Opinião

Duílio tinha dois gatos

Leia o novo conto do autor adamantinense Cacá Haddad.

Cacá Haddad Colunista
Cacá Haddad
(Imagem: Meta AI). (Imagem: Meta AI).

Duílio era bancário aposentado, sujeito sistemático, compulsivo por organização. Tinha dois gatos: Gilberto e Gilmar.

Acordava pontualmente às seis horas entregando-se de corpo e alma ao seu cronograma de atividades diárias.

Era um coaching de si mesmo. Café da manhã das seis até seis e meia. Das seis e meia até às sete e meia caminhada matinal na pista do parque. Das sete e meia até às oito horas tomava banho, sem antes “peristaltar” o seu intestino; era um relógio suíço. Das oito até às dez horas praticava duas horas de leitura; seus temas preferidos eram autoajuda, liderança e como obter sucesso no mercado de ações. Das dez até às onze horas fazia palavras cruzadas. Das onze até o meio dia preparava o seu almoço saudável com legumes, folhas, carboidrato de baixo índice glicêmico e carne magra. Do meio dia até às treze horas almoçava e assistia o telejornal. Das treze até às quatorze horas fazia a sesta. Das quatorze até às dezessete horas assistia as aulas on-line da faculdade de ensino à distância; cursava administração de empresas. Pontualmente, às dezessete horas, entrava na piscina de sua casa e praticava quarenta e cinco minutos de hidroginástica. Nos quinze minutos restantes daquela hora de atividades aquáticas alimentava Gilberto e Gilmar. Das dezoito horas até às dezoito e trinta tomava banho. Das dezoito e trinta até às dezenove horas preparava o seu jantar com o mesmo cardápio do almoço: saudável. Das dezenove até às vinte horas assistia ao telejornal. Das vinte até às vinte e duas horas assistia algum filme de sua lista previamente organizada no inicio do ano.  Religiosamente, às vinte e duas horas colocava sua cabeça sobre o travesseiro e entregava sua noite a Morfeu.

Vivia sozinho, estabelecendo o mínimo de interações sociais. Esta rotina era repetida religiosamente de segunda-feira a segunda-feira, sem falhas ou alterações.

A única exceção que remodelava o seu cronograma era o dia de ir às compras. Sempre cabisbaixo, procurava não fazer contatos visuais. Comprava o necessário para passar o mês. Ao chegar do supermercado dividia os mantimentos em porções já alinhadas com o cardápio previamente estabelecido. O único lugar no qual se dava ao diálogo e prolongava o colóquio era com o dono do pet shop. Procurava inteirar-se a respeito das melhores refeições para seus gatos. Era a ração que dava o brilho no pelo negro dos dois felinos.

A vida de Duílio transcorria com a constância e a regularidade tão apreciada por ele. Um dia, porém, a contingência deu as caras em sua medíocre existência e o seu mundo ordenado e organizado foi redefinido pelos parâmetros do Caos.

Naquele final de tarde de terça-feira não encontrou Gilmar na hora de alimentar os gatos. Procurou o bichano por toda a casa. Saiu às ruas, perguntou aos vizinhos, mas não conseguiu achar o felino. Perdido e insatisfeito em seu agora despedaçado cronograma, entendeu que poderia atrasar os afazeres noturnos; voltou para casa e cumpriu com o resto do cronograma estabelecido.

Naquela noite não dormiu bem, seu inconsciente trouxe as típicas imagens fragmentadas dos sonhos. Primeiro sonhou com o período que trabalhava no banco. Seu gerente cobrando o cumprimento de metas não realizadas; na tela do seu computador a imagem de seus dois gatos miavam em latim a expressão estoica Memento Mori (lembre-se da morte). Na quimera não conseguia cumprir o cronograma de suas atividades hodiernas. A pista que utilizava para sua caminhada diária estava esburacada, seu almoço era servido em bandejas de ouro repletas da alimentação que abominava: frituras, refrigerantes, cervejas, lanches, pizzas e doces. A água da piscina sumira e quando ligou a televisão onde assistia seus filmes viu mais uma vez Gilberto e Gilmar miando em latim: Memento Mori.

Acordou tarde com o miado de Gilberto na janela de seu quarto. Lembrou-se então que o outro gato estava desaparecido desde o dia anterior. Não fez sua habitual caminhada naquela manhã, mas seu intestino “peristaltou” regularmente. Ao levantar do vaso viu suas fezes cobertas de sangue.

O médico deu o diagnóstico: um tumor maligno no intestino. Duílio não tinha família, era filho único, seus pais já eram falecidos há muito. Antes de se internar soltou o gato Gilberto na rua; que o destino lhe fosse complacente. Depois de um mês internado, Duílio expirou em meio ao ritual da troca de soro que já havia estabelecido em seu cronograma hospitalar. Sabendo de seu infortúnio deixara o serviço funerário pago: urna escolhida, com jogo de velas e coroa de flores. No seu velório ninguém apareceu. Antes dos agentes funerários fecharem o caixão, Gilberto e Gilmar entraram pela porta da câmara-ardente, se colocaram sob o cavalete que sustentava o esquife e miaram em latim: Memento Mori.

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