Pequenas Mentiras

Perdas e ganhos

O jogo de poder é movido por escolhas e decisões, e cada uma delas tem seu preço e consequências.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Perdas e ganhos

Esperar Bonifácio voltar de viagem foi o melhor que poderia ter acontecido a Jotabê. Sem que ele imaginasse, aumentaram os convites tanto para entrevistas quanto para Baiá participar de manifestações públicas. Numa delas chegou a ser carregado pela população, um ídolo, mensageiro dos novos tempos. Jotabê só tinha a ganhar. Ganhava com as entrevistas que, por sua vez, aumentavam o valor das imagens que venderia a Bonifácio. O que mais poderia querer? Bem, convencer o pessoal do partido a ter paciência com Baiá seria mais complicado. Principalmente agora que o índio tinha radicalizado seu discurso, distanciando-se cada vez mais do partido. Tinha aí duas tarefas difíceis, convencer Teobaldo, que era o presidente, e ensinar Baiá a falar a língua dos políticos. Coisas nada fáceis.
Baiá, por sua vez, não acreditava no que estava acontecendo. Desde que Danilo lhe mostrara as imagens dos políticos tramando contra ele, querendo acabar com sua mal iniciada carreira de político, o número de entrevistas tinha aumentado, bem como sua participação nas passeatas e comícios. O dinheiro também. Coisa estranha, Jotabê começou a lhe pagar mais pelas entrevistas. O que estaria acontecendo? Avati poderia ajudá-lo a entender, mas, desde a última discussão, mal se falavam.
− Ops! Desculpe. Não sabia que estava dormindo. Acendi a luz sem querer – disse Danilo, recuando a mão na direção do interruptor, para apagar a luz, mas seu gesto foi interrompido pelo menear da cabeça de Baiá:
− Tudo bem, Danilo. Estava só descansando – e levantou-se do sofá.
– Que cara é essa Baiá? Preocupado ou cansado?
Baiá, que se espreguiçava, deu um sorriso sem graça:
− Os dois.
− Então, tomemos um café.
Na cozinha, Danilo preparou o café e serviu-o. Sentou-se à mesa, sentiu o aroma da bebida e deu um gole. Colocou a xícara sobre a mesa e olhou para Baiá, que estava cabisbaixo.
− O que te aflige, Baiá?
− Baiá não entende. Danilo mostrou o inimigo invisível preparando armadilha para Baiá. Baiá agora está cansado de tanto dar entrevista, fazer comício, ir às passeatas. Jotabê dá até mais dinheiro que antes. Danilo não disse que a vida de político de Baiá ia acabar? Então porque agora eles me carregam? Chamam Baiá toda hora?
Danilo, que acabava de sorver mais um gole de café, riu. Colocou a xícara sobre a mesa e, limpando os lábios com os dedos, disse:
− A estratégia deles não está dando certo, Baiá. Só por isso. O prefeito está puto. Ele está oferecendo uma fortuna para as emissoras de TV, provedoras de internet, o caralho, mas ninguém topa a proposta. Ninguém quer deixar de falar de Baiá.
Os olhos de Baiá brilharam e sua voz soou alegre e afirmativa:
− Então Baiá vai ser político.
− Vamos com calma, Baiá. É bom não ficar muito alegre não. Se o Jotabê for expulso do partido a carreira dele e a sua acabam.
− Acaba não, Danilo. Essa semana Baiá participou de comício que era contra o partido de Jotabê. Eles que convidaram.
− Eles que convidaram?! E o Jotabê, sabe?
− Acho que sabe.
Danilo riu:
− Esse cara não dá ponto sem nó. Pensando bem, Baiá, se você não está mais ligado ao partido e está sendo chamado e ovacionado, acho sim que sua carreira de político ainda pode acontecer. Olha só o que presenciei hoje, lá no gabinete do prefeito. Ele estava conversando com o Genésio, assessor dele, comentando as notícias de jornal. Primeiro que a imagem do político está mais suja que chiqueiro. A cada dia as estatísticas aumentam e, nas pesquisas, um dos principais responsáveis por essa explosão é você, Baiá. Pra piorar, as manifestações e passeatas aumentaram, a repressão aumentou. E agora aparecem ameaças contra os políticos corruptos. Lia e comentava enraivecido. Quando percebeu que eu estava na sala, deu uma relaxada. Queria saber se tinha alguma notícia boa, ou seja, se alguma emissora havia concordado. Mas, claro que não. Ninguém queria saber da proposta do prefeito. Deu um murro na mesa e pediu o número do telefone de Bonifácio, diretor e produtor da TV Central, e, também, presidente da associação das empresas de comunicação. Ele tinha certeza que falando diretamente com o Bonifácio conseguiria convencê-lo, nem que para isso tivesse que aumentar a verba publicitária, além, claro, da taxa adicional, sabe, aquela, por fora. Mas – Danilo riu – o Bonifácio só volta amanhã.
− E se o Bonifácio concordar com o prefeito? – perguntou Baiá, num sobressalto.
− Acho difícil. As empresas do Bonifácio estão na maior campanha contra o prefeito. E eles não deixarão de explorar sua imagem de ídolo contestatório, ainda mais contra o prefeito.
− Avati precisava estar aqui. Aí ele ia entender.
− Entender o quê?
− Avati acha que Baiá não tem chance de ser político. Está bravo. Nem conversa.

