DelÃrios de um militante
Cesar Carvalho traz em Pequenas Mentiras desta semana um novo desdobramento em torno da missão do Ãndio Baiá, e sua tarefa de impedir o desmatamento.

Ebatoj, nada como uma bela imersão no ofurô. Tira toda a inhaca do dia. E olha se teve inhaca foi hoje. Que dia! Uma ziquizira atrás da outra, imagine. Culpa minha. Acho que fui muito precipitado. Tá certo. Eu filmei a prisão daqueles dois índios pela polícia, mas eu não precisava ligar pro Jandir logo em seguida. Poderia ter esperado. E se eles me viram filmando? Aí tô perdido mesmo. Já falei com o Jandir inúmeras vezes, mas duvido que ele tenha identificado minha voz ao telefone. Esse cara é um perigo. É amigo do delegado e, ainda por cima, um assassino sangue frio. Tem um monte de gente morta por ele, bandidos, políticos, o escambau. E sabe o que ele faz? Bota a culpa nos traficantes. Ele é do mal, Ebatoj. Ele sente prazer enorme em torturar a vítima antes de matá-la. Muitas vezes queima o cara vivo. Envolve o infeliz dentro de pneus velho e toca fogo. Mas não queima direto não. Ele assa o cara, imagine. Põe fogo em volta dos pneus para que eles derretam. Aí o cara vai assando devagarzinho. Cair na mão do Jandir é morte certa. Preciso tomar cuidado. Mas ele não reconheceu minha voz não. Foi até gentil e disse que ia falar com o Mário Sérgio, doutor Mário Sérgio, delegado mais corrupto impossível. Mas, se Jandir não reconheceu minha voz, por que fui perseguido?
Foi estranho. Eu, como sempre faço, cortei o caminho pelo bosque. Ninguém me seguia, tenho certeza disso. Mas depois que cheguei à calçada, já quase perto da casa do Danilo, é que apareceram os policiais. Aqueles dois caras não têm nada a ver com isso não, acho. Dois babacas. O idiota me perguntou onde a gente estava. Ora, deu vontade de dizer que no planeta Terra. Achei a cara deles conhecida. Devo tê-los visto em algum lugar, sei lá. Sei que os policiais me viram e me seguiram. Primeiro, devagar, depois aceleraram o passo. Não tive outro jeito senão correr. E olha Ebatoj, foi por pouco. É nessas horas que agradeço os anos que passei no sítio, aprendendo a subir nos coqueiros feito macaco. Nas festas juninas ninguém me vencia no pau de sebo. Ganhava todas. E hoje também ganhei. Quando vi que não tinha para onde ir, entrar na via expressa, nem pensar e continuar na rua era ser pego Entrei no bosque. Ainda bem que aquela parte é mal cuidada e o mato cerrado. Os policiais me perderam de vista e eu aproveitei para subir na árvore, um ipê de sete metros de altura. Foi o que me salvou. Vi quando os policiais desistiram. Aí fui para a casa do Danilo. Outra encrenca.
Aliás, encrenca terei com você Ebatoj. Essa mania de registrar tudo é uma merda. Se cair na mão da polícia... Mas, que posso fazer? É maior do que eu. Quantos diários já não escrevi na vida. Tá, você tem razão. Dirá que, depois de um tempo, queimo tudo. E pode ser de outro jeito? Claro que não. Lembra da Iracema? Aquela gatinha manauense. Um dia ela me viu escrevendo e quis ler. Não deixei, óbvio. Como poderia? Eu tinha registrado cada trepada que a gente deu. Se fosse escritor, daria até para escrever um conto erótico, sabe? Tipo essa literatura que está na moda. Cinqüenta tons de cinza, essas coisas. Particularmente, ainda prefiro ler Sade. É bem melhor. Para resumir a história, não a deixei ler e, para piorar a situação, viu quando queimei o caderno. Fiquei sem meu diário e sem a namorada.
Sempre fico entristecido quando te queimo, Ebatoj. Sinto que um pedaço da minha vida queima junto com você. Tudo bem. Às vezes fico dias sem chegar perto. Mas é por circunstâncias alheias à minha vontade. Tanto é que a primeira coisa que faço, assim que tenho um tempinho, que nem hoje, é te contar tudo o que me aconteceu. Você tem uma vantagem sobre as pessoas, fica sempre quietinho. Nunca resmunga. Tem a desvantagem de nunca dar retorno sobre o que escrevi. Igual aos leitores que lêem um determinado autor que nunca saberá que foi lido.
Ah, o Danilo. Que merda. Bem que eu podia ter-me limitado a pedir para guardar a fita, só isso. Mas não. Tive que explicar meus planos. Aí foi dose. Ouvi muita lição de moral. Mas, antes, deixe-me contar do almoço. Cheguei bem na hora. Quando ele me convidou, olhei para a comida e pensei, será que devo? Sei não. O Danilo faz uma comida muito diferente. O arroz, para ele o prato principal, tinha sido cozido com um monte de coisinhas pretas, parecia larvinha, mas era alga marinha. O outro prato, putz, esse me deu um susto. Olhei e não gostei do que vi. Um cozido de legumes e raízes das mais estranhas. Mas, os sabores combinavam. Não posso dizer que é a maior maravilha do mundo, mas, é bom. Ele tem uma empregada que vai lá toda manhã, e faz tudo, arruma a casa, a cozinha, lava, passa, mas cozinhar não. Ele não deixa. É ele quem faz a comida. Não quer morrer em hospital, então, diz, o alimento é sua medicina. E o cara não vai para hospital de jeito nenhum. Ano passado ficou não sei quantos dias de cama, com problemas no estômago, gemendo de dor. Não tomou nenhum remédio. Sabe o que fez? Jejum! De dez dias. Não sei como não morreu.
