Pequenas Mentiras

No Centro do Poder

Baiá e Avati chegam ao Centro do Poder, na luta pela preservação da floresta. Confira o novo texto de Cesar Carvalho.

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
No Centro do Poder

Baiá examinou a cabeça de Avati e viu que a pedrada recebida lhe deixaria apenas um galo, nada mais. Atrás deles, a turma do “deixa disso” rodeava o senhor que atirara a pedra. Ele, com seus quarenta e poucos anos, cabelos grisalhos, com uma camiseta estampando as palavras de ordem: prisão para os corruptos justificava sua agressão aos gritos. Ripes como aqueles, cabeludos, sujos e malvados, verdadeiros pecadores e corruptos, tinham que ser punidos dizia. Uns, mais calmos, tentavam mostrar o absurdo de sua atitude agressiva, enquanto outros, mais irritadiços, fechavam os punhos, ameaçando esmurrá-lo, mas ficavam na ameaça.
Algumas pessoas aproximaram-se de Baiá e Avati, preocupadas em saber se este tinha se ferido. A explicação dada pelo jovem de que aquilo havia sido um ato inconsequente de um radical, coisa cada vez mais comum no Planalto, não foi suficiente para Baiá entender a agressão sofrida pelo amigo. Entendeu menos ainda quando uma senhora, também preocupada com Avati, aconselhou:
− Se fosse vocês, eu entraria com um processo. Ah, se entraria. Ganharia uma grana.
− Processo?! Grana?! – murmurou Baiá, indeciso. Ela explicou:
− É simples. Vocês vão até a delegacia... Ah, nem precisa, eles estão chegando – e apontou para a viatura policial que se aproximava – fazem um boletim de ocorrência, contratam um advogado e entram na justiça por danos físicos e morais. Demora, mas a gente sempre ganha, ainda mais com esse monte de testemunhas.
Baiá, sem entender patavina do que a mulher falava, exclamou:
− Boletim de Ocorrência?! Advogado?! – puxou Avati pelo braço e se afastaram enquanto a polícia inteirava-se do que havia acontecido.
Meia hora depois estavam sentados à sombra de um ipê, num banco de jardim, próximo de um grande lago. Flores amarelas, roxas, brancas e rosas se alternavam em tapetes multicoloridos ao redor das árvores num imenso gramado margeando o lago. Algumas crianças brincavam, sem entrar na água, vigiadas zelosamente pelas babás uniformizadas que tinham como aliado poderoso o ventinho de fim de inverno.
Baiá deslizou seus dedos sobre a flor de ipê amarelo que apanhara antes de sentar-se e observou o horizonte limitado pelo perfilar de prédios. Olhou para a flor em sua mão e, fazendo do polegar e indicador uma pinça, tirou cuidadosamente a sépala seca do cálice. Olhou para Avati e disse:
− A gente tem que ser que nem tabebuia...
− Tabebuia?!
− É. Essas árvores – e apontou com o indicador para os ipês – pau que não afunda – fez uma pausa – e a gente não pode afundar Avati. A gente não pode ser flor. Flor morre logo – com o mesmo polegar e indicador que tirou a sépala seca cuidadosamente do cálice, arrancou primeiro as pétalas, depois o carpelo seguido pelas sépalas restantes, sobrando-lhe apenas o pêndulo, jogou-o no chão e disse – Tem que ser pau duro pra conseguir salvar a floresta. Meu avô tem razão.
Avati, que alisava a cabeça, incomodado com a pedrada recebida, riu.
− O que seu avô tem com essa maluquice de ser que nem tabebuia?
Baiá, que desde a noite na prisão mudara seu comportamento de taciturno para falante, contou-lhe animado parte da conversa que tivera com seu avô, antes de iniciarem a viagem:
− Ele ensinou que tem que seguir a natureza. Fiquei lá, olhando o rio pra aprender isso.
Avati, ironizando:
− Olhando o rio?! Sei. 
− É. Só olhando. Sem se mexer. Aí você aprende a seguir a natureza.
− E ser tabebuia!
− Claro Avati. A gente tem que ser tabebuia. É madeira dura, nem afunda. E os deuses estão do nosso lado. A gente chegou e dormiu na cadeia. Lá muitos amigos apareceram para ajudar a proibir desmatamento.
− Mas não foi você que levou uma pedrada – acariciou o galo na cabeça, fez uma pequena pausa e continuou – por que a gente saiu correndo depois que aquela velha falou com você?
− Branco tem língua esquisita. Você leva pedrada e ganha dinheiro!
− Dinheiro?! O certo é uma flechada.
− A vida deles aqui é diferente, Avati. Aqui tem essa coisa esquisita que ela falou... Processo... Advogado... Boletim de Ocorrência... Essa palavra aquela mulher falou na delegacia, lembra? Aquela que fez um monte de perguntas e depois mandou a gente pra jaula?! Até que foi bom. A gente ganhou amigos e você aprendeu algumas palavras de português. Só não pergunte o que é processo, nem advogado. Isso é coisa de branco. E vamos embora que a gente tem que descobrir onde é a maloca do Prefeito.
Ao atingirem a calçada, saindo do parque, olharam para os lados e se entreolharam. Que direção seguir? Sem combinação prévia, ambos olharam para o sol, voltaram-se para o Norte, de onde provinham, e giraram o corpo em direção sul. Começaram a andar olhando um pro outro e rindo da coincidência. Dali a pouco Avati observou:
− Não adianta nada ir nessa direção, Baiá! A gente não sabe onde é o Centro do Poder? Aldeia de homem branco é difícil. Muita trilha. Muita oca.
Baiá sentiu-se paralisar. Como não percebera antes coisa tão óbvia: ter o endereço do cacique branco?! Faltou-lhe atenção? Isso sim é dormir no ponto e a última vez que dormiu no ponto foi quando seu avô o jogou no rio. Foi o maior trabalho sair e, quando saiu, o avô gargalhava de sua própria traquinagem. Erro por erro, truco, tinha agora que encontrar uma solução para o problema: saber onde estavam e que direção tomar. A solução não demorou a aparecer. Viu um jovem, que andava de um jeito estranho, dava uma paradinha, olhava para os lados e seguia, e chamou-o erguendo a mão direita e gaguejando:
− Se... Se... Senhor... Pode dizer onde estamos?
O sujeito diminuiu seus passos e, sem parar, olhou para Baiá e disse:
− Ora, onde mais? No Planalto.

