Os dilemas do poder
Em novo texto, César Carvalho traz os bastidores do jogo do poder.

Danilo Bueno trabalhava como secretário no gabinete do prefeito. Estatura mediana, mais barrigudo que gordo, era um sujeito pacato e brincalhão. Suas brincadeiras muitas vezes mal interpretadas, carregadas de ironia, e o fato de não comprometer-se nem com os chefes, nem com os funcionários, o levavam a mudar de setor com freqüência. Ora estava no departamento jurídico, ora no de trânsito, ora na contabilidade. No cargo atual, o que durava mais, estava desde que Adolfo Guimarães assumiu a prefeitura e reconheceu suas habilidades de escritor nomeando-o assessor executivo. Na prática, a nova função traduzia-se em escrever os discursos do prefeito, inclusive os de sua campanha à reeleição. Danilo, escritor hábil, não decepcionava. Sabendo, como nunca, explorar metáforas, ambiguidades e, principalmente, emoções, seus discursos eram sempre ovacionados pelos ouvintes.
Naquele início de noite, o movimento na Prefeitura estava bastante fraco e Danilo preparava-se para encerrar seu dia de trabalho um pouco mais cedo do que o habitual. Esperava apenas que a agenda que ele havia preparado e deixado sobre a escrivaninha do prefeito fosse checada, aprovada e ele dispensado. O prefeito retornara de sua campanha eleitoral havia algum tempo e, ao contrário dos outros dias, viera sozinho. Chegou com cara amarrada, mal o cumprimentou e trancou-se em sua sala. Com certeza estava vivendo algum problema sério, pensou Danilo, e começou a examinar o equipamento de gravação que instalara no gabinete. Acionou um controle em seu computador e a imagem do prefeito, parado em frente à janela, surgiu no monitor. Caramba, desse jeito ele nunca veria se a agenda estava okay. Teria que esperar. Resignou-se com a ideia e pegou um fone de ouvido para checar o volume. Com o prefeito imóvel em frente à janela, não conseguiria ter som nenhum. Uma pena, pois fazer esse tipo de teste durante o expediente era algo arriscado e ele, em hipótese alguma poderia ser descoberto. Mas, pelo visto, não tinha outro jeito.
Absorto em suas atividades não percebeu a aproximação de Genésio, que diferente de outros dias, andava rápido, com o rosto contraído, visivelmente perturbado. Sem parar, passou por Danilo, balbuciou uma boa noite gutural e só parou para dar uma forte e seca pancada na porta do gabinete, abri-la e entrar. Danilo levou um susto quando viu o vulto de Genésio passar feito foguete. A princípio ficou preocupado: teria Genésio percebido o que ele estava fazendo? Certamente não. Passou tão rápido e carrancudo que nem que tivesse visto a imagem do monitor perceberia qualquer coisa. Primeiro foi o prefeito que voltou carrancudo do comício, e sozinho, o que era bastante significativo, pois ele sempre voltava acompanhado por muita gente. Depois, entra o Genésio feito louco e cara amarrada também. Alguma coisa grave estava acontecendo. Aquele não era o perfil de Genésio, um velho baixinho e gordinho, tipo bonachão, que chegava brincando e declamando poemas para as funcionárias. Nunca entrava na sala do prefeito, de quem era amigo íntimo e principal assessor, sem ser anunciado. Que poderia ter acontecido? Bem, a saída é ouvir a conversa e aproveitar para checar o equipamento sem correr o risco de ser descoberto.
A entrada brusca de Genésio no gabinete levou Adolfo a dar um salto e virar-se assustado. Relaxou ao identificar o amigo, mas estranhou seu jeito de entrar no gabinete, apressado e sem ser anunciado. Não que isto fosse necessário, pois Adolfo era o primeiro a abandonar as formalidades quando se tratava de amigos ou pessoas queridas, mas era Genésio quem fazia questão delas. Justificava-se dizendo que aos olhos do povo os gestos formais se traduzem em respeito. Adolfo apenas escutava.
− Sabe Adolfo, a gente está com um problema sério – disse Genésio, depois de afundar o corpo na poltrona, em frente à escrivaninha, com o copo de uísque na mão. Mexeu o copo com cuidado, observando os movimentos circulares do gelo dissolvendo-se no uísque, aproximou-o do nariz, fechou os olhos, respirou fundo e disse: – esse cheiro me relaxa – bebeu um gole, estalou a língua e continuou – falo que a gente está com um problema sério e você nem dá bola?
− Ora, Genésio, problemas já tenho de monte. O que você traz que pode ser pior daqueles que já existem?
− Temos um traidor. Aqui – apontou com o indicador para o piso da sala – aqui dentro da Prefeitura.
− E que novidade é essa? Aqui está cheio de traidores. Não dá para confiar em ninguém. E a gente não pode fazer nada, a maioria é funcionário de carreira, temos que aguentar.
− Estou falando de gente de nossa confiança, Adolfo, não de barnabés.
− Gente da nossa equipe?
− E de quem mais? Claro que é de nossa equipe. Gente indicada por você, que eu fui contra, lembra?
− Que mania, Genésio! Pare de falar truncado. Como posso saber do que você está falando? Você foi contra tanta coisa que eu disse e fiz. Quem foi que indiquei e você foi contra?
− O delegado, o Mário Sérgio.
