Pequenas Mentiras

Conflitos no poder

Nos bastidores do poder, em quem confiar e como agir, diante dos riscos que se apresentam?

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Conflitos no poder

Mário Sérgio girava o volante do carro para desviá-lo ora de buracos, ora de poças d águas criadas pelas chuvas e prestava atenção em cada detalhe do cenário, tentando memorizá-lo. O tempo estava nublado e na volta, caso chovesse, alguns dos buracos da estrada rural teriam se tornado poças d água. Melhor, para evitar o perigo, lembrar-se dos trechos mais problemáticos.
As condições da estrada, todavia, não o preocupavam tanto quanto o encontro marcado de última hora e em caráter de urgência pelo prefeito, amigo de infância. O assunto só o saberia quando chegasse à chácara, localizada a poucos quilômetros do centro da cidade. E deveria ser sério, pois Adolfo Guimarães jamais marcaria uma reunião tão cedo no que ele brincando chama de esconderijo secreto, aonde se retira quando tem alguma folga e poucas pessoas, as mais íntimas e alguns parentes, conhecem e frequentam. O que ele teria a conversar com Mário Sérgio se há semanas a situação entre os policiais e manifestantes se mantinha estável, sem confrontos? Com isso, o prefeito voltou a crescer na preferência popular. E ele, Mario Sérgio se mantinha no cargo de delegado.
Mas por que ser chamado assim, num repente, para uma conversa particular, fora da agenda? Ou... Espere... Será que descobriu que os inimigos dele são seus aliados? Não. Ele não sabe de nada, nem pode saber. As reuniões de Mário Sérgio com os inimigos do prefeito obedeciam a critérios rígidos de segurança e só participavam pessoas confiáveis, então, não há porque se preocupar.
Ainda que carregasse certo sentimento de culpa não se arrependia por tê-lo traído. Com a vitória dos oposicionistas perderia o amigo, mas seria mantido no cargo com algumas vantagens. O salário de delegado era bom, mas com as vantagens viveria melhor. Teria carro de luxo. Casa na praia. Viajaria o mundo. Sem preocupações. Dinheiro extra. Esse caia bem.
Mário estacionou o carro em frente à entrada da chácara e, acompanhado pelo mordomo, se dirigiu pelo corredor ladeado por bambus até a casa. As paredes de vidro do fundo da sala permitiam ver parte da piscina e o gramado que se estendia por uns duzentos metros até o limite do bosque. Quando o mordomo o conduziu até a beira da piscina, Mário encontrou Adolfo deitado numa espreguiçadeira, com os olhos fechados, vestindo uma sunga, e um copo de uísque na mão.
Enquanto aguardava a chegada de Mário, Adolfo se lembrava dos tempos em que, adolescentes, atazanavam os vizinhos com os ensaios da banda de rock que tinham formado e jogavam bola nos finais de semana. Mário, já envolvido na carreira policial, ajudou-o várias vezes a se livrar da prisão quando era líder estudantil. A confiança era tanta que Adolfo não hesitou em nomeá-lo delegado. Mas, com as suspeitas de Genésio de que Mário o estaria traindo a confiança ficou abalada. E se essa fita viesse a público, que aconteceria? Teria que abandonar o sonho de manter-se no poder por mais tempo? Mário sabe dessa fita? E o que ele pode fazer para impedir que ela seja veiculada?
A voz de Mário Sérgio dando-lhe bom dia fez com que abrisse os olhos protegendo-os com a mão esquerda. Sem nada dizer apontou para a bebida sobre a mesa. Mario serviu-se de uma dose de uísque e sentou-se na cadeira em frente à espreguiçadeira. Deu um gole no uísque. Adolfo continuava deitado, de olhos fechados, bebericando. Mário deu um segundo gole e murmurou alguma coisa. Sem se mexer, Adolfo falou manso, mas seco:
− Repete. Não ouvi.
Mário conhecia esse jeito de falar. Indicava que algo não ia bem. Só não sabia o que era esse algo. Respirou fundo e repetiu:
− Estou aqui... – fez uma pausa longa – Por quê a urgência?
Adolfo levantou as costas da espreguiçadeira, apoiou as pernas no piso e sentou-se, colocando o copo sobre a mesa. Olhou alguns segundos para Mário Sérgio e perguntou:
− Até onde posso confiar em você?
Mário olhou-o surpreso. O que Adolfo estaria querendo dizer com essa pergunta? Afinal, eram amigos desde sempre e uma pergunta dessa só aparece quando se suspeita de alguma coisa. Descobrira algo? Teria que ser rápido na reposta. Não poderia hesitar:
− Você sabe. Até o fim.
− E se aparecer algum fato novo, que coloque minha reeleição em risco, posso confiar, contar com você?
− Claro Adolfo, você sabe disso. O que poderia acontecer? Nada. Tenho gente por todo lado. De olho. – falava Mário Sérgio tranquilizado pela pergunta do amigo. Ufa! Nenhuma desconfiança por parte do prefeito. Ele só quer saber com quem poderá contar.
Adolfo levantou-se da espreguiçadeira, viu Genésio caminhar em direção à piscina, virou-se para Mário e disse:
− O acaso é imprevisível. E acontece – em seguida mergulhou na piscina. Quando submergiu Genésio estava próximo a Mário. Adolfo cumprimentou-o aos gritos, fingindo-se surpreso com sua presença, saiu da piscina e convidou-os a entrar.
