Reflexões Matutas

Homem, conflito e terra

Relato sobre a desocupação de uma área rural no município de Paulicéia/SP, ocorrida neste mês de dezembro.

Victor Hugo S. Souza | Historiador, professor, entusiasta das causas regionais e pauliceiense | profvictor97@gmail.com Colunista
Victor Hugo S. Souza | Historiador, professor, entusiasta das causas regionais e pauliceiense | profvictor97@gmail.com
Reintegração de posse em Área de Preservação Permanente (APP) em Paulicéia em 10 de dezembro (Foto: Josué Roberto, ex acampado). Reintegração de posse em Área de Preservação Permanente (APP) em Paulicéia em 10 de dezembro (Foto: Josué Roberto, ex acampado).

A desumanização é clara quando o assunto é reforma agrária. Em nome do patrimônio famílias perdem a moradia, a renda do mês, o almoço de cada dia, a dignidade, pois mais vale a propriedade de um do que a vida de muitos, eis a lógica que atravessa acampamentos da reforma agrária na região e em todo o país.

Humano, do Latim Homo, relacionado a Humus, ou terra. Estamos etimologicamente fadados à terra, e é dela que emergem os principais conflitos da história dessa espécie. Desde os irmãos Graco que ao defenderem a reforma agrária no Império Romano até os dias atuais, a dinâmica parece se repetir, perpetuando desde os tempos mais remotos a ideia de que o acesso à terra, à moradia, à produção de alimentos e dignidade pode pertencer somente a uma pequena elite com condições de adquirir seus lotes por meio da compra.

Em 1850, quando o governo brasileiro já previa que a escravidão teria de acabar, tratou logo de oficializar suas intenções racistas e classistas, pois daquele momento em diante só se poderia adquirir terras no Brasil por meio da compra. É obvio que para a elite grileira essa lei jamais existiu, todavia, aos grupos socialmente vulnerável escreveu-se naquela lei o futuro de seus descendentes, que ocupariam regiões periféricas e sofreriam a consequência de todos os tipos de desigualdade.

Após a Ditadura Militar no Brasil, os movimentos sociais clamavam por reforma agrária, e esses passaram a ter vez, terras de grileiros, posseiros ou mesmo áreas improdutivas, ou seja, que não cumpriam sua função social, produzir alimentos à sociedade, foram ocupadas a fim de dar a essas famílias condições de subsistências, trabalho, renda. Os famosos acampamentos com casebres de lona preta tão conhecidos no oeste do estado, aos poucos foram reconhecidos como assentamentos, construiu-se casas, formou-se agricultores, garantiu-se a soberania alimentar, a solidariedade e a cooperação estiveram à frente desse grito que atravessava cada trabalhador.

Há alguns anos uma área localizada no município de Paulicéia/SP foi ocupada por um grupo de trabalhadores, o território pertence à Companhia Energética de São Paulo (CESP) e diz respeito a uma Área de Preservação Permanente (APP) o que dentre outros fatores justificou a reintegração de posse no dia 10 do presente mês. Um meio de comunicação local informou que a área havia sido “invadida por Sem Terras”, uma falha grava da perspectiva comunicacional, considerando que jamais na cidade houve ação do Movimento Sem Terra (MST). Não houve por parte do estado ou de órgão algum a tentativa de realocação das famílias para outro local, o impacto social foi desconsiderado em nome do patrimônio, do mesmo patrimônio usurpado por grileiros e majoritariamente ilegítimo, forjado em cartórios do oeste paulista desde o início do século XX.

Abrigo de acampados expulsos de área da CESP em Paulicéia (Acervo Pessoal).

Diminuindo a dimensão humana da situação um internauta comentou ainda:

“independentemente da sigla ou bandeira levantada, são todos baderneiros da mesma laia, onde a palavra trabalho ou camponeses só está no título, porque na prática são verdadeiros bandidos!”

Os agricultores produziam ali milho, feijão, melancia, mandioca, urucum dentre outras culturas necessárias para a venda e subsistência. Estabelecidos no acampamento há mais de cinco anos, o casal de agricultores naturais do estado do Mato Grosso do Sul, sem condições de retorno ou vínculo com o lugar de origem, segue com duas crianças, netos do casal, vivendo numa varanda emprestada por um conhecido. Acostumados com a labuta diária no campo, o casal que prefere não se expor não vê perspectivas de melhora.

O objetivo desse texto não é de forma alguma defender a ocupação de Unidades de Conservação (UCs), mas trazer à luz do conhecimento a realidade dos ex acampados após a reintegração de posse, diante da fome, da chuva, dos ventos, da insegurança e quiçá da fome e questionar aos que deturpam a luta pela reforma agrária a partir de seus lugares de privilégios “Qual a família tradicional brasileira que se defende? A pobre, preta, que passa fome e trabalha a terra produzindo o alimento que chega às nossas mesas? Ou a família defendida tem cor específica, renda específica, moradia específica?

As falácias levantadas mediante a situação de vulnerabilidade das famílias, o discurso de ódio, a desinformação, o desafeto, a omissão são provas concretas de que nossa espécie segue adoecida. Até o presente momento nenhuma proposta de remanejamento das famílias aconteceu de acordo com ex acampados, segue a dor nua do relento, as preces elevadas cotidianamente aos céus e olhares perdidos (dos adultos) buscando seu lugar no mundo, enquanto as crianças em sua pureza se travestem num véu de inocência, um escudo que os protege da realidade fétida em seu entorno.

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