Adolfo colocou as duas mãos sobre a escrivaninha, ergueu um pouco o corpo enquanto dizia: − Você só pode estar brincando, Genésio. O Mário Sérgio?! Justo o Mário Sérgio?! – pegou o copo, engoliu num único gole toda a bebida, levantou-se e foi servir-se de mais uma dose – Aquele filho da mãe. Ele estava na maior pindaíba. Não tinha dinheiro pra nada. Indiquei-o para delegado porque fiquei com dó. Lembra? – terminou de encher o copo e voltou a sentar-se na escrivaninha, em frente a Genésio – A gente teve até que ajudar no exame que ele fez, senão teria sido reprovado. Agora ele está me traindo? Você tem certeza? O que ele fez?
− Ainda não tenho provas, mas tudo indica que ele está apoiando a oposição. Tenho quase certeza.
− Você tem quase certeza?
− É. Estou convicto. Sabe por que ele reprimiu as manifestações? Para atender os interesses da oposição e prejudicar sua campanha. E conseguiu, seu índice de aprovação caiu mais de dez pontos percentuais.
− Mas conversei com ele a respeito. Disse que não teve como controlar. Os policiais foram agredidos primeiro. Apenas reagiram. E como você descobriu essa traição, se é que ela existe. Eu duvido.
− Um dos nossos que está infiltrado no partido deles participou da reunião e me contou.
− Ele gravou? Quero ouvir.
− Não, não gravou. Mas disse que da próxima vez não esquecerá o gravador.
− Faz me rir, Genésio. Que falta de profissionalismo. O cara é pago para coletar informações e não se lembra de gravar uma reunião dessas? Assim é demais. Por que não usou o celular?
− O Jairo não tem celular, Adolfo. Nem telefone, nem nada. Diz que não quer ser vigiado vinte e quatro horas por dia.
− Nisso ele tem razão, mas se quer trabalhar de agente duplo tem que usar pelo menos um gravador, porra! E o que a gente vai fazer?
− Por enquanto nada. Só tomar cuidado até conseguirmos provar que Mário está traindo a gente.
− Não tenho mais tempo Genésio. As eleições estão chegando e preciso recuperar a opinião pública, você sabe. Depois das notícias das últimas manifestações está difícil até fazer comício. Hoje mesmo, se não fossem os seguranças, teria sido vaiado durante meu discurso. E o que eles gritavam? Fascista. Ditador. Fora Adolfo. Não tolero isso Genésio. E não posso perder as eleições, não podemos. A gente já conquistou um monte de coisas. Nas escolas os professores estão seguindo a cartilha direitinho. Garanto para você, daqui alguns anos os jovens serão mais felizes, pois saberão o que é obediência e nós, políticos, teremos campo aberto para realizar nosso objetivo, nosso ideal. Outra coisa, a prática da tolerância zero está funcionando. Nossa cidade não tem mais mendigos. Outras cidades estão seguindo nosso exemplo e logo, logo, isso chega ao Congresso. Aí você vai ver, a miséria acabará nesse país. Mas a gente não pode perder as eleições, Genésio. O que conquistamos até agora não se consolidou. Precisamos continuar no poder. Não podemos admitir nenhum tipo de traição!
Genésio, que escutava atentamente o amigo, mexeu o copo com o restante de uísque e gelo, aproximou o copo do nariz, inspirou o cheiro da bebida, abriu os olhos e disse: – esse cheiro me relaxa – bebeu, colocou o copo sobre a escrivaninha, olhou fixo para Genésio e disse: − temos um problema maior ainda.
Adolfo deu um sobressalto:
− Como um problema maior? Não chega estar caindo nas pesquisas, ter um traidor entre a gente e correr o risco de perder as eleições? Que problema pode ser maior que esses?
Genésio levantou-se, enfiou a mão no bolso lateral do paletó, retirou uma fita de vídeo, colocou-a sobre a escrivaninha e disse:
− Quero que você assista a esta fita.
Adolfo não hesitou. Levantou-se, pegou a fita e foi direta ao aparelho de TV no fundo da sala. Assistiu às imagens gravadas da prisão de dois indivíduos, aparentemente mendigos. Desligou o aparelho, tirou a fita e colocou-a sobre a escrivaninha, perto de Genésio, sentou-se em sua poltrona e disse surpreso:
− E daí? Essa fita não tem nada, só a prisão de dois caras infringindo a lei.
− O problema é que eles são índios, não mendigos, Adolfo.
− Vixe! Quem mais sabe dessa fita? Se isso cair em mãos erradas aí sim estou acabado. Como conseguiu essa fita? Quem mais a tem? Como você a conseguiu?
− Calma, Adolfo, uma coisa de cada vez. Ninguém sabe dessa fita, só eu e o fulano que gravou. Comprei dele com a garantia de...
− Garantia? Ele deve ter feito cópia, com certeza.
− Ele não se atreveria. Paguei bastante bem para ele ficar de boca calada. E se não ficar... Bem, ele sabe o que lhe acontecerá.
− Como o Mário pode admitir uma coisa dessas, meu Deus! Se essa fita cair em mãos erradas... Genésio, a gente tem que chamar o Mário Sérgio aqui. Ele tem que se explicar.
Danilo, que acompanhou toda a conversa pelo monitor, percebendo que os dois estavam prestes a se despedir, desligou o computador e simulou organizar os papéis até que Genésio saísse. Entrou na sala do prefeito e perguntou-lhe se a agenda estava correta. O prefeito examinou-a e pediu para introduzir alguns compromissos, depois pegou sua maleta e foi embora. Danilo, aproveitando estar só, retirou as fitas das três câmeras, checou se estas estavam bem fixadas e ocultas e saiu. Durante o trajeto até o bar, onde costumava parar antes de ir para casa, não deixou na pensar na fita de vídeo que Genésio mostrara para o prefeito. Como alguém pode confundir índio com mendigo? O prefeito tinha razão, esse era o tipo de informação que acabaria com a carreira de qualquer político.