A palavra assassina
Em Pequenas Mentiras desta semana, o cotidiano da escritora Vitória e o ponto final de sua história.

Vitória era uma escritora pouco conhecida. Publicou alguns livros, sem sucesso, e vivia sua vida solitária de forma rotineira na cidade interiorana. Levantava ao meio dia, saía para almoçar e, ao voltar para casa passava pela revistaria, comprava o jornal e, enquanto o lia, tomava café no bar da avenida.
Durante a tarde escrevia compulsivamente. Era o período em que o mundo exterior não existia só a palavra interessava. E escrevia. Escrevia.
À noite ia para a escola onde era professora. Depois das aulas, que os alunos adoravam, passava pelo bar da avenida, tomava café, conversava por meia hora com os conhecidos que encontrava e voltava a trabalhar até as quatro da manhã. No dia seguinte, retomava sua rotina.
Um dia Vitória desapareceu. Não almoçou no restaurante costumeiro, não passou pela revistaria e nem apareceu para dar aulas. Estranhando, porque ela nunca faltava, a direção da escola, depois de vários telefonemas não atendidos, mandou um funcionário até sua casa. Este, ao chegar, sentiu um cheiro putrefato e forte. Temendo pelo pior, chamou a polícia.
Seu corpo foi encontrado no chão de sua biblioteca. Apesar do estado de decomposição, sua tez era serena. Assassinato? Suicídio? A dúvida pairou sobre a cidade. O exame necrológico detectou uma grande quantidade de tinta, a causa da morte. A dúvida persistiu até o investigador, encarregado do caso, terminar de ler seu diário, encontrado sobre sua escrivaninha, e concluir que ela cometera suicídio, pois era maluca.
Para comprovar sua tese e encerrar o caso transcreveu a última página do seu diário:
Deixo aqui registrada minha confissão de culpa. Desnecessária, talvez, porque nunca negarei ser autora deste crime.
A gente se conheceu há algumas décadas. Durante anos estive tão apaixonada que não percebi sua intenção maléfica, limitativa, manipulatória. Ele chegava de mansinho, insinuava-se, mudava tudo o que eu fazia. Para um coração iludido aquilo era o máximo.
Mas, paixão acaba. Conosco não foi diferente. Primeiro, achei exagerado aquele jogo de sedução, depois comecei a questioná-lo e a recusar suas sugestões. Mas acabava cedendo, gostava muito dele. Estava trabalhando e, como sempre, chegou todo sedutor. Pedi por favor, hoje não. Ele insistiu. Tornei a pedir. Ele continuou insistindo. Quando falo coisa é coisa, mas ele nunca acreditou e não seria hoje que acreditaria.
Não aguentei. Estava pronta para estrangulá-lo quando tive um insight: no lugar de matá-lo, porque não picá-lo, mantendo-o vivo?
Não, isso não vale para nada. Sempre continuarei dependente dele, afinal, Adjetivo é essencial para minha vida. Estou desesperada. Não sei o que fazer.