A sopa que eu nem comi
“Paguei por um mês de uma sopa, que só comi por um dia”.
Um dos acontecimentos que marcaram a minha infância, foi uma situação ocorrida na escola que eu estudava. Acredito que foi no ano de 1954. Naquela época as escolas não tinham merenda. Você comprava um cartãozinho para poder comer a sopa. E eu morria de vontade de comer a tal da sopa. Mas, minha mãe não tinha condições que comprar.
Me recordo que todos os dias o servente passava de sala em sala, com uma caixinha e um caderno, verificando e anotando quem poderia comer a sopa na merenda. A voz do “lerdo” eram bem engraçada, ele era “meio fanho”.
– A sopa... A sopa... – dizia ele com a voz bem anasalada.
O valor não era tão alto. Era algo como se fosse “um real” nos dias de hoje. Mas, como eu não podia comprar, e nem queria “encher o saco” de minha mãe, ficava só na vontade mesmo.
Ela, sabendo de minha vontade, sempre dizia que um dia compraria um daqueles cartões permanentes. Com eles, a gente podia comer por um mês inteiro a tal da sopa.E de fato, o tempo passou, mas minha mãe cumpriu a promessa. Ela me deu o dinheiro para comprar o tal cartão permanente. Cheguei na escola e lá fui eu acertar com o servente o valor. Me lembro que ele anotava o nosso nome e a data de validade em um cartão e nos entregava.
Naquele dia, eu comi a tal da sopa. Penso que era arroz com caldo de feijão. E eu lá... Comi todo feliz. Ao chegar em casa, contei para minha mãe o ocorrido. E ela via aquela felicidade no meu rosto.
Pois bem... No dia seguinte, conforme fazia todos os dias, lá veio o “lerdo” do servente.
– A sopa... A sopa...
Quando ele pegou o meu cartão, verificou no caderno e me chamou.
– Tem que devolver... Esse cartão venceu ontem!
Me lembro que isso foi no início do mês. Assim, o cartão só perderia a validade 30 dias depois. No entanto, o “lerdo” do servente anotou a data errada, acreditando que ainda se tratava do mês anterior. E eu com medo dos meus pais, fiquei quieto e devolvi o cartão, mesmo sabendo que havia comprado no dia anterior.
Como o medo de apanhar dos meus pais era maior, paguei por um mês de uma sopa que só comi por um dia. E eles sequer sonharam que um dia isso tudo aconteceu comigo.
João Passarinho
Funcionário Público Municipal
Escritor, Cordelista e Contador de histórias
Tiago Rafael dos Santos Alves
Professor, Historiador e Gestor Ambiental
Membro Correspondente da ACL