Letra A

Inconformismo conformado

O Quinze, de Rachel de Queiroz, 100 anos depois.

Por: Acácio Rocha | acacio@sigamais.com
Inconformismo conformado

O homem tem sua vida
Nas mãos de Nosso Senhor
Pra uns, estradas florida
Pra outros, só dissabor
Se a coruja um dia
Chegasse a ser beija-flor
Naturalmente eu teria
Dinheiro, paz e amor
(O Urubu é Um Triste, Luiz Gonzaga
)

 

É preciso reconhecer e aplaudir uma boa reportagem, como a exibida a pouco, no Jornal Nacional. “O Quinze – Travessia”, contextualiza hoje o cenário, (a vida) e o sofrimento do povo do nordeste. É a releitura contemporânea da obra de Rachel de Queiroz, onde (d)escreve o retrato da agressividade e desolação da seca, em 1915.

Um século depois, em outro milênio, em tempos de urna eletrônica, redes sociais, portal da transparência, ministério público, tecnologia, e tantos outros mecanismos e recursos, dois aspectos secam a disposição de mudar o cenário.

O primeiro deles é a inércia política e governamental, onde seus políticos, instituições e programas não são capazes de emancipar o indivíduo dentro desse ambiente extremo. A inoperância e a falta de esforço político e institucional parecem fazer questão de cultivar uma população de miseráveis e dependentes, em condições sub-humanas.

O segundo aspecto é a própria cultura dessa gente, e de muita gente, subsidiada por pequenos favores que cultivam e mantém a dependência paternalista e assistencialista.

Qualquer levante dessa gente, aos seus olhos, pode eventualmente colocar em risco o que minimamente é oferecido pelos políticos e instituições. O que é (o indivíduo e o cenário) e o que se tem (os recursos), ganham contornos de provação divina. Aos olhos dessa e de muita gente, Deus tem propósitos com tudo isso, e a cada um é dado o que lhe é merecido. Lógica absurda, irracional e inaceitável, porém, assumida por muitos como absoluta e doutrinadora, cabendo a cada um o desfio de superar, à espera de alguma recompensa ou lição.

Nessa aspereza, o real e o imaginário têm atuação conjunta, e tornam o real ainda mais cruel. O real é a vida sofrida, que penaliza essa gente. Soma-se a isso o pouco esforço político e institucional no sentido de dar as mínimas condições para que esses indivíduos se emancipem. Minimamente, a oferta de água implica em alimentos, em saúde, em esperança e disposição. E isso pode emancipar aquele que hoje se lamenta e expõe seu inconformismo conformado.

Um dos grandes esforços é a obra de engenharia de transposição do Rio São Francisco, que pode amenizar a escassez de água no nordeste, mas que por sua vez, abastece primeiramente os canais da corrupção. É uma máquina de dinheiro para um sistema habituado a isso, e que tem sede insaciável.

Passado um século, “O Quinze” é atual. O que Rachel de Queiroz (d)escreveu em 1915 é o retrato do hoje, com acréscimos que envergonham ainda mais: os cem anos, entre os sem anos, ou seja, aqueles esquecidos, deixado de lado, sem apoio, sem atenção, sem esperança e sem voz. Esta, por sua vez, agoniza calada pela seca, sem a força para ser gritada. E um povo que só quer sobreviver, seja pela esmola política, pela pouca capacidade de impor-se ou pelo conformismo divino, que aqui não liberta.

A expressão dos moradores mostrados na reportagem é desoladora. Pessoas cansadas, carregando marcas da idade e do sofrimento, de um tempo sem volta, de uma vida sem cor, que lavram a terra em pó, em repetidas tentativas de sobrevivência.

Acácio Rocha é jornalista, diretor de conteúdo do Portal Siga Mais | Acesse aqui sua fanpage.

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