Opinião

O queijo, a queixa e a feira

O queijo dividido em fatias opinativas, no ponto de vista de quem produz, consome e fiscaliza.

Por: Acácio Rocha | Jornalista | Diretor de Conteúdo do Portal Siga Mais | Vereador em Adamantina
O queijo, a queixa e a feira

No banquete das discussões, uma iguaria tomou conta e fez a cidade se debater sobre as condutas de quem produz, consome e fiscaliza. O desencadeamento que se deu a partir da ação fiscalizadora em torno de um casal vendedor de queijos in natura permitiu elencar uma série de fatores no entorno do queijo, aqui dividido em três fatias opinativas. Vamos a cada uma delas.

A primeira fatia: Adamantina vivenciou nas últimas 24 horas o drama do casal da agricultura familiar que foi preso na tarde desta quarta-feira (21) por venderem queijo in natura, sem procedência reconhecida, na feira livre da cidade. Eram vendedores habituais, com clientes habituais, com endereço certo e sabido: o ponto semanal, ali, na feira livre.
O queijo era comercializado junto a uma clientela fixa, de compradores que se dirigiam ao local semanalmente para se abastecerem da iguaria artesanal. O que fez as vendas da última quarta-feira desandarem foi um desencontro entre o formal e o tradicional. Os métodos da produção, a procedência do queijo, a origem do leite, enfim, podem até ser legítimas e sadias, desenvolvidas dentro de métodos tradicionais, mas que ensejam a formalização – burocrática e necessária – para obter-se a rastreabilidade, mesmo que precária e não instrumentalizada, mas que permita chegar à origem diante de qualquer necessidade rotineira ou extraordinária.
O leite do queijo desandou. E os desdobramentos foram cruéis e pesados, com o casal produtor de queijos. Foram levados à delegacia e presos. Ele passou a noite na cadeia. Ela, em uma condição menos rudimentar, no plantão.
A cidade passou a discutir a prática do médico veterinário, que foi massacrado. Sua conduta, como agente público concursado na Prefeitura de Adamantina, não pode ser misturada com sua atividade profissional privada. Houve muita confusão, nisso também, por parte das manifestações da população, nas redes sociais. Encorajadas, algumas pessoas lançaram ofensas, mas a grande maioria soube se posicionar, questionando a dosagem do rigor legal aplicado ao casal.
A prática é sim, risco à saúde, e toda prática de produzir alimentos de origem animal, e seus derivados, deve ser tecnicamente acompanhada. O argumento da agricultura familiar e da própria subsistência devem ser evidenciados sim, mas isso não negligencia os cuidados que a produção dessa natureza requer. Há circuitos turísticos, ligados ao vinho, queijos, doces, entre outros, em que se preserva a tradição, mas há clara observação aos processos de produção. Compra-se compotas de doces, vinhos e queijos artesanais, atrelados a uma identificação sanitária.
A experimentação dessa dinâmica pode sim ser aplicada aqui. O espaço à agricultura artesanal deve ser invocado e valorizado, e os processos de produção aprimorados, com vista a uma melhor relação de consumo com o mercado, dentro das práticas sanitárias reconhecidas e aplicáveis a cada caso, que devem sim ser observadas e perseguidas. A experiência adamantinense com a Associação de Produtores de Leite de Adamantina e Região (Aplemar) é uma referência que convém citar. Pequenos produtores entregam leite, que é processado, embalado, transformado em iogurtes e queijos, e todos ganham. Estimulou-se assim a cadeia produtiva da agricultura (pecuária) familiar, dentro de uma rotina sanitária em sintonia com a legislação e com as exigências do mercado.