No dia seguinte, Adolfo Guimarães entrou em passos acelerados pelo corredor. Parou e apoiou sua maleta na mesa da secretária que, distraída, levou um susto ao ouvir a voz do prefeito:
− Bom dia! Cancele todas as reuniões da manhã e não me interrompa. Outra coisa, telefone pro Genésio e peça para ele vir pra cá, urgente. O mais rápido possível.
− Mas, Excelência, o senhor Genésio viaja hoje para as ilhas Caimã – caramunhou a secretária.
− Que cancele a viagem! – tirou a maleta da mesa e caminhou até a porta do gabinete. Antes de abri-la, gritou para a secretária:
− Quando o Danilo chegar, mande ele falar comigo – abriu e entrou acelerado. Colocou a maleta sobre a escrivaninha, tirou o paletó e sentou-se na cadeira rotatória. Puxou a maleta, mas desistiu no meio do caminho. Voltou a empurrá-la. Interfonou e pediu à secretária que ligasse para Bonifácio, da TV. Tamborilou, percorrendo os olhos pela sala até que o telefone tocou. Era a secretária de Bonifácio:
− O senhor Bonifácio hoje chegará mais tarde. Daqui umas duas horas, Excelência.
− Pode me passar o celular dele?
− Desculpe Excelência. Não posso. Normas da empresa.
− Como não pode?
− Se sua Excelência quiser, posso ligar para o senhor assim que ele chegar.
− Menos mal. Tem o telefone?... Não, esse não. Vou te passar pra Lucinda e ela te fala.
Adolfo bateu com tanta força que o aparelho balançou na base. Meio surpreso consigo mesmo, voltou a tirar o fone do ganho e colocou-o no ouvido. Deu linha. Apertou o gancho na base do aparelho. Tudo certo. O aparelho não tinha sido danificado. Colocou o fone novamente na base, respirou fundo e reclinou-se na cadeira giratória. Era um colecionar de antiguidades e, como a maioria deles, obcecado. Sua especialidade eram os telefones e aquele modelo, em especial, trazia-lhe recordações da infância, do tempo em que sua família tinha mudado de bairro, de um bairro mixuruca, lá da zona leste, para um mais rico, da zona oeste. Poucos dias depois que mudaram, tinha uns dez, doze anos, apareceram os funcionários da companhia telefônica para instalar o aparelho. Eram os anos 50 e aquele modelo era o único que se instalava. E era uma coisa chique. Poucos tinham. Era feito de um derivado de petróleo, mais duro que o plástico, mas não era plástico e os cabos feitos de pano e da mesma cor do telefone, coisa que Adolfo fez questão de manter quando o adaptou para seu uso pessoal e privativo, no gabinete. À noite, quando o pai chegou, encontrou a família em festa. Curioso, foi saltitante até a sala conhecer o motivo de tanta alegria. Chegou perto do aparelho, olhou-o cuidadosamente e exclamou: − parece um chifre. Ficou conhecido como chifrudinho.
