Pequenas Mentiras

Baiá

Confira o novo texto de Cesar Carvalho, para esta semana. Em Pequenas Mentiras, escreve sobre grande verdade!

Por: Cesar Carvalho | pequenasmentiras49@gmail.com
Baiá

Baiá é um índio de uns trinta anos, não mais que isso. Mas é muito diferente dos homens de sua tribo. Maneja com habilidade as armas de guerra e tem os músculos rijos, próprios de um guerreiro. Mas essas qualidades não o tornam um guerreiro. Quando participa da caça, não tolera as brincadeiras que fazem com os animais antes do abate final. Sua impaciência acaba por afastá-lo dos companheiros, mas Baiá não dá a menor importância. Prefere ficar na aldeia, fazendo o que realmente gosta: cantar e dançar.
Diferente de qualquer outro membro da tribo, Baiá é o único a ler, escrever e falar a língua portuguesa. E fala bem. Freqüentou a escola de uma pequena cidade amazônica, a muitos dias de sua aldeia, mas não é um período que goste de recordar. Todavia, é essa habilidade que pode ajudá-lo a cumprir a difícil negociação com os madeireiros e impedir o desmatamento da floresta. Por outro lado, esta mesma habilidade transformou-o em alvo de chacotas: O Escolhido dançará a língua dos brancos! Era o sussurro mais ouvido em toda a aldeia.
Três dias depois do ritual embarcou em sua canoa tendo Avati como seu ajudante e companheiro de viagem. O Posto de Atendimento Avançado do Serviço de Proteção era o local onde Baiá achava que resolveria rapidamente sua demanda. Afinal, é um Serviço de Proteção e não tem por que não acatarem o pedido da tribo e impedir o desmatamento. Em dois dias chegariam lá e o problema estaria resolvido.
Antes de embarcarem, Baiá havia informado Avati do quanto a missão seria fácil e rápida. Sua confiança conquistara Avati que, agora, não entendia a mudez do amigo, o rosto endurecido, olhos franzidos e testa escorrendo suor. Que estaria acontecendo? Desde que haviam embarcado Baiá não pronunciara uma palavra.
À noite, em volta da fogueira, Avati estava inquieto. Engolia o último pedaço do peixe que havia pescado sem sentir-lhe o sabor. Em sua mente as cenas da chegada, o desembarque, o preparar o acampamento, o catar lenha para a fogueira, fazer a comida... e nada de Baiá abrir a boca! Avati tapou os ouvidos, curvou o corpo, chacoalhou a cabeça, endireitou-se, olhou na direção de Baiá, e disse:
− Você está com algum problema?
Baiá olhou fixo para Avati por alguns segundos, depois voltou o rosto em direção à fogueira e permaneceu quieto.
Sem tirar-lhe os olhos, Avati esperou. Baiá não se mexia, apenas olhava para a fogueira. Avati esperou. Baiá continuava quieto, olhando a fogueira. Só desviou o olhar para Avati quando este explodiu:
− Estou falando com você?! A gente tá no rio o dia inteiro e você calado. Não falou nada. Por que você não fala?
Baiá manteve os olhos fixos em Avati por algum tempo, depois desviou o olhar para a fogueira e ficou parado, quieto.
A paciência chegara ao fim, Avati levantou-se, foi até onde Baiá estava sentado, agachou-se e olhando para o amigo disse em tom de conselho:
− Ninguém pode viver sem falar... Precisa falar... Falar. − e aumentando o tom de voz, sem gritar – Precisa falar!
Baiá esperou. Sem falar palavra, olhou para o amigo – que voltou a seu lugar, deitou e se ajeitou para dormir – e voltou a olhar a fogueira.
Na tarde seguinte, chegaram às margens do rio onde estava o Posto de Atendimento. Um enorme pavilhão feito com tijolos de concreto e telhas de amianto em pleno coração da floresta amazônica. Baiá conhecia bastante bem aquele tipo de construção. No tempo da escola morou numa casa feita daquele material. Era insuportavelmente quente, principalmente num clima como o da Amazônia.
O olhar de Baiá não passou despercebido por Avati, que o questionou:
− Por que a surpresa? Não é a oca que apareceu na mensagem dos deuses?
− Não sei... Acho que não... Era diferente...