A segunda fatia: questiona-se a conduta do médico veterinário e, por consequência, das demais autoridades envolvidas. Neste caso, no âmbito do Município de Adamantina, existe o SIM (Serviço de Inspeção Municipal). Tem competência para validar, fiscalizar e autorizar os produtos destinados à alimentação, processados, produzidos e comercializados na cidade. Para quem produz em uma cidade e comercializa em outras, dentro do Estado de São Paulo, existe a exigência do SISP (Serviço de Inspeção do Estado de São Paulo). O mesmo se aplica a quem produz e pretende comercializar a nível Brasil, que é o SIF (Serviço de Inspeção Federal).
No âmbito do Município, existe legislação sobre o SIM. Há lei para ser cumprida. Mas não deve ser aplicada de maneira isolada, a determinado caso, exclusivamente. O desencadeamento da ação fiscalizadora radical, que retirou o queijo do mercado e prendeu seus vendedores, precisa ser reproduzida em toda a cidade, porém sem a necessidade do radicalismo preliminar e arbitrário. A fiscalização que orienta é a prática mais recomendada para que se construa um ambiente de consciência que não seja regido a ferro e fogo. Assim deveria ter sido. E assim deve prevalecer. A iniciativa do responsável técnico do SIM e da Vigilância Sanitária de Adamantina precisa ser reproduzida em todo o contexto da cidade, como resposta objetiva à sociedade, que precisa reconhecer legitimidade e imparcialidade na ação, além de invocar a razoabilidade na conduta, e firmeza na aplicação da lei, e não o inverso.
O que se configurou, nesse ambiente de caos operacional, é a falta de sintonia entre os partícipes do ente fiscalizador. De um lado, a autorização, de longa data, que por meio de licença permitia a presença do casal, com a venda desses produtos, na feira livre. Se não é permitido, que não permitisse.  Do outro lado, os diferentes posicionamentos, de agentes públicos, sobre o mesmo tema. O agente de fiscalização que atua na feira-livre se posicionou e deixou evidente sua desaprovação à conduta do colega veterinário. Esse agente de fiscalização esteve na emissora de rádio, pela manhã, em sinal de apoio ao casal, que na véspera, foi rigorosamente punido com a proibição de vender e sua condução à Polícia, onde ficou preso. Mais adiante a Vigilância Sanitária, que sugere agir de maneira diferente, sobre situações semelhantes, pois o mesmo que se vê em feira livre, é comercializado em diversos estabelecimentos com endereço fixo, sem qualquer advertência severa.
Já a Polícia Civil, neste caso, e no exercício que lhe compete, agiu dentro do cenário que lhe foi apresentado: evidente prática comercial de risco, conforme amostragem e os posicionamentos técnicos apresentados pelo representante do SIM e da Vigilância Sanitária, e a caracterização do crime, conforme o catálogo legal brasileiro. Não restou outra medida, senão a que foi tomada, sob risco de prevaricar. E no âmbito da competência policial, foi o desfecho definido pela lei. A razoabilidade que faltou aos agentes de fiscalização, e à própria legislação, foi resgatada pelo Poder Judiciário da Comarca de Adamantina, ao dar a liberdade ao casal, para que responda em liberdade pela prática denunciada e que agora será alvo de inquérito policial.

A terceira fatia: a população que por hora aprova o produto de origem artesanal, reconhece seus valores e sabores tradicionais, também está exposta a bactérias e uma série de riscos, que eventualmente podem estar presentes em qualquer produtos, de qualquer origem, conhecida e desconhecida
Há risco à saúde? Indiscutivelmente, há, em qualquer cenário, porém as situações mais comuns envolvem produtos de origem desconhecida. No caso em pauta, há riscos. Sobre esse tema, pesquisei uma referência de confiança, sobre o tema, e trago aqui um trecho e o link de um texto publicado no site MilkPoint, voltado à indústria brasileira de processamento de leite.
Segundo o site, “algumas das zoonoses (doenças transmitidas do animal para o homem) que podem ser veiculadas por um produto lácteo feito com leite cru são a brucelose (Brucella abortus), a tuberculose (Mycobacterium bovis) e a febre Q (Coxiella burneti). Além disso, os queijos podem causar intoxicações e/ou infecções alimentares ocasionadas por bactérias patogênicas, tais como Escherichia coli, Staphylococcus aureus, Salmonella spp., Bacillus cereus, Yersinia enterocolitica, Listeria monocytogenes, Campylocater jejuni entre outras. A L. monocytogenes representa um risco de alta severidade para mulheres grávidas, pois pode causar aborto e septicemia.
Desta forma, a sanidade do rebanho e as boas práticas de manejo e produção representam um papel ainda mais crítico para queijos feitos com leite cru, principalmente naqueles que não passam pelo processo de maturação. Neste ponto, a qualidade de alguns queijos feitos com leite cru no Brasil deixa a desejar, pois as médias de Contagem de Células Somáticas (CCS) e Contagem Bacteriana Total (CBT), apesar de já terem melhorado significativamente após a implantação do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite, ainda são consideradas elevadas quando comparadas a outros países com uma pecuária do leite mais desenvolvida. Além do mais, não é raro encontrarmos queijos com altos índices de contaminação por coliformes, S. aureus e presença de Salmonela. É preciso ter consciência que o Brasil ainda não é classificado como território livre de brucelose e tuberculose, enfermidades ainda epizoóticas nos rebanhos de bovinos de corte e de leite.
Com base nestes riscos, torna-se imprescindível o cumprimento das normas estabelecidas pela legislação para a fabricação de queijos, sejam eles feitos a partir leite cru ou pasteurizado, em ambiente industrial ou artesanal. A partir do momento em que o produto passa a ser exposto para comercialização, o mesmo deve atender integralmente os requisitos higiênico-sanitários legais, a fim de evitar a transmissão de agentes causadores de toxi-infecções de origem alimentar”
(veja aqui na íntegra).
Assim, espero ter contribuído para uma maior reflexão sobre o tema, em torno das condutas de quem produz, consome e fiscaliza.

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