Depois de colocar o telefone no gancho, abriu a pasta e tirou todos os papéis e documentos de seu interior. Colocou a pasta vazia no chão, encostada à lateral de sua escrivaninha e começou a separar os documentos. Separou alguns. Parou. Voltou a examinar os documentos. Juntou todos e colocou-os sobre a pilha de outros papéis e documentos à sua esquerda, na escrivaninha. Olhou o relógio de pulso. Os ponteiros pareciam parados. Olhou para a porta – o Genésio está demorando – resmungou e voltou a olhar o relógio. Interfonou:
− Lucinda, você já falou com o Genésio? Ele está vindo? – olhou para o relógio – Liga pra ele de novo – e desligou o interfone. Levantou-se da cadeira giratória e foi até o pequeno balcão onde estavam as bebidas. Serviu-se de uma xícara de café. Ouviu o ruído da porta. Era Genésio. Com o rosto contraído, a testa franzida, aceitou o convite para o café.
− Pôrra, Genésio! Você demorou!
− Você só pode estar de brincadeira, Adolfo. Estava me preparando para ir para o aeroporto, resolver assunto nosso, e você me fez voltar. Tudo bem perder a passagem, mas a gente corre o risco é de perder algum dinheiro também. E você ainda vem me dizer que demorei?! Porra Adolfo, não fosse nossa amizade te mandaria à merda. Caralho!
− Calma. Não vamos brigar. A situação está cada vez mais grave. E a gente precisa resolver isso. Ou parte disso, se der. Pelo menos. Primeiro problema, o Mário Sérgio. Ele não está dando conta. E o que é pior. Não sei se faz de propósito, para prejudicar minha campanha, coisa que já esta acontecendo, ou por incapacidade mesmo. Descobriu alguma coisa sobre ele? A gente precisa saber se ele está de nosso lado ou não!
Genésio, que acabara de beber seu café acompanhou Adolfo até sua mesa. Sentado na poltrona, Genésio acendeu seu cachimbo.
− Cacete! Assim é demais, Genésio. Deixar esse cheiro horrível na minha sala, logo pela manhã!
− Essa porra me acalma. Pra você é castigo. Tem que aguentar. Tipo punição por cancelar minha viagem e me deixar puto. Não tem nenhuma novidade que a gente não conheça. Só as manifestações aumentaram nos últimos dias. Normal. Logo passa. As estatísticas são desfavoráveis. E daí? O resultado se garante. Custa, mas dá para garantir. Ainda mais sendo prefeito.
Adolfo reclinou-se na cadeira, suspirou fundo e falou calmo e pausadamente:
− As coisas não estão fáceis. Tá difícil fazer acordo. O pessoal tá com medo. Muito dedo-duro no meio. E quem topa quer mais do que merece. E pra piorar tem essa porra desse índio, o Baiá. Sabe o que descobri ontem à noite, por acaso? Nem te conto.
Adolfo interrompeu sua fala quando a porta do gabinete se abriu e entrou Danilo, reverente:
− Bom dia, Excelência! O senhor me chamou, estou à disposição!
Adolfo murmurou para Genésio: − Essas secretárias não servem nem para interfonar – ergueu um pouco o corpo da cadeira, olhou para Danilo e falou em voz alta:
− Entra, entra. Sentaí. Só quero te fazer uma pergunta – esperou Danilo acomodar-se e continuou – É verdade que esse índio, esse socialista selvagem, o Baiá, mora na sua casa?

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