Pequenas Mentiras

Os dilemas do poder

Em novo texto, César Carvalho traz os bastidores do jogo do poder.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Os dilemas do poder

Danilo Bueno trabalhava como secretário no gabinete do prefeito. Estatura mediana, mais barrigudo que gordo, era um sujeito pacato e brincalhão. Suas brincadeiras muitas vezes mal interpretadas, carregadas de ironia, e o fato de não comprometer-se nem com os chefes, nem com os funcionários, o levavam a mudar de setor com freqüência. Ora estava no departamento jurídico, ora no de trânsito, ora na contabilidade. No cargo atual, o que durava mais, estava desde que Adolfo Guimarães assumiu a prefeitura e reconheceu suas habilidades de escritor nomeando-o assessor executivo.  Na prática, a nova função traduzia-se em escrever os discursos do prefeito, inclusive os de sua campanha à reeleição. Danilo, escritor hábil, não decepcionava. Sabendo, como nunca, explorar metáforas, ambiguidades e, principalmente, emoções, seus discursos eram sempre ovacionados pelos ouvintes.
Naquele início de noite, o movimento na Prefeitura estava bastante fraco e Danilo preparava-se para encerrar seu dia de trabalho um pouco mais cedo do que o habitual. Esperava apenas que a agenda que ele havia preparado e deixado sobre a escrivaninha do prefeito fosse checada, aprovada e ele dispensado. O prefeito retornara de sua campanha eleitoral havia algum tempo e, ao contrário dos outros dias, viera sozinho. Chegou com cara amarrada, mal o cumprimentou e trancou-se em sua sala. Com certeza estava vivendo algum problema sério, pensou Danilo, e começou a examinar o equipamento de gravação que instalara no gabinete. Acionou um controle em seu computador e a imagem do prefeito, parado em frente à janela, surgiu no monitor. Caramba, desse jeito ele nunca veria se a agenda estava okay. Teria que esperar. Resignou-se com a ideia e pegou um fone de ouvido para checar o volume. Com o prefeito imóvel em frente à janela, não conseguiria ter som nenhum. Uma pena, pois fazer esse tipo de teste durante o expediente era algo arriscado e ele, em hipótese alguma poderia ser descoberto. Mas, pelo visto, não tinha outro jeito.
Absorto em suas atividades não percebeu a aproximação de Genésio, que diferente de outros dias, andava rápido, com o rosto contraído, visivelmente perturbado. Sem parar, passou por Danilo, balbuciou uma boa noite gutural e só parou para dar uma forte e seca pancada na porta do gabinete, abri-la e entrar. Danilo levou um susto quando viu o vulto de Genésio passar feito foguete. A princípio ficou preocupado: teria Genésio percebido o que ele estava fazendo? Certamente não. Passou tão rápido e carrancudo que nem que tivesse visto a imagem do monitor perceberia qualquer coisa. Primeiro foi o prefeito que voltou carrancudo do comício, e sozinho, o que era bastante significativo, pois ele sempre voltava acompanhado por muita gente. Depois, entra o Genésio feito louco e cara amarrada também. Alguma coisa grave estava acontecendo. Aquele não era o perfil de Genésio, um velho baixinho e gordinho, tipo bonachão, que chegava brincando e declamando poemas para as funcionárias. Nunca entrava na sala do prefeito, de quem era amigo íntimo e principal assessor, sem ser anunciado. Que poderia ter acontecido? Bem, a saída é ouvir a conversa e aproveitar para checar o equipamento sem correr o risco de ser descoberto.
A entrada brusca de Genésio no gabinete levou Adolfo a dar um salto e virar-se assustado. Relaxou ao identificar o amigo, mas estranhou seu jeito de entrar no gabinete, apressado e sem ser anunciado. Não que isto fosse necessário, pois Adolfo era o primeiro a abandonar as formalidades quando se tratava de amigos ou pessoas queridas, mas era Genésio quem fazia questão delas. Justificava-se dizendo que aos olhos do povo os gestos formais se traduzem em respeito. Adolfo apenas escutava.
− Sabe Adolfo, a gente está com um problema sério – disse Genésio, depois de afundar o corpo na poltrona, em frente à escrivaninha, com o copo de uísque na mão. Mexeu o copo com cuidado, observando os movimentos circulares do gelo dissolvendo-se no uísque, aproximou-o do nariz, fechou os olhos, respirou fundo e disse:  – esse cheiro me relaxa –  bebeu um gole, estalou a língua e continuou – falo que a gente está com um problema sério e você nem dá bola?
− Ora, Genésio, problemas já tenho de monte. O que você traz que pode ser pior daqueles que já existem?
− Temos um traidor. Aqui – apontou com o indicador para o piso da sala – aqui dentro da Prefeitura.
− E que novidade é essa? Aqui está cheio de traidores. Não dá para confiar em ninguém. E a gente não pode fazer nada, a maioria é funcionário de carreira, temos que aguentar.
− Estou falando de gente de nossa confiança, Adolfo, não de barnabés.
− Gente da nossa equipe?
− E de quem mais? Claro que é de nossa equipe. Gente indicada por você, que eu fui contra, lembra?
− Que mania, Genésio! Pare de falar truncado. Como posso saber do que você está falando? Você foi contra tanta coisa que eu disse e fiz. Quem foi que indiquei e você foi contra?
− O delegado, o Mário Sérgio.
