Reflexões Matutas

Ai, a minha é Pfizer, e a sua?

Inversão de valores de uma sociedade moralmente adoecida e Pierre Bourdieu. O que é que tem a ver?

Victor Hugo S. Souza | Historiador, professor, entusiasta das causas regionais e pauliceiense | profvictor97@gmail.com Colunista
Victor Hugo S. Souza | Historiador, professor, entusiasta das causas regionais e pauliceiense | profvictor97@gmail.com
(Ilustração: Peter Hamlin). (Ilustração: Peter Hamlin).

Assim que a covid-19 tomou proporções pandêmicas em 2020, cientistas em todo o mundo voltaram-se à produção de um imunizante capaz de cessar o sofrimento que acometia a humanidade. Em meio à liquidez de valores, teorias da conspiração e negacionismo, os profissionais da área desenvolveram, em tempo recorde, uma variedade significativa de vacinas ao redor do globo. Fato louvável!

Durante os primeiros meses, o país dividia-se entre aqueles que defendiam as medidas de contenção recomendadas pelos especialistas, e aqueles que, vorazmente, bradavam em nome dos CNPJs que se perderiam em razão do primeiro vírus da história da humanidade que teria sua nacionalidade reconhecida por líderes como o atual presidente do Brasil. Discursos sinofóbicos que evidenciavam os fetiches do mandrião brasileiro pelo discurso trumpista.

Nas cidades da terrinha, a criatividade tomou conta de boa parte dos residentes. Vírus criado em laboratório, cloroquina, ivermectina, ditadura das máscaras e outras tantas fábulas passaram a fazer parte do cotidiano provinciano, todavia, não somente dele. Em meio ao caos político, sanitário e econômico, nada atípico quando o tema é o atual governo, outro fato de ordem social chama a atenção na mesopotâmia dos rios Aguapeí e Peixe: a maneira como as vacinas passariam a ser tratadas tal como bolsas de grife “Ai, a minha é Pfizer, e a sua?”

Não bastassem as desgraças cotidianas dos últimos vinte meses, as noções da sociedade de consumo regional rebateram com sucesso a ideia pregada, no início da pandemia, de que sairíamos melhores desta conjuntura. As vacinas passaram a ser pensadas não como uma solução eficiente e humanitária para a tão desejada imunização de rebanho, tornaram-se um indicador da soberba e da desumanidade de sujeitos que, a seu bel prazer, se deram o luxo de escolher a marca do imunizante que salvaria a sua vida, diminuindo as chances de contágio e, por consequência, da contaminação de terceiros.

Enfermeiras de Adamantina e região, por vezes, elucidaram a incoerência individualista de alguns cidadãos que, se negavam a se vacinar naquele instante, caso o imunizante desejado não estivesse disponível. A classe média local exprime, com louvor, as arguições de Jessé de Souza em Classe média no espelho, obra na qual o autor pontua o quão descabido é o posicionamento dessa classe de consumo.

Senhores e senhoras que, vez ou outra, viajavam para Balneário Camboriú/SC para os festejos de final de ano argumentavam, sem nem mesmo possuírem passaportes: “Só pode entrar na Europa quem tomar a vacina X, ou Y”. Torna-se nítido o descaso dos sujeitos que se dizem pró da vida quando tais vidas não são de seu interesse.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) em sua obra Gostos de Classe parecia  prever o futuro ao apresentar o conceito de “capital simbólico” em sua obra. Bourdieu explica que, para aproximar-se da classe dominante, os dominados demandavam quatro tipos de capital: financeiro, social, intelectual e simbólico.

O francês inferia que, ao acessar determinados bens, produtos e serviços, alteraria em alguma medida as formas de auto subjetivação do indivíduo. Logo, se ele consome aquilo que habitualmente é usado pelos grupos mais abastados da sociedade, a criatura estaria mais próxima, ao menos para si mesmo e para uma parcela da comunidade, de compor o pequeno grupo de privilegiados da sociedade seccionada contemporânea.

Assim, as vacinas são postas em pódios e a pandemia revela a capacidade que aparenta ser intrínseca à espécie humana. A demanda por segregar, por sentir-se superior, que se explicita até mesmo diante de mais de quinhentos mil mortos em todo o território nacional, evidência a inversão de valores de uma sociedade adoecida, não pela covid, mas pela lógica de descartabilidade e prepotência que desconsidera até mesmo a vida.

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