Durante o almoço tentei puxar conversa sobre a fita, mas não me deu ouvidos. Continuou mastigando lentamente. Depois de algumas tentativas percebi que o melhor era ficar quieto. E fiquei na minha. Após comermos, fomos para a sala, onde a empregada levaria o café. Apesar de sermos velhos amigos e freqüentar bastante sua casa, um sobrado de esquina, aquele é o único lugar que conheço, além do banheiro, no corredor, antes da sala de jantar. As visitas, freqüentes, também não passam da sala. Muitos, até por estórias que o próprio Danilo inventa, têm curiosidade em subir as escadas e saber como é sua biblioteca e o balcão onde escreve suas historietas que ninguém conhece e, pelo visto, demorarão a ser publicadas. Uma vez lhe perguntei por que não publicava suas histórias e, sabe o que ele me respondeu? Que só publicaria depois que encontrasse a medula óssea da narrativa. Achei aquilo bonito, mas não entendi nada. Medula óssea da narrativa!
Mal sentei no sofá, comecei a falar. Expliquei que tinha filmado a prisão de dois índios. Ele achou normal. Falei que pretendia usar a fita para acabar com a falsidade do prefeito que prometera não reprimir ninguém e andava descendo o cacete no povo. Ele deu um pulinho na poltrona, me olhou firme:
− Você ficou maluco, Jotabê? Usar a mesma arma do inimigo?
− Mas, Danilo, a prisão dos índios é ilegal, você sabe. Precisa ser denunciada.
− Jotabê, você tem apenas uma imagem gravada.
− Uma imagem vale por mil palavras – confesso que me arrependi de usar esse chavão, mas, era o que tinha na valise.
− Não me venha com lorotas. As imagens também são discutíveis. E esse não é o ponto.
– E qual é o ponto?
– Sua ética. Os fins não justificam os meios.
– Se for legítimo, justifica sim. E nosso fim é legítimo, você sabe.
– Nosso quem, cara pálida?
Perdi um pouco a paciência quando ouvi isso. Já estava meio ansioso achando que Danilo tinha se bandeado para o lado do prefeito. Só podia. Enquanto meu partido tinha como fim legítimo resolver o problema social, de miséria e fome, o prefeito só agia em nome dele e de seu grupo, da velha e corrupta elite. Como Danilo podia discordar? Os objetivos do prefeito eram ilegítimos, o nosso não. Aí o acusei:
− Tantos anos trabalhando na Prefeitura deram nisso. Agora defende o prefeito.
Para meu espanto, começou a rir. A empregada chegou com o café. Ele continuava rindo. Pegou a xícara, parou de rir e disse naquela voz grave e calma, só dele:
− Se pensasse como você, já teria feito muito estrago nessa cidade. Você conhece minha posição política: detesto políticos.
– Mas você é funcionário público. Trabalha lá há décadas.
− Ué! É um emprego como qualquer outro. E tem uma enorme vantagem, você sabe, cumpro minhas horinhas regulamentares naquele ninho de víboras e uso o resto do tempo para escrever. Quer coisa melhor?
Danilo tem uma ideia estranha sobre política, tanto quanto a comida que come. Não dá para dizer que é liberal, comunista, de esquerda ou direita. Nada. Ele apenas não tolera política, só isso. Nunca entra em detalhes e, quando o assunto é política, ironiza. Para ele a democracia só poderá existir quando o povo for democrata. Ele esquece que a gente, liderando um partido revolucionário, também pode impor a democracia. Claro que pode. Mas, tudo bem. Discutir essas coisas com o Danilo não levam a lugar nenhum. E, para dizer a verdade, fiquei satisfeito em saber que ele não estava defendendo o prefeito, apenas discordando de minha ética. Às favas a ética. Bem, pelo menos, ele concordou em guardar a fita.
Antes de sair, pedi para ir ao banheiro, mas estava entupido. Pediu para que usasse o de cima. O pessoal ficará com inveja, Ebatoj. Sabe por quê? Vi o escritório dele. Estava com as portas abertas. Não tinha nada demais. Só estranhei quando vi um gravador sobre o balcão e um monte de fitas. O que será que ele faz com elas? Serão de música? Quando reencontrá-lo perguntarei.
Ah, claro, depois de ser acusado de antiético, eu não iria dizer-lhe que já tinha vendido a fita para o delegado e que a venderia para o prefeito – conheço o Genésio e sei que ele topará – e para a TV, claro. A TV deitará e rolará com essas imagens. Um material desse dá um bom dinheiro.
Afinal, que mal tem em levar alguma vantagem, não é não, Ebatoj?!