Enquanto Adolfo se vestia, Genésio e Mário permaneceram na sala de estar em completo mutismo. A quietude por parte de Genésio era compreensível, ele o detestava e se opusera quando Adolfo nomeou-o delegado. Mário nunca tinha lhe feito nada, mas Genésio antipatizara com ele desde o primeiro dia, quando se conheceram, há muitos anos. Mário nunca entendeu o porquê dessa antipatia.
Vestindo uma bermuda e uma camisa aberta desnudando-lhe o peito cheio de pelos, Adolfo entrou na sala rompendo o silêncio constrangedor, falando animado:
− Esse lugar é o paraíso. Posso andar pelado sem ninguém me perturbando. Pena que venha tão pouco aqui. Genésio, você já adiantou o assunto para o Mário?
Mário olhou apreensivo para Genésio. Que assunto poderia ter sido adiantado?  Acabou de pedir apoio político e agora vem com esse mistério? Seria uma armadilha? A ansiedade crescia com Genésio demorando em responder e dividindo seu olhar hesitante entre ele e Adolfo. Finalmente, Genésio, que percebera a ansiedade de Mário, falou:
− Preferi esperar. Três cabeças pensam melhor que uma – e deu um sorrisinho cínico olhando para Mário.
Enquanto Mário e Genésio acomodavam-se no sofá, distante uns três metros da tela, Adolfo colocava uma fita no aparelho e com o controle remoto nas mãos sentou-se numa poltrona um pouco à frente do sofá de onde poderia acompanhar as reações de Mário sem se fazer notar. Ligou o projetor sem falar nada.
Logo nas primeiras imagens Mário reconheceu a fita. A mesma que Jandir, seu assessor, havia comprado de um cinegrafista em troca de silêncio. Como o prefeito a conseguiu? Mas não deu nenhum sinal de preocupação ou ansiedade. Permaneceu estático, respirando fundo com os olhos fixos na tela, até o fim da gravação quando Adolfo, depois de desligar o aparelho, lhe perguntou:
− E aí, o que você viu?
− O que eu vi?! Como assim? Apenas a prisão de duas pessoas. Só isso.
Adolfo, meio irritado, apontou para a tela escurecida da TV e disse irônico:
− Duas pessoas?! Você viu duas pessoas sendo presas? Só isso? Viu isso Genésio, ele viu duas pessoas sendo presas. Só isso.
− E o que mais queria que eu visse, Adolfo. Dois caras, dois mendigos talvez, quem sabe, sendo presos?
Genésio intervém se dirigindo irônico a Mário:
− Você não teria visto... Dois índios?
− É. Pode ser. São parecidos com índios.
Adolfo mexeu a cabeça de um lado para o outro, irritado:
− Os seus subordinados falaram que eram índios, você não ouviu?
− Não, não prestei atenção. O som da fita está meio ruim. De qualquer maneira, se forem mesmo índios os policiais se confundiram. Eles são muito parecidos com mendigos.
Genésio, em nada convencido das palavras de Mário, voltou a intervir agora de forma grave:
− Essa prisão aconteceu? Porque se aconteceu estamos com sérios problemas. A carreira de Adolfo pode ser prejudicada por essas imagens. Você já tinha visto essa fita antes?
− Não, claro que não, Genésio – respondeu Mário, se contorcendo no sofá, visivelmente incomodado – Nunca vi essa fita. E deve ser falsa. Nenhum índio foi preso. Só pode ser obra da oposição. 
Adolfo levantou-se de sua poltrona, caminhou na direção de Genésio e falou, apontando para Mário:
− Conta pra ele, Genésio, se esta fita cair nas mãos erra...
Mário, mais do que depressa, começou a falar interrompendo Adolfo sem dar chance a Genésio de abrir a boca:
− A fita não cairá nas mãos de ninguém, pode ficar tranqüilo, Adolfo, mas precisamos descobrir quem gravou essas imagens. Como vocês conseguiram essa fita?
Fez-se certo silêncio. Genésio incomodado com a pergunta olhou para Adolfo em busca de uma resposta. Adolfo fez-lhe um sinal com as mãos, tranqüilizando-o, depois se sentou na poltrona e dirigiu-se a Mário:
− Quem gravou? Como a gente conseguiu? Isso não importa. O que me importa Mário, é que se essa fita cair em mãos erradas minha carreira acaba. Mas a sua acaba antes. Então trate de fazer alguma coisa. Não sei o quê, mas faça. Essa fita não pode cair em mãos erradas.
Tudo bem que agora Mário tem um enorme problema que é resolver a questão da fita, mas, por outro lado, está tranqüilo porque, aparentemente, nem Adolfo, nem Genésio, seu assessor, desconfiam de sua aliança com os inimigos. Mas, ao se despedir, Genésio lhe fez uma pergunta intrigante:
− Você já experimentou a caipirinha de saquê com kiwi no bar do Japa?
− Não. Não freqüento esse bar – respondeu rápido. O bar do Japa é o local tradicional de encontro dos políticos da oposição e nunca por ele freqüentado para evitar qualquer possibilidade que o associasse a estes políticos. O que levou Genésio a lhe fazer essa pergunta? Tudo bem que ele adore beber e Genésio sabe disso, mas por que justo no bar do Japa? Bem, de qualquer maneira, tinha coisas mais importantes a resolver do que ficar pensando nisso e encontrar o cinegrafista era primordial. Antes de sair da chácara, telefonou para Jandir e, para sua surpresa, as investigações estavam na estaca zero, o cinegrafista ainda não havia sido identificado.
Ligou o carro e olhou para o céu. Nuvens carregadas se formavam prenunciando tempestade. Mário Sérgio precisava se apressar.

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