Baiá, ficou atônito.  Que estava no Planalto sabia desde que chegara à cidade com o amigo Avati, o que precisava saber era, também, a direção a tomar. Chamou o jovem que não lhe deu a menor atenção e continuou a caminhar; caminhada que logo se transformou em corrida quando viu, atrás de Baiá e Avati, dois policiais. Se ele tivesse mantido o passo normal, ainda que apressado – não tivesse corrido – os policiais não lhe dariam importância. Mas não, ele teve que correr. Agora está sendo perseguido. De repente ele já estava sendo perseguido, vai saber. O fato é que agora os policiais também correm atrás dele e não se saberá o resultado, pois logo eles sumiriam de vista.
Apesar do intenso fluxo de carros nas ruas, pessoas nas calçadas eram raras. Tiveram que esperar um bocado até encontrar alguém para dar as informações que precisavam. E quando o primeiro apareceu, a coisa não foi nada fácil para os dois.  A pessoa que parou, apesar de sua boa vontade em responder às perguntas era muda e comunicava-se por gestos sempre acompanhados de um sorriso. Depois foi embora, com a mesma cara alegre. Baiá e Avati entreolharam-se, sem entender. Nunca tinham visto um mudo na vida, nem ninguém gesticulando tanto.
Horas depois, Baiá e Avati conseguiram chegar ao Centro do Poder. Para eles, acostumados aos contatos diretos com o cacique da tribo, achavam que falar com o prefeito também seria fácil. Chegar e apresentar o problema − como acabar com o desmatamento na Amazônia − encontrar a solução e pronto. Mas, ao chegarem, foram parados pelos soldados logo na entrada da rampa do Palácio e encaminhados à recepção. Quando Baiá explicou o que queria, a recepcionista deu um sorriso irônico:
− Falar com o prefeito?! Assim, sem mais nem menos?! Você tem encontro agendado com o prefeito?
− Encontro agendado?! Como assim? Questionou Baiá.
− Santa ignorância. Agenda. Reunião marcada. O prefeito só atende quem tem encontro marcado, data e hora, certo? Meu Deus, vocês não são daqui não? São japoneses?
− Não – respondeu Baiá – somos índios e precisamos falar com o prefeito o mais rápido possível. Nossa terra corre perigo.
− Ah, índios é. Se o prefeito fosse atender todo mundo com problemas, ele não faria outra coisa na vida.
Baiá, um pouco impaciente:
− Mas nosso problema é sério. Se continuarem a desmatar nossa terra, minha tribo pode desaparecer.
A moça, tentando se livrar dos dois:
− Olhe, com certeza esse assunto não é com o prefeito, mas se insiste, para falar com ele tem que preencher um formulário falando do seu problema e o que pretende. Esse formulário está na internet... – Baiá interrompeu a moça:
− Internet? O que é isso?!
− Santa ignorância. Sabe o que é internet não? Lá na tribo vocês fazem sinal de fumaça é? Tá vendo aquela máquina ali, ó – apontou para o computador sobre a escrivaninha – é nela que a gente escreve a mensagem e aí ela vai embora, por fibra ótica.
− Fibra ótica?!
− Ah! Deixa prá lá. Olha, é igual mandar mensagem por fumaça, só que aqui a gente usa o computador, tá bom? E se quiser falar com o prefeito, o endereço é este aqui ó – e deu um papel anotado para Baiá – preencha o formulário e envie. Depois, eles dão resposta. Se quiserem conhecer o palácio, a visitação nos fins de semana é livre. Nem precisa avisar. Passem bem.
Baiá e Avati saem. Sentam-se em silêncio no gramado em frente ao palácio. Estão inconformados. Avati questiona:
− Baiá, o cacique deles chama pre – fei – to, é isso né?! Como é que o branco faz para resolver seus problemas?
− Branco é muito maluco. Não pode falar direto com seu cacique, tem que mandar esse tal de formulário pela internet. Diz que é fibra ótica e é igual mandar sinal de fumaça, só que usa computador. Da onde ela tirou que índio na Amazônia usa fumaça para falar? Branco é maluco mesmo, muito maluco.  Já pensou se é ataque de inimigo ou perigo que tem que resolver logo? Só o prefeito resolve, mas resolve como se ele não fala com a tribo? Não sei não. Acho que branco não participa de nada, só obedece.
− E o que a gente vai fazer Baiá?
− Sei não. Acho que dar tempo ao tempo. Um jeito a gente acha.

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