símbolos míticos não têm língua, mas falam pacas. É um diálogo surdo. Indícios. Dicas. Músicas de Raul Seixas. Placas indicativas do caminho para o templo sagrado no oco do mundo, reino do Mestre, o verdadeiro e único, você mesmo!

Quando sentei para escrever esta história a ideia original era contar o sufoco sofrido pelo Raulzito no dia em que sua prima o encontrou com uma seringa cheia de xixi. Mas a palavra, astuta, nos faz escrever por linhas tortas e esta história se perdeu. Na rede destes caminhos inimagináveis das palavras, enveredei pelo da sedução, o de como fui atraído pelo Maluco Beleza.

No dia do seu aniversário, lá no Olimpo, anjos e endiabrados beberão até cair. Drogas e rock rolarão solto, sexo já não sei.

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