A partida
Novo texto de Cesar Carvalho, “A partida”, continua a descrever a saga de Baiá. Leia e saiba as novas revelações, caminhos e desafios.

Baiá caiu na água e afundou. Ao submergir, preocupou-se com a correnteza que poderia distanciá-lo da pequena praia ribeirinha, logo à frente, onde sairia do rio com facilidade. Depois, só barranco e vegetação densa. Quem o empurrou? Por quê? Tinha sido empurrado com tanta força que não teve chance de saber quem era o autor da brincadeira, se é que isso pode ser chamado de brincadeira. Depois de algumas braçadas, tentando vencer a correnteza, toras de madeira impediram-lhe a passagem. A decisão tinha que ser rápida. Não queria correr o risco de nadar horas a fio para encontrar algum lugar que o permitisse sair, além do perigo da cachoeira, não muito distante. Olhou para as toras, respirou fundo e mergulhou. Aumentou as braçadas contra a correnteza e aproximou-se da praia. Antes de levantar, uma mão lhe foi estendida. Baiá, com os olhos empapados, passou a mão sobre o rosto, franziu as sobrancelhas e sorriu:
− Vô?!
− Quem mais poderia ser! – disse o velho com um largo sorriso, enquanto ajudava-o a sair da água.
− Vô, que brincadeira é essa de me empurrar para dentro do rio?
− Para você ficar esperto – riu – estava muito distraído. Venha, vamos sentar.
Os dois foram até o barranco onde, desde criança, ouvia as histórias do avô. Baiá sentou-se e olhou o rio por um tempo. O avô, observando o semblante do neto, disse:
− Vejo muitos igarapés no rosto de Baiá.
Ele voltou-se e sorriu sem graça:
− O avô continua o mesmo... Observador. Mas não tenho nada não... Cansado da viagem...
Fez-se um longo silêncio. Baiá respirou fundo, olhou para o avô e falou tímido:
− O pajé fez um comentário estranho... Deu a entender que eu cheguei à tribo depois da expulsão. Sabe, como se ele estivesse dizendo que não sou índio. Isso é verdade? Não sou daqui? Quem sou?!
O avô ouviu atento, olhou para o meio do rio e respondeu:
− Você é especial, Baiá. Veio para nossa tribo com uma missão.
− Vim?! Então não sou daqui?!
− É... Bem... É sim, você é daqui sim Baiá... Só que... Sua mãe era índia... Mas seu pai... Ninguém sabe! Sua mãe foi roubada e quando fugiu trouxe você.
− Então eu nem sei se sou índio ou se sou branco?
− Ninguém falou que você não é índio, nem que é branco – disse o avô com voz grave e firme – sua mãe foi presa por uma tribo inimiga, depois, vendida aos madeireiros. Ela fugiu. Quando chegou entregou você ao pajé e morreu. Ninguém sabe quem é seu pai. Naquela noite, o pajé lhe deu vinho sagrado e os deuses mandaram Murucututu voar em noite de lua cheia. Era o sinal de que você era o escolhido.
− Um escolhido que só faz coisa errada!
O velho riu:
− Precisa ouvir mais, Baiá. Assim não cai na água – e riu novamente – agora, fique aqui, quieto. Volto logo – levantou-se e entrou na mata.
Baiá obedeceu à risca a ordem do velho. Relaxou seu corpo. Dirigiu o olhar para o meio do rio, ao movimento das ondas, aos restos de galhos, aos troncos. Os ouvidos atentos às águas, ao ondear das copas das árvores e... – tlec, tlec – aos passos de alguém que se aproximava. Baiá virou-se. Era o avô que se sentou no barranco sem dizer nada. Baiá continuou em silêncio. Depois disse:
− O que o rio pode me ensinar?! Tudo o que sei é que tenho que falar com chefe do homem branco para impedir o desmatamento, nada mais. Sou o escolhido? Um escolhido que pode nem ser índio?
Sem dizer nada, o velho bateu nas costas de Baiá e apontou para um banco de areia, no meio do rio. Depois disse:
− Aquele banco de areia atrapalha o correr das águas?
− Atrapalha.
− A água para por causa do banco de areia?
− Não.
O velho ergueu-se seguido por Baiá e disse:
− Antes de ir embora, volte aqui e sente-se – deu um tapinha nas costas do neto e caminharam em silêncio para a aldeia.
