Interlúdio
No texto de hoje, César Carvalho faz a conexão entre Baiá e sua tarefa de impedir o desmatamento, e Xi, protagonista do filme “Os Deuses Devem Estar Loucos”.

Quando comecei a ler A Saga de Baiá, surgiram algumas perguntas, umas sérias, outras nem tanto. Na leitura destes primeiros capítulos tem-se a impressão de estarmos diante de uma espécie de epopéia: Baiá, o protagonista, tem como tarefa impedir o desmatamento. Oriundo de uma tribo que não tem contato nenhum com a civilização, Baiá é o único índio a falar o português que aprendeu, quando criança, num vilarejo amazônico. E, por falar português e ser uma espécie de enviado dos deuses, deve percorrer milhares de quilômetros, acompanhado do amigo Avati, para salvar a tribo.
Essa epopéia o Julinho escreveu em folhas de caderno, colocou num envelope e deixou-o na portaria de meu prédio. Isso me intriga. Somos amigos o suficiente e, desde que nos conhecemos, sempre entregamos nossos manuscritos um ao outro pessoalmente, seguido de ene explicações sobre a intenção deste ou daquele texto. Em síntese, somos os primeiros leitores, e críticos, um do outro. Não teria sido ele o autor do texto? Mesmo que não fosse, e daí? A gente é amigo o suficiente para confessar nossos pecados. Seria plágio? Só rindo. Eu e Julinho cansamos de publicar plágios no mundo acadêmico exatamente para colocar em discussão o conceito de autoria. Nenhuma história é original. Por mais original que seja o autor.
Outra questão, talvez mais irrelevante ainda, mas, para mim, no mínimo, curiosa: por que me cedeu os direitos autorais?
Bem, se conseguir respostas, elas terão que vir do Julinho. Quando, é o problema. Ele costuma desaparecer. Fica dias, meses e, às vezes, até ano sem dar sinal de vida. Aí, um belo dia volta, como se a gente tivesse se visto no dia anterior. Assim é o Julinho.
Ah, sim, e esta me parece uma questão importante. Tenho muita vontade de perguntar ao Julinho se ele, para criar o personagem Baiá, inspirou-se em outro índio, o Xi, de origem africana, que foi protagonista d´Os Deuses Devem Estar Loucos, filme sul-africano de 1980. Nossa! Acho que você não está entendendo nada. Mas, tenha paciência que explico.
Nesse filme, o personagem Xi está andando pelo deserto de Kalahari, na África, quando cai bem à sua frente uma garrafa de Coca-Cola. Para Xi o objeto caiu dos céus por descuido ou por alguma outra razão, mas certeza ele tinha, pertencia aos deuses.
Na verdade, a garrafa fora jogada por um piloto desses teco-tecos logo após ingerir o último gole do refrescante líquido. O aviador não tinha ideia do que aquela garrafa produziria na tribo de Xi.
Xi é um bosquímano que vive no sul da África, completamente isolado. Ele e sua tribo vivem o presente de tal maneira que não enunciam julgamentos. Inexistem as noções de bem e mal, bom e ruim, etc. Devido à escassez de água, vivem de extraí-la de raízes, tubérculos, folhas. Pode-se dizer que essa tribo vive, segundo o filme, num equilíbrio harmônico até chegar a bendita garrafa de Coca-Cola encontrada por Xi.
Primeiro, descobrem múltiplas utilidades para a garrafa que ora é um rolo compressor e serve para amassar os tubérculos, ora é um martelo usado para quebrar castanhas ou bater na cabeça do outro, para resolver brigas. A garrafa ganha importância. É única. Todos a querem. Aí começam as divergências. Quem vai ter a garrafa?
Este incidente vai tirar Xi de sua zona de conforto e fazê-lo iniciar longa jornada. Ele e sua tribo concluíram que o objeto pertencia aos deuses e, portanto, deveria ser devolvido imediatamente para livrarem-se do mal que ele trouxe para a tribo.
Para mim, existem duas coisas em comum entre Xi e Baiá. A primeira é o fato de ambos viverem sem nenhum contato com a civilização ocidental. Tudo bem, Baiá fala a língua dos brancos que aprendeu numa escola durante alguns anos, e quando criança. Tirando esse fato, a civilização ocidental tanto para um quanto para outro é algo estranho, muito estranho. Aí, fico imaginando-me no lugar deles visitando um local completamente diferente daquele que conheço. Que viagem!
Uma garrafa cai do céu. Levada para a tribo provoca briga, antes inexistente. Necessário devolvê-la aos deuses, papel que cabe a Xi. Aqui, este incidente arbitrário – piloto bebe seu último gole e joga a garrafa pela janela – tira Xi de seu dia-a-dia rotineiro e leva-o a caminhar em direção à casa dos deuses para devolvê-la.
Esta metáfora, a garrafa que cai do céu, tem o mesmo papel que o desmatamento produzido pelos homens brancos e que coloca a vida indígena em risco - cá entre nós, preferia que Baiá tivesse uma garrafa e não o desmatamento para iniciar sua jornada. O desmatamento não é uma questão literária. Nesse sentido, a missão de Baiá é mais complexa do que a de Xi. Este, depois de encontrar o local onde pensa ser a residência dos deuses, devolve a garrafa e volta para sua tribo. E a vida, ao normal.
Com Baiá a história é outra. Acompanhado de Avati, um índio guerreiro que não fala qualquer palavra em português, dirige-se à cidade onde está o Centro do Poder. Primeiro, são confundidos com mendigos e presos. Apanham da polícia e lutam com presidiários. Depois, soltos pelo delegado, são confundidos com ripes e Avati leva uma pedrada na cabeça. Além de tudo isso, procuram o Prefeito quando deveriam buscar o Presidente, o responsável pela política de preservação indígena. Nem Baiá, que fala a língua portuguesa, nem Avati estão acostumados com os códigos de nossa civilização e, pelo visto, não tem muito tempo para aprendê-los.
Diferente do filme, onde Xi retorna à normalidade, Baiá e Avati parecem entrar num processo mais profundo e complexo de contato com a civilização branca. Eu, particularmente, temo pelos dois.