Enquanto Avati cuidava da canoa e providenciava um lugar para acamparem, Baiá pegou a trilha feita de pedras que serpenteava o imenso gramado em volta do pavilhão. O local estava deserto. Olhou atento em todas as direções. Muito silêncio pode significar perigo. Seguiu cauteloso. Na recepção, a porta semi-aberta e uma voz distante. Empurrou a porta, vasculhou o local, entrou em silêncio, fechou a porta e aproximou-se do balcão. A voz estava nítida. Olhou na direção de onde ela saia. Esperou um pouco e, sem fazer ruído, foi sentar-se no banco de madeira.
Lá, no fundo da sala, o funcionário Ademar conversava ao telefone:
− Olha... Não se preocupe. Se algum índio aparecer por aqui, eu enrolo. Pode deixar. (...) É, o senhor tem razão. Melhor mesmo seria acabar... (...) pode deixar. Garanto a entrega. ... Não, não, sem acréscimo. Pelo mesmo preço. Ah, não se preocupe, se aparecer, pode deixar... Eu enrolo. Fique tranqüilo...
Avati entrou na sala e bateu a porta. Ademar cobriu o bocal do telefone e gritou:
− Quem está aí?
Apesar de não entender nada da língua portuguesa, o grito paralisou o índio que encolheu os ombros, “xiii fiz besteira!”. Ademar, bastante nervoso, desligou o telefone, pegou uma arma da gaveta e saiu em direção à recepção. Ao entrar, gritando e chacoalhando a arma, viu Baiá e Avati. Apontou-lhes a arma e falou agressivo:
− Quem são vocês? Que querem?
Baiá tentou se levantar, mas foi impedido.
− Não se mexe não que vocês são sacanas. Primeiro quero saber quem são?
− Eu sou Baiá, ele é Avati. Viemos pedir proteção contra madeireiro... – Baiá fez uma pausa. Olhou para a arma. Olhou para Ademar. Esperou alguns segundos e falou calmo:
− Aqui é o Serviço de Proteção, não é?
− É
− Então, para que a arma?
Ademar olhou para a arma, olhou para Baiá, olhou para Avati, que continuava no mesmo lugar, sem entender nada, colocou a arma sobre o balcão e dirigiu-se aos dois:
− Que vocês querem?
Baiá levantou-se do banco de madeira e aproximou-se:
− Nossa tribo corre perigo. Madeireiro está cortando árvores da floresta. Sem floresta não tem caça, sem caça tribo desaparece.
O funcionário ouviu impaciente, depois falou:
− Não se preocupe. Encaminharei a queixa para o Escritório Central. Em poucas luas eles mandam a resposta.
Ademar franziu o nariz ao dizer “em poucas luas”. Baiá não apreendeu a ironia, mas sentiu-se enganado com as informações dispersas. Em tom irritado, disse:
− Exatamente quantas luas?
Ademar tamborilou os dedos sobre o balcão e riu, aproximando seu rosto do de Baiá:
− Esta aí uma coisa, meu amigo, que nem Deus sabe. Mas quando chegar você saberá. Pode acreditar.
O sorriso irônico seguido por estas palavras aumentou a irritação de Baiá. Avati, mesmo um pouco distante, não deixou de observar as mudanças no amigo. O rosto se contraindo, olhos e testa se franzindo, o suor escorrendo frio. A voz saiu feito trovão:
− Os homens brancos estão matando a floresta. Daqui a pouco índio não terá o que comer.
− Ah... come brioche – disse com certa displicência e depois caiu na gargalhada. Olhou para Baiá, olhou para Avati e vendo que a brincadeira não fora compreendida, desistiu. Afinal, se nem os brancos conhecem essa história como um índio vai saber que a frase foi dita por Maria Antonieta após seus súditos reclamarem não ter o que comer!
– Ah, deixa pra lá... Olha, índio, o procedimento é este: eu registro a queixa, encaminho o ofício para o Escritório Central e o Escritório Central encaminha o pedido para análise ao departamento jurídico que encaminha ao presidente do Escritório Central para assinatura, se tudo for confirmado, claro. Entendeu ou quer que eu explique?
Baiá ficou mais tenso. Seu rosto se contraía cada vez mais e suas mãos, apoiadas no balcão tremiam. Apesar da dificuldade em entender tudo o que Ademar falava, Baiá sentia estar sendo enganado. Quando o funcionário terminou não pensou duas vezes. Aproximou seu corpo do balcão, pegou o revólver com a mão esquerda e com a direita levantou o corpo de Ademar pela gola da camisa que, sufocado, pediu:
− Calma, índio, relaxa. Assim a gente não chega a lugar nenhum.
Baiá soltou a gola. Ademar, com cara de dor, esfregou o pescoço. Baiá tirou as balas e colocou a arma sobre a mesa. Virou as costas para Ademar e, chamando Avati, dirigiu-se à saída:
− Vamos embora. Este lugar fede. Não resolve nada.
Enquanto se dirigiam ao acampamento, ouviram os gritos de Ademar no interior do pavilhão:
− Ainda te pego, indiozinho de merda!

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