O sol nascia quando Baiá e Avati chegaram à beira da rodovia na esperança de conseguir carona. A estrada de terra margeada pela floresta era cheia de poças d´água e lama obrigando à baixa velocidade os poucos veículos que passavam. Caminhão, vez ou outra. Nenhum parava. Horas depois, o sol quase a pino, surgiu um caminhão velho. Baiá acenou. O motorista diminuiu a marcha, parou , inclinou o corpo, abriu a porta e com largo sorriso perguntou:
– Estão indo para onde? – mas, não esperou resposta – Vamos, entrem. Tô indo pro Planalto.
Os dois entraram. Enquanto Avati sentava-se no banco traseiro Baiá acomodava-se no banco da frente, e a porta estava ainda aberta quando o motorista pôs o caminhão em movimento e começou a falar. Baiá, assustado, agarrou-se à alça no painel, esticou o corpo e, com a mão direita, fechou a porta.
− Ainda bem que vocês apareceram. Não aguento mais essa solidão. Estrada deserta. Cheia de buraco. Floresta não é pra mim não. E vocês − olhou para Baiá, depois girou o pescoço para Avati e disse, indeciso, − vocês são índios, não!
Baiá fez sinal positivo com a cabeça e continuou quieto. O motorista voltou os olhos para Avati e, sem desviar a atenção do volante, perguntou:
− Você é índio?
Avati levantou os ombros, não entendia palavra de português, e olhou para Baiá, na esperança de encontrar ajuda do amigo que se manteve quieto. O motorista resmungou:
− Vixi, não entende nada do que eu falo – olhou para Baiá – e pelo visto o outro não gosta de falar – aumentou o volume de voz –você não gosta de falar não, é?!
Baiá deu um sorriso sem graça. O motorista arregalou os olhos e exclamou:
− Ah... Já sei. Vocês não falam minha língua – e, meu Deus, no Planalto isso não é nada bom... Parecem dois mendigos!
Baiá olhou calmo para o motorista e falou:
− Falo sua língua. Avati é que não fala. Somos índios.
O motorista riu:
− Desculpe, não quis ofender. Mas, se vocês forem ficar mesmo no Planalto, cuidado. Prendem todo mundo que se pareça com mendigo.
Baiá estranhou:
− Mendigo?!
− É. Gente sem trabalho... Que anda sem identidade...
− A gente é índio. Só estamos vestidos de homens brancos.
O motorista riu, depois, mantendo meio sorriso:
− Olhe para a sua roupa?! Suas calças, por exemplo, rotas. Rasgadas, sabe? E manchadas. Além de largas. E essa camisa, santo Deus! Puídas, cheias de buraco. A gola esgarçada. Você parece o Jeca Tatu empobrecido, se isso é possível – e riu – não me leve a mal.
Baiá tirou uma cédula de identidade do bolso, apontou-a para o motorista e disse:
− Homem branco disse que com esse papel eu tenho identidade, RG.
O motorista balançou a cabeça e riu:
− E você acreditou?! Rapaz, se a policia implicar não é esse papelzinho que livra a barra não. Acaba vendo o sol nascer quadrado.
− Nascer quadrado?!
− É. Vai pra cadeia. Fica enjaulado igual bicho.
− Então para que serve este papel?
− Para identificar seu corpo, quando ele for encontrado no meio da mata – e caiu na gargalhada.
Baiá balançou a cabeça. Aquilo não lhe fazia o menor sentido. Andar com um pedaço de papel para os outros saberem quem você é?! Avati o cutucou curioso em saber o que conversavam. Baiá voltou-se e viu ao lado do amigo uma foto no jornal em cima do banco que lhe chamou a atenção. Estendeu a mão para apanhá-lo enquanto, lacônico, respondia a Avati:
− Depois eu conto.
Pegou o jornal, olhou a foto, ergueu-a até a altura dos olhos e sussurrou. O motorista, percebendo-lhe os gestos e o olhar surpreso diante da foto, quis saber o que ele estava dizendo. Baiá respondeu animado:
− É a mesma cidade que vi nos sonhos. É para lá que tenho que ir – disse para o motorista, depois, voltou o rosto para Avati, apontou a foto com o indicador e falou em sua língua nativa – veja Avati, é a cidade da miração! Os deuses mostraram.
O motorista, sem entender os motivos da alegria de Baiá, disse:
− Se você viu nos sonhos, não sei – e riu incrédulo – mas a gente chega lá em poucas horas.