Adolfo colocou as duas mãos sobre a escrivaninha, ergueu um pouco o corpo enquanto dizia: − Você só pode estar brincando, Genésio. O Mário Sérgio?! Justo o Mário Sérgio?! – pegou o copo, engoliu num único gole toda a bebida, levantou-se e foi servir-se de mais uma dose – Aquele filho da mãe. Ele estava na maior pindaíba. Não tinha dinheiro pra nada. Indiquei-o para delegado porque fiquei com dó. Lembra? – terminou de encher o copo e voltou a sentar-se na escrivaninha, em frente a Genésio – A gente teve até que ajudar no exame que ele fez, senão teria sido reprovado. Agora ele está me traindo? Você tem certeza? O que ele fez?
− Ainda não tenho provas, mas tudo indica que ele está apoiando a oposição. Tenho quase certeza.
− Você tem quase certeza?
− É. Estou convicto. Sabe por que ele reprimiu as manifestações? Para atender os interesses da oposição e prejudicar sua campanha. E conseguiu, seu índice de aprovação caiu mais de dez pontos percentuais.
− Mas conversei com ele a respeito. Disse que não teve como controlar. Os policiais foram agredidos primeiro. Apenas reagiram. E como você descobriu essa traição, se é que ela existe. Eu duvido.
−  Um dos nossos que está infiltrado no partido deles participou da reunião e me contou.
− Ele gravou? Quero ouvir.
− Não, não gravou. Mas disse que da próxima vez não esquecerá o gravador.
− Faz me rir, Genésio. Que falta de profissionalismo. O cara é pago para coletar informações e não se lembra de gravar uma reunião dessas? Assim é demais. Por que não usou o celular?
− O Jairo não tem celular, Adolfo. Nem telefone, nem nada. Diz que não quer ser vigiado vinte e quatro horas por dia.
− Nisso ele tem razão, mas se quer trabalhar de agente duplo tem que usar pelo menos um gravador, porra! E o que a gente vai fazer?
− Por enquanto nada. Só tomar cuidado até conseguirmos provar que Mário está traindo a gente.
− Não tenho mais tempo Genésio. As eleições estão chegando e preciso recuperar a opinião pública, você sabe. Depois das notícias das últimas manifestações está difícil até fazer comício. Hoje mesmo, se não fossem os seguranças, teria sido vaiado durante meu discurso. E o que eles gritavam? Fascista. Ditador. Fora Adolfo. Não tolero isso Genésio. E não posso perder as eleições, não podemos. A gente já conquistou um monte de coisas. Nas escolas os professores estão seguindo a cartilha direitinho. Garanto para você, daqui alguns anos os jovens serão mais felizes, pois saberão o que é obediência e nós, políticos, teremos campo aberto para realizar nosso objetivo, nosso ideal. Outra coisa, a prática da tolerância zero está funcionando. Nossa cidade não tem mais mendigos. Outras cidades estão seguindo nosso exemplo e logo, logo, isso chega ao Congresso. Aí você vai ver, a miséria acabará nesse país. Mas a gente não pode perder as eleições, Genésio. O que conquistamos até agora não se consolidou. Precisamos continuar no poder. Não podemos admitir nenhum tipo de traição!
Genésio, que escutava atentamente o amigo, mexeu o copo com o restante de uísque e gelo, aproximou o copo do nariz, inspirou o cheiro da bebida, abriu os olhos e disse: – esse cheiro me relaxa – bebeu, colocou o copo sobre a escrivaninha, olhou fixo para Genésio e disse: − temos um problema maior ainda.
Adolfo deu um sobressalto:
− Como um problema maior? Não chega estar caindo nas pesquisas, ter um traidor entre a gente e correr o risco de perder as eleições? Que problema pode ser maior que esses?
Genésio levantou-se, enfiou a mão no bolso lateral do paletó, retirou uma fita de vídeo, colocou-a sobre a escrivaninha e disse:
− Quero que você assista a esta fita.
Adolfo não hesitou. Levantou-se, pegou a fita e foi direta ao aparelho de TV no fundo da sala. Assistiu às imagens gravadas da prisão de dois indivíduos, aparentemente mendigos. Desligou o aparelho, tirou a fita e colocou-a sobre a escrivaninha, perto de Genésio, sentou-se em sua poltrona e disse surpreso:
− E daí? Essa fita não tem nada, só a prisão de dois caras infringindo a lei.
− O problema é que eles são índios, não mendigos, Adolfo.
− Vixe! Quem mais sabe dessa fita? Se isso cair em mãos erradas aí sim estou acabado. Como conseguiu essa fita? Quem mais a tem? Como você a conseguiu?
− Calma, Adolfo, uma coisa de cada vez. Ninguém sabe dessa fita, só eu e o fulano que gravou. Comprei dele com a garantia de...
− Garantia? Ele deve ter feito cópia, com certeza.
− Ele não se atreveria. Paguei bastante bem para ele ficar de boca calada. E se não ficar... Bem, ele sabe o que lhe acontecerá. 
− Como o Mário pode admitir uma coisa dessas, meu Deus! Se essa fita cair em mãos erradas... Genésio, a gente tem que chamar o Mário Sérgio aqui. Ele tem que se explicar.
Danilo, que acompanhou toda a conversa pelo monitor, percebendo que os dois estavam prestes a se despedir, desligou o computador e simulou organizar os papéis até que Genésio saísse. Entrou na sala do prefeito e perguntou-lhe se a agenda estava correta. O prefeito examinou-a e pediu para introduzir alguns compromissos, depois pegou sua maleta e foi embora. Danilo, aproveitando estar só, retirou as fitas das três câmeras, checou se estas estavam bem fixadas e ocultas e saiu. Durante o trajeto até o bar, onde costumava parar antes de ir para casa, não deixou na pensar na fita de vídeo que Genésio mostrara para o prefeito. Como alguém pode confundir índio com mendigo? O prefeito tinha razão, esse era o tipo de informação que acabaria com a carreira de qualquer político.

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